Toda organização política sofre uma tensão. Se por um lado os seus membros esperam a provisão de certos bens públicos, por outro há a crença extensamente partilhada de que é perigoso dar demasiado poder aos indivíduos.
Isso quer dizer que é preciso controlar o poder político, seja pela via da garantia de direitos e liberdades, seja pela via da accountability, assegurando que os agentes políticos serão responsabilizados perante as suas escolhas. Para controlar o poder, não basta que os governantes declarem seus compromissos com o que é público: aqueles autorizados a governar devem ser responsáveis perante os que os autorizaram.
Na atualidade, reafirma-se como um dos princípios democráticos centrais a ideia de que os governantes devem prestar contas ao povo, responsabilizando-se pelos seus atos ou omissões no exercício do poder (a questão colocada pelo princípio da accountability é como).
Por outro lado, sempre surgem preocupações, especialmente do lado dos que detêm o poder, da força que essas instituições que os controlam possam ganhar: teme-se que o controlador se torne sem limites, que ele se sobreponha e se torne um grande “Leviatã” sobre o governo e sobre a própria sociedade.
Controle demais impediria o desenvolvimento do País, colocaria tantos obstáculos para a execução das ações e políticas que se tornaria verdadeiramente impossível implementar qualquer coisa.
Em se tratando de corrupção – tema tão em voga no Brasil atual – quem estabelece muitos controles “cria dificuldades para vender facilidades”: a cada passo da burocracia, cobrar-se-ia uma taxa (ilegal, diga-se de passagem) para se escapar com mais facilidade, para trazer mais agilidade e possibilitar que aquela ponte seja construída, que o remédio chegue à população, ou para que os funcionários se enriqueçam um pouquinho.
Mas, como cumprir então o objetivo enquanto sociedade democrática de abaixar os níveis de corrupção no governo e ao mesmo tempo conseguir que as políticas sejam feitas e que os serviços públicos sejam oferecidos? A diminuição dos mecanismos de controle no cotidiano do serviço público é algo a ser perseguido em longo prazo: quanto menos controle existir, é porque mais madura a sociedade se tornou.
Adoramos nos comparar com os países do Norte global e nos colocarmos para baixo: veja a Suécia, a Dinamarca, a Finlândia… Todos tão desenvolvidos e com níveis de corrupção tão baixos. É por lá que você encontra mercados em que você chega com seu carrinho, vai à gôndola, pega os produtos, você mesmo passa na máquina de preço e na saída você passa seu cartão e fecha aquela conta.
Ninguém lhe acompanha no processo da compra, nenhum caixa confere com você o que você pagou e o que você realmente levou. Isso implica um grau de amadurecimento do consumidor e de responsabilidade numa situação que está muito à frente do que temos no Brasil de hoje. Como medida em longo prazo, diminuir os controles pode ser algo a ser almejado.
Mas e o país que temos hoje, agora? Será que temos medo de enfrentar a corrupção realmente de frente, colocar um espelho e ver que nós somos também parte desse sistema? Sistema que ainda mata aqueles que ousam se levantar contra ele. Isso mesmo, corrupção mata no Brasil. Enquanto uma ação que exclui os cidadãos do acesso a serviços públicos básicos a que têm direito e que manda matar aqueles que ousam desafiá-la, ela coloca problemas para qualquer regime que se diga democrático.
Se não podemos abaixar a cabeça, o que fazer? Apostar em grandes heróis que irão salvar a nação? Ou quem sabe possamos entender o combate à corrupção enquanto tarefa de construção institucional: são essas instituições, devidamente aparelhadas e organizadas que conseguem ajudar na tarefa de responsabilização dos agentes públicos diante dos cidadãos.
O problema do controle do poder político envolve a manutenção da conexão entre governantes e governados, que a conduta dos primeiros possa ser traçada e julgada publicamente.
Instituições com diferentes papéis e poderes cumprem a tarefa de manter os governantes responsáveis por suas ações e decisões. Elas controlam, verificam, averiguam a atividade de pessoas, órgãos ou produtos para que não se desviem das normas pré-estabelecidas e consigam estabelecer a confiança nas instituições democráticas.
A accountability que realizam envolve o conjunto de processos, procedimentos e valores atrelados a um ideal de responsabilidade, de publicidade e de inclusão, que se realiza nas condições de regimes políticos democráticos.
Se em geral os cidadãos estão mal colocados ou possuem pouca informação ou capacidade para monitorar e decidir se a confiança que depositaram em seus governantes se mantém, a atuação das instituições pode ajudar a certificar essa confiança pública de que os indivíduos estão incluídos nas decisões e ações administrativas que os afetam. Elas podem empoderar a participação dos cidadãos na medida em que lhes disponibilizam informações.
A efetividade dessa accountability dependeria não apenas que uma agência estatal esteja legalmente autorizada e disposta a atuar: ela não é produto de agências isoladas, mas sim de uma rede de instituições. Sem essa rede efetiva, as investigações das auditorias apenas alimentam as críticas da opinião pública sem alcançar solução legal.
Uma vez que a corrupção ocorre – e ela ocorre em qualquer tipo de regime político, variando a sua frequência – a democracia necessitaria, para o não-comprometimento dos seus princípios, que suas instituições de accountability a desvelem, monitorem, fiscalizem e punam, que elas dêem publicidade e estabeleçam julgamentos das decisões e ações dos governantes, para que a presença da corrupção não se transforme em permanência da corrupção.
A democracia precisaria da accountability para não deixar que a presença da corrupção se torne algo permanente, e a exclusão se transforme na norma do regime político – a corrupção da democracia.
Crédito da foto da página inicial: Valter Campanato/Agência Brasil
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