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  • Foto do escritorDaniel Afonso da Silva

O fator Marçal


Pablo Marçal, candidato à Prefeitura de São Paulo pelo partido nanico PRTB, é um efeito perpetuado pela inexistência de uma paisagem política efetivamente saudável e de uma realidade democrática digna desse nome


Era para ser só mais uma disputa eleitoral. Mas, pouco a pouco, foi se transformando num pesadelo. Os eventos de São Paulo dão o tom. Mas, todos sabem, o sinistro é mais abrangente. É, claramente, nacional.  E diz respeito à integralidade do regime. Que claudica.


E claudica muito pois as suas instituições parecem exaustas e os seus operadores, avariados. O que, no conjunto, evidencia fraturas expostas do sistema político. Que, ao fim das contas, envolve uma certa ideia de nossa democracia depositária de uma certa ideia do nosso longo processo de redemocratização. Que, desde muito, vive em ocaso. Mas, agora, parece rastejar em espasmos finais.


É, por claro, muito difícil a identificação do início de todo esse mal-estar. Mas vai assegurado que a morte do presidente Tancredo de Almeida Neves, como e quando foi, não anunciou bom-agouro. Depois vieram as incontinências das presidenciais de 1989, as trapaças daquele debate na Globo, o “ippon” do plano Zélia/Collor, o impeachment de 1992 e o “golpe” da reeleição anos depois.


Tudo muito grave, mas não a ponto de não mereceu perdão. Falava-se em momento de aprendizagem, learning by doing, onde se aprendia experimentando e, geralmente, errando.

Era simples o diagnóstico. A Nova República era imberbe e seus operadores, aprendizes. De modo que ainda valia o mantra cristão “perdoai-lhes, pois não sabem o que fazem”.

Tudo foi assim, em condescendência, até o Escândalo do Mensalão. Em 2005. Quando a paciência chegou ao fim.


Aquela desvairada pantomima fabricada pelo deputado Roberto Jefferson e sua trupe modificou todos os sinais. Decretou fim de partida e abriu uma a temporada de recomposição de pactos. Como um momento de mea-culpa. Pois, em verdade, sabia-se que tudo era demasiado grave. A Nova República adentrara novos tempos. Onde a demanda era por comida sólida. Adeus, assim, infância. Não mais adolescência. Era-se, agora, adulta. Vivendo entre adultos, com responsabilidade de adultos.


Que impuseram, como caminho, dois consolos. De um lado, a aposta no lulismo. De outro, uma acirrada rejeição a tudo que a classe política – e não apenas o PT no poder – fazia e representava. Tipo um que se vayan todos. Como se fazia na Argentina. Mas, sendo o Brasil, Brasil, não se fez. Entretanto, fez-se, no Brasil, pouco a pouco, da política um caso de polícia. Onde o Judiciário, hipertrofiado, passou a tomar conta de tudo. Do Executivo ao Legislativo ao sistema partidário e ao Estado brasileiro inteiro.


É bem verdade que nada disso era jabuticaba. Niall Ferguson, historiador inglês, já estava bem avançado em sua teorização sobre “a grande degeneração” das democracias no mundo inteiro. E, nisso, aduzia ser uma tendência nefasta e planetária de judicialização da política em toda parte.


No Brasil, entrementes, as improcedências do Judiciário – que chegariam em seu ápice na operação Lava Jato – acoimaram a totalidade da classe política. Colocando em descrédito a sua razão de existir. A tal ponto que a integralidade da burocracia pública do país – mesmo a concursada – foi posta em suspeição. Tudo que emergia como serviço público passou a ter seus papéis baralhados. Uma estranha confusão tomou conta. O bate-cabeça da desmoralização virou regra. Impondo uma confusa situação onde não se sabia o que fazer. Notadamente depois que os protestos das noites de junho de 2013 passaram a tudo atormentar.


Quem viveu pode se lembrar que, ao longo daquelas efemérides, passou-se a vaticinar o despertar do gigante. Onde as ruas, supostamente, reabilitaram o seu lugar. Sendo a nostalgia da ambiência das Diretas Já! e das paradas dos Caras Pintadas para o impeachment do presidente Collor o guia e o mantra.


Mas ninguém conseguiu notar que não era bem assim. Que o passado – anterior a 1985 e anterior a 2005 – já era outro e distante mundo. De maneira, que 2013 acenava mais para arrumações do futuro. Guardando pouco ou nenhuma vinculação com algum passado.

