O enredo da “tragédia” brasileira todo mundo já sabe e vimos claramente as razões pelas quais chegamos até aqui. Embora a covid-19 tenha seu peso, o modelo de gestão da crise diz muito mais sobre os resultados do que qualquer outra variável. Não à toa que EUA, Brasil e Reino Unido são os líderes em número de novos casos e óbitos pela covid-19 no planeta, tendo como gestores, em seus respectivos países, governos de extrema direita que foram eleitos em processos com fortes indícios de fraude, com as famosas fake news (mentiras da rede social). De tal modo que a covid-19 revelou, dentre outros, apenas o retumbante fracasso desse modelo de sociedade.
Aqui, no Brasil, talvez tenha sido pior, pois houve a combinação sequencial de um Golpe de Estado (2016) com a fraude eleitoral[1] do pleito de 2018. Tudo isso como reação da direita brasileira diante das sucessivas derrotas democráticas, semelhante à de um jogador mimado que derruba o tabuleiro de xadrez por não saber jogar e perder de forma digna.
Aliás, é por meio desse pouco apreço as regras democráticas que a elite endinheirada subdesenvolvida se apoia, de tempos em tempos, para assaltar o Estado brasileiro. O fato foi que a direita brasileira apelou ao golpismo e sabotou seu próprio país para tentar mudar o jogo que, ao fim e ao cabo, alçou ao cargo mais importante da República um sujeito completamente despreparado e com traços de sociopatia.
“E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”, diz Bolsonaro sobre mortes pela covid-19.
Nesse contexto, mesmo no capitalismo mais selvagem, como o do Brasil, é necessário ter uma base social para não colapsar. Frente aos efeitos imediatos do coronavírus, o governo bolsonarista cedeu aos fatos e fez uma proposta, em cima do debate puxado pelo Congresso Nacional, de R$ 200,00 para o Auxílio Emergencial cujo montante total representaria R$ 17 bilhões. Isto num momento em que já havia liberado para os grandes Bancos a cifra de R$ 1,2 trilhão (23 de março de 2020).
A oposição formada (PCdoB, PDT, PSB, PSOL, PT e REDE) propôs um Auxílio Emergencial mínimo de R$ 1.000,00, mas foi derrotada pelo suposto “Centrão” – que na verdade deveria se chamar Direitão. A mediação estabeleceu um valor do Auxílio Emergencial de R$600 por pessoa, podendo contemplar até duas pessoas por família; e nos casos de mulher solteira com filhos, o máximo de R$ 1.200 para mães chefes de família.
O embate mostrou a presença das forças democráticas dentro no Estado brasileiro diante da perversidade do governo Bolsonaro e trouxe um pequeno alento a maioria da população. Os dados sobre o Auxílio Emergencial mostram a relevância dessa pequena quantia, porém muito valiosa para maioria dos brasileiros e suas famílias.
As informações obtidas por meio do Sistema Eletrônico do Serviço de Informações ao Cidadão (e-SIC[2]), de abril de 2020, confirmam que cerca de 25% da população brasileira obtiveram acesso ao benefício, com um montante total de repasse de R$ 35,7 bilhões (Ver Tabela 1).
Como esperado, as regiões com maior número absoluto de beneficiários foram Nordeste e Sudeste. Entretanto a primeira região é menos populosa (57 milhões habitantes) do que a segunda (88 milhões habitantes), o que sugere uma quantidade maior de beneficiários em relação a população total no Nordeste, com 371 beneficiários por mil habitante em relação ao Sudeste, com 236 beneficiários por mil habitante.
O Mapa 1 mostra um certo um contraste entre as regiões Norte, Nordeste e parte ao norte da região Sudeste, em cor de preenchimento mais clara, em relação ao Centro Oeste, parte do Sudeste e Sul, em cor de preenchimento mais escura. O que indica maior percentual de beneficiário em relação a população local do primeiro grupo em relação ao segundo.
