Publicado na Plataforma Política Social em 5-11-2016
Por Davi Carvalho
Christian Dunker. Foto: TV Brasil/EBC/Café Filosófico
Em um dos momentos de crise mais complexos da sua história, o Brasil sofre com problemas que alimentam ainda mais o difícil cenário já instalado. A falta de disposição ao diálogo, a busca por culpados e a transformação da política em algo menor, supostamente sem importância para a vida coletiva e individual, torna nebuloso ou inviável a possibilidade de um futuro esperançoso para o país. Soluções simplistas e superficiais ganham notoriedade no debate nacional sobre a sociedade, a política e a economia. Para entender como todos esses aspectos podem impactar e interferir na vida e na saúde das pessoas conversamos com Christian Ingo Lenz Dunker, professor titular de psicanálise e psicopatologia do departamento de Psicologia Clínica da USP. Com tese sobre as patologias de linguagem ele aponta a reversão de perspectiva de futuro como um dos principais problemas que trouxe o Brasil para o labirinto em que se encontra. “Enquanto se tem um ideal, sabe-se para onde vai e como se enfrenta uma situação. Mas quando se para de sonhar, em vez de o conflito nos orientar para a ação ele se manifesta em patologias sociais, intolerância, desrespeito, crise da relação entre poder e autoridade ou desestabilização de referências simbólicas. Enfim, uma série de coisas que temos visto acontecer de forma mais visível”. Abaixo, confira a entrevista completa e ao final uma palestra de Dunker sobre o Brasil, no Café Filosófico.
Davi Carvalho: Existe uma definição padrão para o que se entende por saúde mental?
Christian Dunker: Não trabalhamos com uma espécie de “padrão ouro” do que seria o perfil de normalidade. Ao contrário do que podemos pensar em relação ao corpo humano, ao organismo, que tem uma relação funcional entre os sistemas. A saúde mental se define muito mais pela capacidade de colocar-se em conflito, suportar seus próprios desvios, criar anomalias e conviver com o fato de que normalidade é uma invenção de nossos desejos de adequação e conformidade.
Talvez, essa pergunta poderia ser substituída por: o que é uma vida bem vivida? Uma vida realizada em seus próprios termos? Para isso temos alguns critérios. Por exemplo, reconhecer e fazer reconhecer seus desejos, a capacidade de criar ideais e suportar suas desilusões, a consequência delirante por trás de aspirações de independência e autonomia. Tudo isso forma os litorais da condição trágica da experiência humana. Reconhecer as condições que permitem eleger fins que se deseja, tanto do ponto de vista da vida que foi individualizada quanto da história que tornou possível essa vida.
O cenário que o Brasil vive, de crises que se retroalimentam, que parecem não apontar para um fim, torna as pessoas mais vulneráveis?
CD: Sim! No fundo a vulnerabilidade é uma palavra que modaliza uma atitude importante, que é a capacidade de se deixar afetar e ser afetado. Nos últimos anos temos vivido um aumento de conflito social, mas de certa forma ele ocorre pela maior visibilidade de contradições antes silenciadas ou suprimidas.
Mas não é porque temos conflitos que sofremos. Há conflitos que têm uma dinâmica produtiva, por exemplo, os que envolvem mudança de posição de classe, seja pela ascensão, seja pelo medo de queda, a possibilidade de que as relações se alterem é extremamente produtiva, mesmo que dolorosa. Conflitos que atravessam a criação de filhos são outro exemplo de como a arte política nos é exigida no cotidiano: uma educação monotemática, unidimensional e baseada em valores certos e indiscutidos, ou seja, sem conflito, é uma educação em geral ruim ou muito empobrecedora. A conquista cognitiva é outro exemplo, o desafio do conhecimento envolve a construção de conflitos produtivos, ela não acontece em meio ao conforto e a segurança. Nem por isso somos dominados pelo sofrimento que eles impõem. Qual a diferença então? Temos uma espécie de arco de destino que sanciona ou rejeita certas gramáticas de conflito, que valoriza ou desacredita outras gramáticas. Ou seja, o que determina a valência política do sofrimento é o saber sobre o conflito, é a nossa teoria da transformação que, por exemplo, lê o sofrimento como sacrifício justo, como caminho para a redenção ou como iniquidade intolerável. A partir desta gramática de reconhecimento podemos acreditar ou nos demitir dos meios para enfrentá-los. Quando a maioria dos eleitores vota nulo, branco ou se abstém, isso significa que nossa teoria da transformação não reconhece mais o sistema partidário, representativo tal qual ele se apresenta, como meio legítimo para lidar com sofrimento que nos toma e com os conflitos que o subjazem.