Tanto que, quando se viu, começaram de súbito a aparecer pichações com o dizer “Olavo tem razão”. Gente da qualidade de Guilherme Boulos passou a liderar funestos movimentos como “Não vai ter Copa”. O elegante presidente da FIFA, Joseph Blatter, obrigou-se a repreender, tendo o sol por testemunho, em pleno estádio Mané Garrincha, amplas maltas de ignaros que, despudoradamente, desrespeitavam a pessoa da senhora presidente da República, Dilma Rousseff.


Não muito depois, gente como o governador Aécio Neves permitiu-se recorrer à justiça para descredibilizar o resultado das eleições. Fazendo o movimento Vem pra Rua – que já estava nas ruas – ficar onipresente por todas as esquinas do país. E, por oportunismo criminoso, abrir picadas para o infame impeachment de 2016. Cujas contradições, não vêm ao caso serem retomadas aqui. Mas, a quem desejar possa, que veja Operação Impeachment (Todavia, 2023) do Fernando Limongi. Que recompôs tudo da melhor forma e melhor que ninguém.


Mas não adianta recompor nem entender. Como afere o adágio provençal “tout comprendre c’est tout pardonner” [tudo compreender é tudo perdoar]. E, no interior de tudo isso que se sucedeu, entre o Mensalão e o impeachment de 2016, emergiram eventos imperdoáveis. Sendo a performance criminosamente negativa do PIB em 2015 e em 2016, um grande exemplo para ficar apenas em um.


A totalidade desses eventos emergiu imperdoável por ter reabilitado sobre o Brasil a condição de banana republic em escala planetária. Fazendo o país regredir ao limbo moral de tempos muito antigos. Quando o mundo inteiro ignorava ser o Rio de Janeiro ou Buenos Aires a capital do Brasil. Como, pejorativamente, europeus e norte-americanos fizeram na antevéspera do movimento de 1964.


Foi tanto assim que após a sequência 2013-2016, o Brasil deixou de ser um país frequentável. Ninguém, pelo mundo, queria sair na foto com o presidente Michel Temer – e menos ainda com o seu sucessor. Demonstrando que, ao fundo, a entropia nacional decorria não apenas nem somente da demanda pelos centavos em 2013, a Ponte para o Futuro de 2015-2016, tampouco o “Joesley Day” de 2017.


O problema geral era depositário de catadupas de escândalos insuportáveis. Que nem as mais estoicas nações conseguem suportar. Pois, quando se nota e vê, os recursos existenciais do país simplesmente desapareceram. Foi assim com o Brasil. E se essa pasmaceira toda, do Mensalão ao impeachment de 2016, não fosse suficiente, ainda veio a prisão do presidente Lula da Silva.


É curioso, mas tem sido assim: ninguém entre os maiorais da política nacional quer reconhecer. Do contrário, quer-se tudo esconder.


Mas a prisão do presidente Lula da Silva foi um golpe de misericórdia na estrutura já claudicante da democracia brasileira.


Sem meias palavras, foi um crime – ao menos de lesa à pátria – imperdoável. Que inviabilizou qualquer pacto de decência e moralidade no interior da paisagem política brasileira.


Todos sabem. Mas ninguém quer mexer.


Aquela verdadeira palhaçada destroçou a dignidade do regime político.

Note-se bem e muito bem: país sério – e, até ali, supunha-se que o Brasil o fosse – não prende presidente da República e ponto final. Mas isso assim se fez no Brasil.


Tornaram-se internos, o presidente Lula da Silva e o presidente Michel Temer. E, se isso já não fosse extraordinariamente grave, ainda mantiveram o presidente Lula da Silva encarcerado por 580 dias.


Dito sem pudor: 580 dias de uma das maiores democracias do mundo em agonia.

Uma verdadeira tragédia essa que só aconteceu porque o sistema político brasileiro já estava caduco e as suas instituições, em acelerada decomposição. Com os pactos pela redemocratização, cosidos em longo prazo desde a abertura “lenta, gradual e segura” iniciada pela presidência Geisel, todos depauperados. De maneira que, visto por esse prisma, parece onanismo mental o conjunto de especulações sobre as razões da emergência do momentum Jair Messias Bolsonaro no país.


É, mais uma vez, curioso, mas apenas os irremediavelmente cínicos se espantam com o que se viu no Brasil depois de 2018.