Desse quantitativo, 41% dos beneficiários estão fora do Cadastro Único (CadÚnico), ou seja, possivelmente microempreendedores individuais (MEI), autônomos, desempregados e trabalhadores informais (precarizados) que perderam seus negócios e ocupação em função do desaquecimento econômico ocasionado pelo coronavírus. Em seguida, tem-se os beneficiários cadastrados no CadÚnico e com Bolsa Família (38%) e os cadastrados no CadÚnico sem Bolsa Família (21%) (Ver tabelas 2, 3 e 4).
A composição entre as modalidades do benefício foi mais desequilibrada entre os grupos com cadastro no CadÚnico sem Bolsa Família e fora do CadÚnico, com média de 88% dos repasses feitos na modalidade de R$ 600,00 contra 12% na modalidade R$ 1.200,00. Ao passo que no grupo de cadastrados no CadÚnico com Bolsa Família essa proporção foi 66% para R$ 600,00 e 34% para R$ 1.200,00.
Os R$ 35,7 bilhões referentes ao período de abril de 2020 foram distribuídos de acordo com a realidade regional vigente do Brasil – Norte (7%), Nordeste (37%), Centro Oeste (11%), Sudeste (35%) e Sul (10%).
Por estrato populacional, as que mais receberam os recursos foram as cidades médias entre 100 e 500 mil habitantes (23%); as cidades grandes acima de 1 milhão de habitantes (19%) e as cidades pequena.med entre 20 e 50 mil habitantes (19%). Esta última tem 16% de participação populacional contra 26% das cidades médias e 22% das grandes, contemplando de forma razoavelmente desconcentrada mais de 64% da população total do Brasil.
Os dados reforçam tanto a importância dos recursos para as regiões mais distantes dos grandes centros urbanos quanto a considerável demanda de ¼ da população pelo benefício. Isto sem considerar aqueles casos em que a solicitação foi negada.
O fornecimento dos dados pelo governo bolsonarista revela outra questão importante. O novo modelo centralizado das informações do Estado baseado na solicitação prévia do E-SIC é mais ineficiente e dificulta o acesso atualizado e ágil para análises fidedignas da realidade do país. O desvirtuamento do E-SIC atrelada aos desejos pessoais sem qualquer aspecto técnico pelo Governo Bolsonaro é um grave retrocesso no processo de transparência do Estado.
À medida que o tempo passa, vai ficando cada vez mais nítido que o papel do Bolsonaro se aproxima muito mais a de um fantoche do mal da elite endinheirada do país, cujas cordas de transmissão estão localizadas na figura do Paulo Guedes.
No dia 22 de fevereiro de 2019, Paulo Guedes pediu redução de perguntas do Censo afirmando que: “Se perguntar demais vai descobrir coisas que não quer saber”.
Essa visão de mundo anacrônica é sintomática de uma gente endinheirada imersa no ódio de classe. O projeto Guedes é na verdade o projeto de subdesenvolvimento levado a cabo pela elite endinheirada do Brasil que, nesses quase 200 anos de independência, reproduz a falta de respeito às leis e à democracia e mantém a miséria social sob a falsa batuta do nacionalismo anticorrupção. Acostumada aos privilégios, o topo da pirâmide não aceita a ascensão das classes de base, mesmo que isso signifique uma perda absoluta de suas riquezas em termos capitalista. Parece que o subdesenvolvimento vem do espírito.
Crédito da foto da página inicial: Ricardo Moraes/Reuters/Agência Brasil
[1] Ainda em investigação no TSE.
[2] O governo Bolsonaro retirou a maioria dos dados disponíveis por meio de tabelas, documentos e extratores dos sites dos ministérios, deixando como um único meio o Sistema Eletrônico do Serviço de Informações ao Cidadão (e-SIC). Este que último que era usado apenas em casos críticos, quando não havia forma direta e rápida de obtenção dos dados do Governo Federal.
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