O que seria essa teoria?
Tivemos uma mudança social significativa, de pessoas que saíram da condição de miserabilidade e formaram uma nova classe trabalhadora ou nova classe média. Junto com isso aumentou brutalmente o acesso à vida digital e suas redes sociais, com seus blogs e com seus youtubers, com seu jornalismo alternativo. Relações históricas de ambiguação e exercício de poder, como a que se via com os empregados domésticos, com os gêneros e com a monocultura discursiva, se desequilibraram. A vida em forma de condomínio havia organizado nossos ideais, mas ela não servia mais como uma boa teoria da transformação, baseada no medo e na inveja como afetos políticos dominantes. O Brasil viu florescer um novo tipo de religiosidade, neopentecostal, com uma crença prática no sucesso e um saber bem definido sobre as modalidades de ascensão social, prosperidade e prestígio. A judicialização da Saúde, da Educação e da política abriram espaço para um novo tipo de apropriação simbólica da justiça. Tudo isso acontecendo levanta o espírito nacional das promessas e esperanças. Em parte elas nos decepcionaram porque se cumpriram, mas em vez do paraíso elas só nos levaram a descoberta de um universo completamente novo de problemas.
O tamanho do mundo se expandiu. Ideais mais simples tornam-se insuficientes para lidar com este tipo de abertura, nossas teorias sobre a transformação entraram em colapso. Quando isso acontece saímos da lógica na qual luto para fazer-me reconhecer pelo meu desejo, cuja lei se concentra neste saber sobre a transformação e regredimos para a contagem dos amigos e inimigos, para a detecção de quem somos nós” e quem são “eles”. Quando nossos sonhos se esgotam, em vez de o conflito nos orientar para a ação, seja ação de transformar o mundo seja o esforço de transformar a nós mesmos, isso se manifesta em patologias sociais, intolerância, desrespeito, crise ou desestabilização das referências simbólica de autoridade.
Quando a relação entre nosso sofrimento e nosso saber sobre ele se desfaz isso começa a produzir sintomas, efeitos massivos, generalizados, capilarizados que têm toda chance de afetar sistemicamente nossas formas de vida, definidas por uma certa relação entre desejo, linguagem e trabalho. Se o conflito não evolui produtivamente, começa a gerar confrontações com o seu vizinho, com a sua sombra, com seus inimigos imaginários. A tensão social que não gera transformação, mas uma espécie de impasse, porque a minha teoria da transformação implica que a do outro tem que ser eliminada. O problema passa a ter um diagnóstico simples demais, simples e malthusiano: tem gente demais no mundo. Tem alguém que está gozando um pouco mais que eu. A felicidade que me falta pode ser corrigida distribuindo infelicidade para os outros, negando-lhes reconhecimento, cidadania ou pertinência simbólica. São respostas muito simples, respostas que polarizam.
Especificamente sobre o Brasil, paramos de sonhar com o futuro que queríamos para nossos filhos, especificamente com os massivo investimentos em Educação que seriam necessários para isso. Paramos de nos preocupar com o desenvolvimento da empresa e começamos a pensar apenas no próximo quarter, em produzir um bonito balanço para os acionistas. Paramos de nos preocupar com a ciência e nos dedicamos a produzir papers que ninguém lê para fazer pontos no currículo Lattes. Paramos de nos preocupar com o sistema político e nos importamos apenas com quem vai ganhar as próximas eleições. Tudo isso é simplesmente corrupção, corrupção branca de nosso compromisso com o desejo. Paramos realmente de nos engajar no futuro com o qual queremos nos fidelizar e a discussão passou a ser quem é quem. Ricos e pobres, negros e brancos, mulheres e homens, Direita e Esquerda. Primeiro vamos saber quem você é, depois pensamos se dá para fazer algo juntos, finalmente depois disso podemos pensar em escutar o que você diz. Aqui a palavra é decisiva para inverter esta crise identitarista que tomou conta do país. Primeiro vem a palavra, depois veremos quem você é. O sofrimento identitário é uma armadilha, pois se há identidades que são sistematicamente silenciadas, tornadas invisíveis e tratadas como zumbis, também é preciso lembrar que quando deposito a causa do meu sofrimento em quem eu sou e não consigo transformar quem eu sou, a transformação possível vai ser no choque com o outro, pelo ódio ao outro, pela identidade do outro. É sempre muito mais fácil suturar sua crise de identidade reforçando a identidade maléfica do outro.