E é curioso porque esses cínicos compreendem, em sua maioria, os mesmos que aderiram ao fajuto movimento “Ele, não”. Que, não ao acaso, foram, em sua maioria, os mesmos que pediram inclementemente a decapitação do ministro José Dirceu na famigerada Ação Penal n. 470. Depois inundaram as ruas pelo “Não vai ter Copa”. E, em seguida, exigiram do PT e da presidente Dilma Rousseff autocrítica transvestida de mea-culpa e reconhecimento de culpa.


Goste-se ou não, foi essa gente – em geral, over educated – que, depois de 2013-2016-2018, passou a alimentar o verdadeiro bang bang no interior da paisagem política nacional. Um claríssimo faroeste que os entendidos conceituam, charmosamente, de ambiente de polarização. Mas, em verdade, todos sabem que se trata de algo muito mais grave. Está-se diante da agonia de um regime. Ou, se se quiser, bem perto do fim absoluto da redemocratização.


Basta-se notar que, depois de 2013-2016-2018, o país reinaugurou o “irmão contra irmão” que todo o processo de redemocratização – que, ao fim das contas, remonta à participação de Ulysses Guimarães nas presidenciais de 1973 – tanto manobrou para eliminar. Fazendo-se, assim, desaparecer, por completo, a civilidade e a urbanidade da interação entre adversários no convívio político e público.


Regressando-se, portanto, aos tristes momentos de batalhas campais nos embates políticos. Momentos esses que – para fazer curto e não retornar, ao menos, às escaramuças encetadas pelos desfechos da Guerra do Paraguai no interior do sistema político brasileiro – ambientaram a Revolução de 30, a problemática de 1932, o Estado Novo, a efeméride de 1954, a crise de 1961 e o movimento de 1964.


Eis o produto do fim da redemocratização. Não dá mais pra esconder nem negar.

Mesmo assim, o resultado das presidenciais de 2022 deixou muita gente aliviada. Era um alívio advinha da ideia que “a democracia venceu”. “Poor nation” [pobre nação]! Todos no andar de cima sabiam que não era bem assim.


Mas, para consolo geral, seguiu-se alimentando autoenganos. Que, pensando bem, duraram pouco. Pois o 8 de janeiro de 2023 esfacelou tudo.


O 8 de janeiro de 2023, em realidade, mudou o nível da situação. Acelerou a entropia do regime. E colocou a redemocratização na UTI.


Consequentemente, o bang bang no interior do sistema político ganhou novo verniz. Os outliers – para o bem e seu contrário – tomaram de tudo conta. O dissenso quase físico virou regra, tornando as batalhas campais palpáveis.  E, contudo, o país – há muito desgovernado –, ingovernável. Todos viram e todos sabem.


E, mesmo assim, desde o andar de cima, levou-se tudo no banho-maria. Deixou-se que doutos deputados, senadores e maiorais da opinião pública e publicada forjassem a narrativa antagonista, vitimista e belicista da “tentativa de golpe de estado”. E, pior, exigindo o justiçamento implacável dos “responsáveis”. Que, ao fim das contas, resultou na prisão de humildes “bagrinhos”. Que, estando no cárcere, só fazem humilhar a classe política brasileira. Que, vista de fora, não passa de um contingente de pizzaiolos aficionados por bananeiras.


Subjacente a tudo isso, a terceira Presidência Lula da Silva, saída das urnas de outubro de 2022, descobriu, rápido e a duras penas, ser impossível reproduzir o resultado das presidências lulopetistas anteriores. De modo que, a esperança que um dia, em 2002 e 2006, venceu o medo, agora, depois de 2022, passou a frustrá-lo. E em todos os níveis. Interiores e exteriores.


A quem duvidar, basta-se notar que agora, sob a nova Presidência de Lula da Silva, o Brasil – que segue sendo um dos países mais importantes do planeta – não possui nada de verdadeiramente relevante para aportar aos dilemas existenciais euroasiáticos, israelo-palestinos e venezuelanos. E tudo isso se deve a uma simples razão que remete ao ocaso da redemocratização. Onde, reconheça-se, os pactos pela excelência do país foram decompostos. E, com isso, o país não se reconhece mais. Adentrou em morte cerebral. Deixando de saber quem é e o que quer.


E, nesse torvelinho macabro, teve início o pleito de 2024. Um pleito que antecipa o furor das majoritárias de 2026. Um pleito onde centenas de milhares de candidatos registraram candidaturas para municipalidades, prefeituras e vereanças, de todo o país. Mas, tão logo dada a largada, todos os olhares foram movidos para São Paulo. Primeiro pela relevância da cidade. Trata-se da maior do país.


