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O ‘Evangelho da Razão’ segundo Celso Furtado

Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil

Que diários são estes, escritos por Celso Furtado em diversos momentos de sua vida, e que Rosa Freire d’Aguiar, com criterioso trabalho de organização, nos presenteia? Rosa leu, releu e transcreveu os diários. Elaborou com esmero as notas de rodapé, as apresentações de cada capítulo e a introdução geral do livro, captando o essencial do mundo em que o intelectual se inseria e suas escolhas em cada momento.

Há diários de vários tipos, como nos conta o professor João Antônio de Paula no prefácio. Furtado não era um assíduo praticante dos diários. Quando jovem, prometeu “pegar na pena” quando movido por dois impulsos: “tempo” e “motivo” (p.43). Os diários são “intermitentes”, pois o tempo foi escasso. Por exemplo, não há anotação entre janeiro de 1961 e abril de 1964. Com certeza, não faltaram motivos.

Vale a pena ler o livro inteiro. Novas camadas do economista e cientista social vêm à luz, não apenas para os estudiosos de sua obra, pois revelam com plenitude a sua dimensão humana. Os capítulos podem ser devorados ou saboreados, conforme o estado de alma de quem lê, em qualquer ordem.

Os capítulos 7 e 8 versam, respectivamente, sobre o exílio (1964-1983) e a “redemocratização” (1984-1985) e são mais orgânicos. O capítulo 8 parece uma trama de suspense. É a possibilidade que a história dá a Furtado de voltar ao centro do palco.

Uma observação importante: os diários não foram redigidos com a intenção de serem lidos e publicados. São uma espécie de monólogo interior. Por isso, sequer foram revisados pelo autor. Isso nos permite se aproximar do seu inconsciente. E observar a amplitude do seu raio de visão, assim como os princípios, desafios e inquietações que nortearam o mais fecundo intelectual brasileiro da segunda metade do século XX ao longo de sua trajetória multifacetada.

Vários são os Furtados que comparecem nos diários, com suas diversas idades, estilos e propósitos. Há o jovem solitário existencialista em busca de seu ser no mundo, o homem público no front de batalha, o professor exilado repensando o país com distanciamento histórico e, finalmente, o intelectual renomado a acompanhar os bastidores da transição democrática inconclusa.

Uma palhinha sobre o jovem Furtado. Ao completar o curso de direito, em 1944, ele afirma: “a ilusão de que tinha um papel a desempenhar sob o sol fundiu-se em nada” (p.62). Mas a bordo do navio em que segue para a guerra como integrante da FEB, em fevereiro de 1945, é outro o estado do seu espírito: “se eu chegar a ser um homem excepcional, no futuro, isto não constituirá surpresa para mim mesmo” (p.80). A disponibilidade para agir sobre o mundo pesara como um fardo na juventude, antes que a sua trajetória se entrosasse com a da história.

A leitura dos diários revela, especialmente a partir de 1958, a consciência de ser fruto e agente do seu tempo. O texto ganha em profundidade quando se dedica a reflexões para a sua “autodeterminação” (p.165). Quando ele se põe em contexto, para analisar personagens e processos e decidir o rumo a tomar, mesclando objetividade e convicção.

Mesmo quando penetra no íntimo de si, a sobriedade de homem público e intelectual compromissado dá o tom. Não há espaço para intrigas ou bravatas. Quando muito, desabafos que despeja nos diários. Em maio de 1959, refere-se ao “padre malfazejo” agindo de maneira irresponsável (p.155-156). Em 1984, observa um economista do PMDB fazer seu “jogo pessoal”, movido por “mentalidade tecnocrática”, enfim, um “arrivista” (p.285 e 299-301). Deixo ao leitor a identificação dos personagens.