Aí se cruzam política, economia, sociedade, indivíduos …
CD: Há poucos anos tinha-se um arco de futuro, uma expectativa ou esperança. Uma hora você bate a cara contra o muro. Conforme você se aproxima desse muro, ele se projeta para um novo horizonte. Se isso não acontece ocorre essa mutação do saber que organiza nossa relação com o sofrimento. Ora, se não tem futuro, não é só que o passado não importa, mas você destrói o verdadeiro presente. De certa maneira, isso também é um processo global, é um processo neoliberal.Viver sem pensar no próximo capítulo. Reduzir o horizonte, aumentar o tamanho do eu e diminuir o tamanho do mundo. Isso está presente em processos como políticas públicas, que são projetos para se pensar 20, 30 anos. Em vez disso inventamos esta imbecilidade da PEC 241 (agora 55) e o congelamento preventivo do pior. A aceitação de que não conseguimos conter nossa voracidade para devorar o futuro, nos faz assassiná-lo já. Ao fazer isso cria-se uma cadeia de consequências que gera pessoas com atitudes mais predatórias, imediatistas, mais egoístas. Não é o triunfo do individualismo, como uma certa tradição liberal quer nos fazer crer, mas o triunfo dos grupos organizados, com maior poder de pressão dentro do governo que poderão “amassar” os desperdiçadores de dinheiro público: Educação, Cultura, Saúde, Direitos Humanos. Tudo isso vai ser sentido como uma patologia do individualismo, a patologia pela qual eu só posso sofrer como um indivíduo, só posso sofrer na “forma indivíduo”. Se formos fazer valer Thomas Hobbes, e sua guerra de todos contra todos, eu vou me dar mal, se eu não for capaz de instrumentalizar a lei e o recurso que ela legitima, que não é só de coibir a violência de quem transgride a lei, mas de praticar a violência em nome da lei. O que os estudantes das escolas ocupadas estão enfrentando, e isso é só o começo da conversa, ou melhor da falta de conversa.
Mas para uma certa visão de mundo essa atitude é funcional…
CD: Essa atitude que era a forma clássica do liberalismo lidar com o sofrimento, ou seja proteger as relações, as pessoas, os trabalhadores porque isso prejudica a produção. E quando prejudica demais o Estado precisa intervir. Há um certo limite político de quanto sofrimento podemos aguentar. Esta política vai sendo substituída, como aconteceu no Brasil, de 2014 para cá, por uma concepção neoliberal que se especializa em instrumentalizar o sofrimento. Explorar pessoas com jornadas de trabalho além do exaustivo, medicalizar a infância, induzir sofrimento entre equipes para aumentar a competição, instalar gestores interessados em extrair mais valor de mais sofrimento. E aquele sofrimento que não pode ser convertido em aumento de produtividade deve ser ignorado como desvio individual, como o “lobo solitário” que se revolta contra o sistema e sai atirando em todo mundo como um terrorista, como o zumbi da cracolândia que será relegado à sua própria errância. Ou seja, a gestão do sofrimento passa a ser um capítulo fundamental da maneira de entender e lidar com o novo mundo em forma de condomínio.
Isso tem a ver com o que chamamos popularmente de autoestima?
CD: Eu diria que o conceito de autoestima é muito ruim. Ele parece dizer alguma coisa imediata, descritiva e intuitiva, mas é uma noção problemática. Por exemplo, um indivíduo arrogante e que se superestima pode se sentir cronicamente com “baixa autoestima”, porque não atinge seus ideais superinflacionados e na verdade sofre com um complexo de superioridade e não inferioridade. O que Freud chamava de autoestima (Selbstgefüllt) seria melhor traduzido por sentimento de si, o que envolve nosso senso de familiaridade, temporalidade, nossa apropriação das posições de classe, raça, gênero. Autoestima sugere uma dimensão de amor por si mesmo que não confere nem com o amor próprio (amour prope), nem com o amor de si (amour sui). A sede por “likes”, a obsessão com a fama e o efeito celebridade decorre de uma ascensão do amor próprio com um rebaixamento do sentimento de si. Descobrimos assim que temos uma propriedade fundamental: nós mesmos, nossa marca, nossa imagem, nosso personagem social. Como toda propriedade em um mercado de imagens seu valor depende da comparação com outras imagens do mesmo “segmento”.