Depois pela sua abrangência política. Nenhum outro pleito interioriza, tão decididamente, a totalidade das contradições nacionais –ou, se se quiser, nenhum outro lugar desperta mais a atenção do presidente em turno e de seus homólogos fora do poder.

E, se isso tudo não bastasse, em terceiro aspecto, pela disputa pela gestão de um dos maiores orçamentos municipais das Américas contar com personagens, sinceramente, fora do padrão: sendo os principais Guilherme Boulos, José Luiz Datena, Pablo Marçal, Ricardo Nunes e Tabata do Amaral – não necessariamente nessa ordem.


Era para ser apenas mais uma disputa eleitoral. O 8 de agosto oficializou a largada. Abriram-se as cortinas. Começou o espetáculo. Foi no debate da Band. Boulos, Nunes e Tabata chegaram, por tudo, como insiders. Nunes como prefeito de São Paulo; Boulos e Tabata, deputados federais.


Datena e Marçal, mesmo sem mandato, também vieram como insiders. O primeiro, como sabido, talvez seja o rosto e a voz mais conhecidos do país. Uma inegável vedete do broadcast brasileiro. Um jornalista, digamos, puro sangue. Moldado à moda antiga e representante do que resta da old school. Com numerosos serviços prestados ao Brasil. Mas, após muitas desistências, nunca levado a sério em suas candidaturas a cargos eletivos.


O outro, Marçal: Pablo Marçal.


Marçal, enquanto agente político, atua como protagonista da viração olavobolsonarista que toma conta do país desde o estilhaço promovido pelo Escândalo do Mensalão. Inebriado pelas contradições do processo que se agudizou em 2013 e culminou no impeachment de 2016, ele virou apoiador inveterado do capitão Jair Messias Bolsonaro, sendo, inquestionavelmente, um dos importantes responsáveis pelo sucesso eleitoral bolsonarista de 2018.


Mas, provavelmente frustrado com os furos na embarcação bolsonarista, tornou-se, ele próprio, Marçal, candidato à Presidência da República em 2022. No entanto, por complicações partidárias, perdeu a candidatura. Voltou, então, a apoiar irrestritamente Bolsonaro. E, de sua parte, aplicou para o Legislativo. Elegeu-se deputado federal pelo Estado de São Paulo.


Mas, antes de assumir, foi, a priori, cassado. Mas não desistiu. Seguiu na política. Tentou criar um partido. Não teve êxito. Decidiu, então, apoiar a candidatura de Ricardo Salles para a Prefeitura de São Paulo em 2024. Mas, vendo-a ser rifada, preferiu ele próprio, mais uma vez, lançar-se candidato. E veio. Veio com tudo.


Com um patrimônio de bilhões de reais, distribuídos em dezenas de operações empresariais assim como uma audiência de dezenas de bilhões de pessoas nas redes sociais – 12 para 13 milhões de seguidores no Instagram, outros muitos milhões no Youtube e alucinantes 3,5 bilhões de marcações no TikTok. Francamente, assim, um outlier.


Fora da curva e longe do padrão. Primeiro por sua realidade financeira. Depois por sua presença nas redes. E, por fim, – e, nesse contexto, talvez o mais importante – por ser um mordaz antagonismo ao dito “sistema”, que Olavo de Carvalho inoculou no imaginário de seus acólitos como sendo povoado por “esquerdistas”, “comunistas”, “socialistas”, “estatistas” e – para não alongar muito – “antiliberais”. Marçal, assim, é um agente “antissistema”.


De volta ao 8 de agosto, Marçal não foi bem no debate. Portou-se irritadiço e evasivo demais. Mais que o aceitável pelo decoro.


Entretanto, os seus oponentes também não foram bem. Ou, melhor, foram piores. Todos pareciam aprendizes. O que, para todos, ao fim das contas,foi um péssimo negócio.

Indo por partes. O prefeito Ricardo Nunes se portou visivelmente desconfortável. Feito peixe fora d’água. Tabata do Amaral apareceu combativa. Quis fazer-se viril e detentora de níveis de testosterona que não possui. Como resultado, revelou-se frágil e artificial. Duas qualidades demasiado negativas para a sua postulação.


José Luiz Datena entrou confiante. Mas, nitidamente, confiante demais. Subestimando o cenário e menosprezando os seus concorrentes. Cutucando, portanto, onças com varas curtas. Como resultado, revelou-se uma tragédia integral. Frustrando a todos e a si próprio. Fazendo-se pior que o Tiririca. Que, malgrado jamais tivera algo a dizer, sempre garantiu, com seu carisma, muitos votos. Enquanto Datena, feito candidato, não tem votos e conseguiu, lamentavelmente, derreter, em duas ou três horas, o imenso carisma que naturalmente possui.