Figuras políticas: Juscelino, Tancredo e “Dr.” Ulisses

“Extraordinário esse Juscelino”, anota Furtado em 8 de março de 1960. “Estranho esse homem”, ele volta à carga adiante. Na primeira nota, confessa: “não consigo crer nele quando fala” (p.188-189). Quando o presidente dissera publicamente que não o nomearia para a Sudene com o intuito de agradar ao PSD, o fizera por convicção, e não como manobra para acalmar os adversários, como ele sugere a Furtado. JK apenas “assuntava”. Quando, enfim, opta por seu nome, o faz por pressão da opinião pública, pois sabia se mover conforme a onda. Na segunda nota, o economista destaca a completa despreocupação de JK com qualquer coisa que “não diga respeito a ele”. Daí o seu pouco caso com a maioria das pastas: Agricultura, Educação e Relações Exteriores. “Maravilhava-se com a sua própria obra tanto quanto uma criança” – assim, o servidor público avesso a fanfarronices caracteriza o presidente bossa nova (p.188, 195 e 214-215).

Sobre Tancredo, ele escreve em 21 de janeiro de 1985: “continua fazendo o jogo de reinar a distância, colocando-se num plano inacessível ao mesmo tempo em que agrada todos aqueles que farejam para dele se aproximar com risos e blandícias” (p.306). Tancredo evitava se posicionar sobre qualquer questão controversa, mas sempre dando “a impressão de estar fazendo alguma coisa” (p.308). Para então concluir, “uma coisa parece certa, no mundo tancrediano não existe espaço para mim”. O que não o impede de inserir o político mineiro no contexto mais amplo, pois “com a degradação da vida política, esse tipo de liderança torna-se ainda mais eficaz”. Apesar de tudo, “é um homem honrado e tem compromissos com coisas fundamentais” (p.312).

Já com “Dr. Ulisses” percebe-se uma relação de lealdade, mas nunca irrestrita. Furtado procura sempre se ver no olhar dos outros, como na seguinte anotação: “ele me ouviu com aquela atenção cortês com que oculta seu desinteresse por assuntos que não seja a política quente do momento” (p.311). Furtado é a última carta na manga de Ulisses para manter a coerência programática do partido durante a convenção de 1988. Mas ele se recusa a redigir o “novo” programa, contrariando Ulisses (p.383 e 396), por discordar dos rumos da política econômica do governo. Sequer cogita se integrar ao recém-criado partido, o PSDB, por acreditar que “sua verdadeira razão de ser está nas lutas locais” (p.390). Sai do governo, do qual fora ministro da Cultura, logo após a votação do projeto da Constituição. Sua participação na política partidária “fora plasmada pela crise política e pela necessidade de unir forças para recuperar as liberdades” (p.399).

A saga da Sudene

Furtado tem plena consciência do que está em jogo na batalha da Sudene. O papel que lhe cabe cumprir é o de “evangelista da razão …” (p.155). As reticências são suas, como quem reluta diante de uma convicção profunda. Em maio de 1959, escreve uma das mais belas frases de todo o livro: “a sinceridade é também uma forma de demagogia. Se bem utilizada” (p.154). No vaivém das negociações em torno do projeto de lei da Sudene, os momentos de desânimo são sucedidos pela “fé” de que “mudarei os cursos das coisas no Nordeste”. E completa: “se me derem as armas” (p.172).

Ao ser parado na rua em julho de 1959, Furtado descobre que começa a se tornar “uma pessoa notória” (p.173). Por outro lado, surgem intrigas contra ele no Congresso, além de uma insólita ficha policial em que aparece como “agente comunista” (p.175 e 183-185).

A estratégia da Sudene é exposta de maneira certeira: procurar a convergência dos aliados, enquanto desloca as forças do atraso na máquina administrativa. Já identifica os novos opositores: em vez dos coronéis, os “contratistas de obras públicas”. Como atacar o problema da estrutura agrária no Nordeste sem contar com fontes autônomas de poder em outros setores? (p.208-209) – esse é o desafio.

Mas a luta contra o subdesenvolvimento era universal. Em 1960, ao se encontrar num seminário internacional com os novos líderes africanos e asiáticos, Furtado percebe o risco da sua “aculturação”. E vibra com o entusiasmo que desperta quando relata a sua experiência da Cepal: “se eu já não tivesse metido numa batalha, não seria para Paris que eu iria. Iria juntar-me a essa juventude africana inflamada” (p.200-201).