Mais uma vez é preciso entender que o neoliberalismo não é só um sistema econômico, mas uma forma de moralidade que tem como uma de suas principais características a aceleração do tempo e da vida. O que você provoca em uma pessoa quando você diz que ela tem que viver, necessariamente, 10 anos em 2? Quando ela deve esperar ganhar seu primeiro milhão aos 25 anos? Insatisfação permanente. Isso é que gera a sensação de que seu sentimento de si é baixo, ou seja, a suposição que o amor próprio dos outros é muito mais elevado.
Esse processo todo faz as pessoas perderem a capacidade de reconhecer seus sentimentos, emoções?
CD: Para entender isso é preciso distinguir, no interior da dialética do reconhecimento, o que se reconhece (o si e o próprio), por quem se é reconhecido (o outro e o Outro) e o ato real de reconhecimento. Nesta equação a forma, o outro e o ato pelo qual somos reconhecido determina diretamente o potencial patógeno em termos de sofrimento. Exemplo: caiu uma bomba. Estamos todos na miséria. Sofrimento real, sim, mas eventualmente não patológico, porque estamos todos juntos. Temos que aceitar a tragédia que se abateu sobre nós. Estamos diante de uma situação que interpretamos como universalizável.
Então ficamos sabendo que a bomba só afetou a zona leste da cidade, onde por acaso moramos. É um problema. Alguns são reconhecidos de uma forma, outros se sentirão neuroticamente culpados por sobreviver. Vamos dizer agora que a ONU designe equipes de resgate, mas que elas escolham salvar apenas os motoristas de taxi e os donos de supermercado. A miséria se transforma em revolta. Neste ponto surgem motivos teológicos que justificam que eles e não outros sejam salvos. Nosso próprio sofrimento é transformado em redenção. Veja como o teor de minha experiência de sofrimento se altera em função da minha interpretação da felicidade ou da infelicidade do outro, da justiça ou da injustiça, da autoridade que a nomeia, em função da narrativa que a explica.
E esse reconhecimento se dá através do trabalho, do consumo, tudo que pode ser afetado em períodos de crise…
CD: Um erro teórico é imaginar que se é a favor ou contra o consumo. Se você pensar, o consumo é uma instância extremamente democrática. É uma condição de inclusão. A possibilidade de você entrar em um loja e poder comprar algum produto e ser aceito naquele lugar, em termos de reconhecimento, é um avanço brutal. Ou seja, o consumo não é só uma instância de exclusão, que produz sonhos irrealizáveis e insatisfação infinita, mas de inclusão também. O verdadeiro problema é saber que tipo de gramática de reconhecimento vai aparelhar as relações de consumo. Por exemplo, o Brasil da minha geração, era conhecido como um lugar de consumo conspícuo onde o valor gozoso de um objeto está no fato de que eu posso humilhar o outro causando-lhe inveja. Ele é propositalmente exagerado para que eu possa me exibir e gozar de que o outro não tem o carro, a escola, a roupa que eu tenho, e você não. Se você começa estimular uma gramática de reconhecimento nesses termos, atravessando o consumo, isso vai terminar em violência. Óbvio, o problema ocorre porque está se fazendo algo para ele acontecer. Você destila inveja, junta com ódio e termina em violência. A Esquerda não conseguiu se conciliar com o tema do consumo. Sua versão de interesse público associou-se demasiadamente com o interesse Estatal. Isso bloqueou seu diálogo com as teologias da prosperidade, com a colaboração da sociedade civil, com os movimentos sociais, com os coletivos de cultura, com as universidades. Cultivou-se uma espécie de horror ao dinheiro privado, como se todo ele fosse obviamente demoníaco. Por outro lado, incentivou-se o consumo das famílias, o que teve, sim, efeitos amplamente inclusivos. Ora, se todo dinheiro que toque a coisa e o interesse público só pode passar por dentro do Estado, isso constitui um foco e uma tentação permanente para obter os meios de controle, por onde a corrupção e a instrumentalização do Estado, com o pior dinheiro privado, pode se realizar bem debaixo de nossos olhos.