Guilherme Boulos foi consistente. Mas, sinceramente, à cotê de la plaque. Em contrário, veja-se. De todos os candidatos, ele é, de longe, o mais, politicamente, arrojado. Entretanto, projetado num passado que não existe mais. Com uma visão fixa diante de dinâmicas móveis. E imbuído de ideias, portanto, frágeis frente a problemas cruelmente complexos.

Restou Marçal. Vale repetir e não precisa se rememorar: Marçal não foi bem naquele debate. E, como resultado, ninguém ganhou o debate da Band. Veio, então, o debate do Estadão, no 14 de agosto.


Era um momento da redenção. Todos os participantes pareciam ter visto assim. Entretanto, Nunes seguiu sendo Nunes e Tabata, Tabata.


Datena – que, sinceramente, deveria, agora, sim, e por razões morais, abandonar a disputa –, por sua vez, conseguiu fazer mais feio que fizera em sua outra aparição.


Restou, então, Marçal e Boulos, Boulos e Marçal. Que, consciente ou inconscientemente, agiram como se fossem Lula da Silva e Bolsonaro. E, com isso, querendo ou não, nacionalizaram o debate. E, ao fazê-lo, explicitaram as fraturas expostas do regime. Demonstraram a todos que o sistema político brasileiro padece de morte cerebral e agoniza na UTI.


Senão, vejamos. Marçal, simplesmente, esquartejou, politicamente, Guilherme Boulos – sem contar os demais oponentes.


Vale, antes de avançar, singelamente, acentuar que Marçal e seus concorrentes compõem o que de pior se apresentou ao serviço da cidade de São Paulo desde que a Prefeitura da cidade voltou a ser disputada por voto direto. Moralmente, uma evidente vergonha. Mas, racionalmente, amplamente, compreensível: só o esgarçamento total do tecido político e social brasileiro – leia-se: o sinistro da redemocratização – justifica a existência política de gente da qualidade de Boulos, Datena, Marçal, Nunes e Tabata disputando a prefeitura do município mais importante das Américas.


De volta ao relato, o efeito moral da atuação de Marçal no debate do Estadão acendeu alertas de incêndio em todas as cavidades da bien-pensance brasileira. Aquela do dito “sistema”. A mesma do famigerado establishment.


“Que horror!”, disseram alguns. “Ele – Marçal – subverte todas as regras”, disseram outros.


Diante da situação, Nunes buscou reforçar apoios com Bolsonaro e com o governador Tarcísio. Tabata foi procurar seus mentores. Datena reconheceu, fisicamente, não ser do ramo. E a situação de Boulos ficou, sinceramente, indefinida. Ele foi materializado como o avatar de Marçal. E Marçal, nessa projeção, moveu contra ele parcelas galácticas de descompostura. De maneira que Boulos perdeu o prumo. Não simplesmente no interior da atual disputa pela Prefeitura de São Paulo. Mas de modo duradouro. Para a integralidade de sua vida política e pública adiante. Enfim, ele sabe e todos sabemos.


E, por ele, Boulos, saber, juntou-se a Nunes e Datena para boicotar o debate da Veja. E, ao fazê-lo, perdeu ainda mais de sua credibilidade.


Todas as pesquisas passaram a indicar que a sua prefeiturabilidade começou a derreter.

É verdade que Datena foi quem mais sofreu. Não pelo efeito Marçal. Mas por si próprio. Nunes também sofreu. Mas, como prefeito, ainda possui amparo em articulações que mantém a sua competitividade. Diferente de Boulos que ingressou em entropia acelerada.

Tudo pelo fator Marçal.


Marçal começou a disputa, em pré-candidato, com 1% de intenções de voto. Formalizou a sua candidatura com 4%. Adentrou o primeiro debate com perto de 10%. E saltou para quase 20% depois dos debates do Estadão e da Veja.


Ou seja, neutralizou Nunes, desconjuntou Boulos, desertificou Tabata e esmagou Datena.

O que, uma vez mais, voltou a colocar o establishment em estado de atenção. Para não dizer, desespero e choque.


Viu-se, assim, rápido, que, continuando nessa marcha, Marçal pode vir a repetir o fenômeno João Dória e vencer no primeiro turno. De modo que, por instinto de sobrevivência, os mandatários do processo passaram a imaginar toda sorte de mecanismos para barrar Marçal. Era necessário, após os debates do Estadão e da Veja, neutralizá-lo. Sendo o meio mais direto, a interdição de seus ativos. Leia-se: as suas redes sociais. Conseguiu-se. Foi o que se fez no último sábado, 24 de agosto.