O intelectual no exílio

Difícil exagerar a amargura de Celso Furtado com o golpe de 1964. O evangelista da razão recebe o tranco. Aos poucos se recompõe e inicia uma nova trajetória, que se entronca com a anterior e a transcende.

Os diários revelam as suas angústias existenciais. No exílio, percebe que a sua “paixão pelos problemas sociais corresponde a uma necessidade de tipo quase fisiológico” (p.224). É como se tivessem tirado o ar que respira.

Chega à conclusão de que não fora “nunca apenas ou principalmente um intelectual” (p.224). Mas é assim que ele passa a ser visto no Brasil e, especialmente, pelo mundo afora. Em 1970, seus livros batem recordes de traduções (p.231). “Insensivelmente”, fora “vestindo a pele de um professor universitário europeu” (p.230).

Onde está o problema? Ele mesmo responde: “trata-se de renunciar a toda a ideia de fazer ‘política’” (p.228). Vale atentar para as aspas com que ele envolve a “política”, dimensão presente em cada conceito ou análise de sua lavra, em todos os seus livros. Mais adiante, ele insiste: “existe em mim um sentimento profundo de que sou responsável politicamente, quase uma consciência de culpa” (p. 233).

Em Cambridge, no ano de 1974, ele desce mais fundo: “cada vez mais penso na inutilidade, ou melhor, na ‘insignificância’ do que fiz” (p.233). Mais adiante, vem o terremoto: “Todos os mitos em que acreditei! Existirá algo fora dos mitos, em que se possa acreditar? E será que são mitos quando neles acreditamos?” (p.233). Vence a luta contra a angústia, ao publicar, no mesmo ano, O mito do desenvolvimento econômico, quando após uma sutil autocrítica, dá a volta por cima no terreno da análise.

Logo em seguida, relata a sua experiência depois de uma viagem de cinco semanas ao Brasil. No Nordeste, “mais do que em outro lugar”, “o vício essencial do desenvolvimentismo salta à vista” (p. 239). Notem que o termo “desenvolvimentismo” denota crescimento a qualquer custo, sem reformas inclusivas e estruturais, enfim, uma modernização mimética.

No ano seguinte, em 1975, Furtado passa cinco meses no Brasil lecionando na PUC-SP. Ele se põe em tela, na história: “consciência de ser hoje uma ‘herança cultural’, de ser algo irreversível, que não pertence a uno mismo?” (p.241).

Em seguida, oferece-nos uma de suas sínteses lapidares. A sua geração “perdeu a batalha”. Um novo sistema de poder é erigido em torno do grande capital e suas fortes vinculações externas, das Forças Armadas e de parcela da grande imprensa. Os burocratas já não têm espírito público, pois assumem uma mentalidade de “managers”. O mundo universitário, por sua vez, refugia-se no “academicismo” ou no “oportunismo prático”. Como não há mais espaço para o “otimismo histórico”, cogita abrir mão das suas “muletas epistemológicas”, herdadas de “uma formação meio positivista meio marxista” (p.242-243).

Para quem abre o livro e se depara com o trecho escrito no Rio de Janeiro, em 1982, há uma sensação de transe, como se um bruxo visionário nos visitasse de outro mundo. Furtado começa dizendo que quando “me meti nessas brigas”, era tudo mais fácil: “havia a elite que tudo decidia e o povo esquecido”. “Agora”, ele arremata, “tudo é ambíguo porque a classe média, que acumulou privilégios, se considera ‘prejudicada’, ‘explorada’” (p.273). Hora de o leitor respirar fundo e depositar o livro sobre a cabeceira, para depois seguir adiante.

Eis a magia do livro: o autor não sabe que é lido a anos de distância.