Ódio e ressentimento …
CD: Existe no Brasil uma ascensão do ressentimento de classe, de gênero. Ele junta todas as problemáticas. No fundo, o ressentimento é uma crença demasiada na onipotência do Outro, que é quem me fez mal. A ideia de que a minha vida não está “funcionando” direito porque o outro fez alguma coisa e me impediu é duplamente problemática. Primeiro porque ela desconhece a noção de pacto social, ou seja, de que alianças e oposições se dão entre sistemas de interesse que não desconhecem o todo. É o que se percebe bem no golpe que assistimos hoje, de um lado a Esquerda sente que foi despojada do poder por meios semi-lícitos, por outro a Direita ficou envergonhada e temos reformas brutais em andamento, segundo o espírito mágico das mãos limpas, ou seja, sem que ninguém pague realmente a conta. Aqueles que eram contra Dilma, de repente se saem com essa de que não eram a favor de Temer, eles só queriam a saída de uma, não a entrada de outro. Logo, quem realmente está vendendo nossos 20 próximos anos para pagar as contas? Quem está pulverizando a aposentadoria e os direitos sociais? Quem vai pagar a conta pelo sucateamento do SUS e das universidades? O senhor Ulisses Ninguém, o Vampiro de Düsseldorf? O golpe não é o impeachment, mas o truque de que ninguém realmente quer isso que está acontecendo diante de nossos olhos. Isso é típico da cultura do ressentimento. Como ela trabalha em um sistema de covardia e desimplicação subjetiva, quando o ódio extermina seus inimigos, depois do duelo e do linchamento vão todos para a casa e voltam a ficar em cima do muro. E na solidão de suas colunas de jornal pensam: “foi ele que me fez fazer isso”. Saímos da cultura do ressentimento para a cultura da indiferença.
É possível tratar isso?
CD: É possível tratar o ressentimento e temos dois recursos para fazê-lo, mas estão sendo completamente ignorados: primeiro a cultura e depois a política. A experiência cultural não é orientada para um fim nem para um gozo imediato. Estamos falando de uma verdadeira experiência cultural, que é a experiência de linguagem, de simbolização, de coletivização e que envolve muitas outras coisas. É muito estranho que em meio a tantos candidatos para a vilania, os grupos escolhidos como grandes “atrapalhadores do progresso nacional” sejam gente como artistas e intelectuais, professores e alunos de escolas públicas. Em meio a tantos cortes, seja o Ministério da Cultura o escolhido. Em meio a tantos problemas a questão para a Educação tornou-se a Escola sem Partido. Obviamente não é pelo poder, nem pela representatividade, nem pelo barulho que tais grupos podem fazer, ainda que tentem, mas porque eles representam este grão de mal-estar que é preciso erradicar. Eles representam a possibilidade que tem que ser negada, ou seja, de que existe vida fora da produção e do consumo, existe vida fora do agora. É por isso que eles são representados como indolentes, aproveitadores e favorecidos. Eles não estão sofrendo como o resto. E em parte isso é verdade, eles sofrem de outra maneira.
A segunda forma de tratamento é a política, mas não gostaria de reduzir esse termo à política representativa, institucional, partidária, que se transformou em um negócio. Isso não é política, é o negócio da política. É a produção e o consumo do empreendedorismo das leis e do uso da violência. Precisamos falar de outro entendimento de política que é uma forma de entendermos que o futuro tem que ver com aquilo que queremos. E o que a gente quer tem a ver com diferenças. E diferenças se resolve pela palavra. Então, é fundamental reinstituuir a política propriamente dita, porque nós paramos de fazê-la, porque nos convenceram de que tudo que ela pode nos dar é este espetáculo farsesco de deputados e senadores. Estamos fazendo outra coisa: gestão de sofrimento, família no poder, moral segregativa, religião de resultados. Tais coisas são a anti-política.
Política é o campo produtivo das diferenças: palavra indeterminada sob condição de conflito, como na psicanálise.
No seu livro “Mal estar, sofrimento e sintoma” você fala da “lógica do condomínio”. Essa lógica baseada na exclusão é próprio de sociedades como a nossa, com grande nível de desigualdade? O que essa lógica explica sobre o Brasil que vivemos hoje?
CD: Essa lógica é coisa brasileira. O condomínio como tipo de habitação e moradia é uma invenção que se disseminou pelo mundo, e nós não fomos pioneiros nisso. Há condomínios por toda parte, mas por aqui eles assumiram uma função social que nos é própria. O condomínio como ideia social de vida, com o muro em estrutura de defesa contra supostos inimigos violentos que ficaram de fora, com o síndico que é o arremedo de político, agenciador das leis, o espaço público mimetizado e reconstruído como uma simulacro em forma privada, uma estética kitsch baseada no corte de renda e no padrão de diferenciação por exagero e dissonância de gosto. Até os nomes das coisas são uma paródia involuntária, “Alphaville” a cidade dos “alfas”, de Godard inspirada pelo Admirável Mundo Novo e sua sociedade castas.