Não vem ao caso, aqui, adentrar-se no mérito da manobra de desestabilização encabeçada por Tabata do Amaral com o aval de toda a bien-pensance brasileira. Mas é o caso de se notar que o conjunto da obra não joga água limpa no moinho do que resta da democracia brasileira.


Interessa, doravante, muito pouco o que virá depois.

Ganhe quem ganhar, virou imperativo recompor passados e refazer os pactos pela redemocratização. Nada mais.


Os adultos – se ainda existir algum – precisam ser movidos de volta para a sala. Pois, a extraordinária anomia do regime instaurado pela Constituição de 1988 chafurda em pasmaceira. De modo que o Brasil – repita-se, um dos países mais importantes do planeta – corre o franco risco de amargar a iracunda desonra de dar corpo ao verso de Caetano e virar, de fato, o Haiti.


Veja-se e, por favor, reconheça-se: o problema não é o Pablo Marçal, mas o seu efeito. Um efeito, que vale redizer, só existe e vai seguir se perpetuando pela inexistência de uma paisagem política efetivamente saudável e de uma realidade democrática digna desse nome.


Todo o portador de alguma cultura histórica pode imaginar o quanto o doutor Ulysses Guimarães deve estar se revirando onde estiver. O regime político que ele arquitetou chegou a níveis de decomposição jamais antevistos por ele – nem por ninguém.


Do Escândalo do Mensalão aos eventos do 8 de janeiro de 2023, a redemocratização brasileira, sinceramente, apagou-se. E a prisão do presidente Lula da Silva – muito pior que as incontinências e errâncias da Presidência de Jair Messias Bolsonaro – deu-lhe, sem totalmente matar, um golpe de misericórdia. Que, em seu turno, concretiza uma incorrigível derrota moral e intelectual à integridade da sociedade brasileira.


Não é o caso fiar-se em métricas de aferição da qualidade da democracia. A democracia brasileira padece de morte cerebral e segue acamada na UTI. Não existe, portanto, qualidade de vida aferível aí.


Ou, dito de outro modo, vive-se, no Brasil, uma “étrange défaite” [estranha derrota]. Moral e intelectual. Cuja única redenção remete a esforços de recomposição dos pactos por alguma democracia integrada a alguma redemocratização.


Simplesmente, convenhamos, não dá para seguir operando um sistema político onde os seus agentes principais vivem em autoengano crônico identificando a existência de “esquerdistas”, “nazistas, “comunistas”, “fascistas”, “socialistas” e “genocidas” em todas as esquinas.


Veja-se.


Pablo Marçal acredita convictamente que Guilherme Boulos seja a reencarnação de Marx, Lênin ou Stálin. Ao passo que Boulos – malgrado escolarizado – demonstra aludir que Marçal esteja na antessala de Hitler.


Com toda a vênia, a Guerra Fria acabou em 1989, com a abertura do Muro de Berlim, e a tensão Leste-Oeste, em 1991, com a implosão do bloco soviético. Seguir, em pleno século XXI, alimentando, impunemente, essas dualidades não é simplesmente simplificador da complexidade dos problemas e dos dilemas que nos toca resolver, é irresponsável.

Saindo-se da confluência Marçal e Boulos e voltando-se ao alter ego de cada um, Bolsonaro e Lula da Silva, nota-se o quanto essa patologia do autoengano se firmou generalizada.


Se o presidente Bolsonaro fosse realmente a encarnação de Hitler, saber-se-ia que a sua tara residiria na reconstrução de Auschwitz e, por isso, ele deveria ser interditado de todo o convívio político e público. Em oposição, se o presidente Lula da Silva fosse de fato a encarnação do demônio, como acreditam verdadeiramente milhões de fervorosos bolsonaristas – entre eles, Marçal –, Lula da Silva deveria ser exorcizado.

Deixe-se, por favor, de hipocrisia.


Nem uma situação nem outra é real.


Resta, então, a questão: cui bono a manutenção da democracia brasileira em morte cerebral agonizando na UTI?


Diante dessa questão, que alude ao único verdadeiro problema merecedor de discussão, fica evidente a dimensão do fator Marçal.


Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela USP, pós-doutor em Relações Internacionais pela Sciences Po de Paris, pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP e professor na UFGD.

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