Apenas uma transição

O primeiro ato da peça é assim descrito: “uma mescla de balé e de happening: dezenas de líderes se esforçando para ter um papel num drama que carece de sentido para todos” (p.281). Qual é o papel de Furtado? Ele ainda não sabe. Uma “plataforma coerente” se faz necessária. Elabora um “texto introdutório” para nortear os trabalhos da comissão encarregada do plano de governo, mesmo que isso signifique “legitimar uma eleição indireta”. Do outro lado, estão o candidato Paulo Maluf e o presidente João Batista Figueiredo, que representam uma “afronta à dignidade nacional”.

Todos os movimentos do PDS, inclusive dos seus dissidentes, e os embates internos do PMDB, são narrados de maneira fiel, a partir das informações coletadas junto aos personagens principais do drama. Em agosto de 1984, quando as reuniões passam a envolver os representantes da Frente Liberal, Furtado percebe a gestação de uma aliança tática, “sem convergência de objetivos estratégicos” (p.290).

O senador Fernando Henrique Cardoso o informa sobre os movimentos regionais para as eleições de 1986 e 1988 e sobre a importância de avaliar o “cacife” dos candidatos do PMDB. O economista se dá conta então da “fragilidade” da sua posição: “meu único trunfo é o nome nacional que tenho e a confiança que inspiro por reunir competência e honestidade sem estar ligado a interesses econômicos” (p.293). Aparentemente, era muito pouco naquele contexto.

Mesmo assim, ele não bate em retirada. Produz outro documento, centrando fogo em dois pontos principais: saneamento financeiro interno e dívida externa. É alvejado pela mídia e pelo “fogo amigo”. Para fugir da tocaia, e não ficar com a pecha de “esquerdista”, decide explicitar a sua posição com argumentos técnicos e políticos. Exige assim que os demais membros da comissão mostrem as suas cartas. Aí ele sela o seu destino: ficaria fora da área econômica do novo governo. Mas poderia fazer diferente, sabendo que não teria margem de manobra?

Poucos dias depois da eleição de Tancredo, redige uma lúcida anotação no seu diário. O grande papel histórico caberá à Constituinte. “No mais, teremos uma época de acomodações, de ilusionismo, avanços e recuos”. Seu desenrolar depende da emergência de uma nova geração e de como ela irá enfrentar a “impostura do autoritarismo introjetada, ainda que inconscientemente, por grande parte da classe média” (p.304).

O maior temor de Furtado era ser convidado para a Sudene. Não queria “repetir a sua história”, em um novo contexto político diferente e sem qualquer autonomia para a ação (p.302, 312 e 319). O convite, formulado pelo Dr. Ulisses, para que assumisse a Embaixada brasileira junto à Comunidade Europeia, é recebido com uma espécie de alívio. Encara como um privilégio “participar do processo de reconstrução do país”. Mas fica assegurada a sua independência: não daria apoio explícito ao governo na área econômica e tampouco o criticaria, “ao menos numa primeira fase” (p.313-314).

Em maio de 1985, ele relata a sua experiência ao escrever, em três meses, A fantasia organizada, o primeiro dos seus três livros autobiográficos. O mergulho na história teve efeito terapêutico. A “angústia profunda vai finalmente cedendo” (p.325). Nosso intelectual lança a mente para o futuro, ciente de seu papel no mundo, da sua viva contribuição enraizada na história do país.

O centenário do mestre Furtado

Dois mil e vinte é o ano do centenário de Celso Furtado. Sua obra e a sua trajetória merecem celebração. Mas é preciso ir além, pois vivemos o momento mais anti-furtadiano da nossa história. A crise do coronavírus explicita a nossa crise civilizatória, que tem início quando o capitão pronuncia o seu voto na Câmara dos Deputados no dia 17 de abril de 2016. O destino da nação está mais uma vez em jogo. Momento de conjugar ação e reflexão crítica. Depois do confinamento real e metafórico, é hora de voltarmos às ruas, lotarmos as universidades e enchermos todos os espaços da sociedade novamente. O mestre, com suas sínteses de fôlego e a sempre renovada utopia transformadora, será nosso aliado. Desde que saibamos discutir e aprofundar o seu legado.

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