Nos EUA, quando surgiu a ideia de se morar em condomínios, nos subúrbios, isso tinha o apelo do “venha para cá e resgate o multiculturalismo. Restitua o sentido de comunidade que está na origem do nosso país. Um lugar de diferenças reconciliadas”.
No condomínio brasileiro a ideia é: “vamos nos defender juntos, porque o mundo é perigoso”. É outra coisa. Há uma espécie de demissão do Estado. Você empreita as responsabilidades. Mantém alguma responsabilidade com o síndico. E só.
Dentro dessa lógica o muro é um símbolo que impede de ver o outro. Se não vejo, não existe. Se não existe, não me afeta. Se não me afeta, estou dormindo tranquilo.
Mas, quando eu não vejo o outro que me constitui, começam a aparecer nos meus sonhos questões como: “o que tem do outro lado do muro?”. O sonho vira pesadelo. A vida perfeita vem com vizinhos barulhentos, adolescentes agressivos, madames fúteis, com a experiência vazia da felicidade entre iguais. Tudo fica pior que na realidade. É bicho que não tem na realidade, mas o sonho de minha razão e o embrutecimento de minha gramática de reconhecimento cria monstros. Na hora, uma parcela significativa de gente decide sair do “condomínio”, o mundo revelou-se bem outro, e batemos de cara contra o muro que nós mesmos criamos. Sua fantasia do outro como alguém com quem não é possível sentar e conversar tornou você sozinho e pobre. A rua passa a ser vista como uma floresta, cheia de seres perigosos, porque eles podem ser apenas iguais a você mesmo, só que de outro modo, de um modo que anos de condomínio te impedem de perceber.
Portanto, além da novidade política da internet devemos acrescentar a completa inexperiência política daqueles que ficaram aprisionados durante anos em “condomínios”. Quando falo de condomínio não são só os residenciais. A lógica do condomínio é também a que vigora nas prisões e seus PCCs, nas favelas e comunidades, nos shopping centers e seus diferentes muros simbólicos.
Muito do que falamos tem assustado porque ganhou forma e cara nas redes sociais e foi para as ruas…
CD: Nas redes é possível fazer muita coisa boa, mas ruim também. É a primeira geração que tem esse instrumento. Não dá para julgá-la esquecendo disso. Quando se descobriu a radiação todo mundo achava bonitinho. A cocaína era usada como medicamento e fazia parte da fórmula de refrigerantes. Diante das grandes invenções seus efeitos deletérios são descobertos muito depois. É um espaço semipúblico, estamos aprendendo, mas não sabemos usá-lo. Nossa fronteira clara e distinta entre o que é público, o que é espaço público e o que é interesse público está sendo redefinida. Também o que chamávamos de espaço privado, de intimidade, de pessoalidade passa por uma reforma.
Como você tira o pior de alguém? Para além de suas contenções de culpa, inveja, de educação? A sabedoria popular já nos diz que basta dar poder e saberemos quem é aquela pessoa. E o palco da internet é uma estrutura de poder. A mídia social te diz que agora você tem um palco, só seu. Junto com isso vem a ilusão de que finalmente você será ouvido, e o que os milhões que te faziam sentir irrelevante vão se dobrar diante de suas palavras e de suas imagens. Pior que a infelicidade banal é a promessa de que ela é passageira e será superada. Aí as pessoas se desvestem e começam a falar, tem uma reverberação, duas curtidas e você começa a achar que você é o Donald Trump. Obviamente não estamos falando de poder real, se bem que ele exista também nesta situação, mas principalmente do poder imaginário, aquele que concorre para tornar a depressão uma epidemia mundial.
Na mídia tradicional não tem isso. Você só ouve. É a voz do dono da empresa (jornal, televisão, revistas). Antigamente havia uma expressão bem velha chamada “choque de gerações”, para designar a tensão social que faziam dos jovens uma turma de contestadores e revolucionários. Agora que todos são jovens, adultescentes e adoledultos, esquecemos que há uma geração no poder que foi nascida e criada pré-internet, e outra geração que não consegue entender porque certos problemas não são tratados de forma mais transparente, democrática e com participação direta dos interessados, inclusive por meio da democracia digital. Fomos criados com a ideia de que quem fala é que tem poder. Interessante perceber que o ódio, o ressentimento foram feitos em torno de discursos, não das pessoas se encontrando uma a uma.
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