Nos países avançados, incluindo os de tradição econômica mais liberal, as políticas industriais e os bancos de desenvolvimento têm sido usados pelos governos como instrumento contracíclico e de renovação da estrutura produtiva, bem como é crescente sua aceitação pela teoria econômica, mesmo a de cunho mais ortodoxo (ver a parte 1 desse artigo, O ativismo do Estado nas economias avançadas).
Por isso, causa certa perplexidade o fato de que cresce a visão (pelo menos na mídia) de que o Brasil está passando por um brutal aumento do intervencionismo, e que a expansão das atividades do BNDES é a expressão desse novo Leviatã.
Essa visão parece não só menosprezar o que vem ocorrendo no mundo, mas também ignora desafios específicos ao desenvolvimento brasileiro.
Primeiramente, temos o conhecido paradoxo do financiamento no Brasil: nosso setor financeiro privado é hoje extremamente sofisticado e diversificado, eficiente e sólido; porém a oferta de financiamento privado em moeda local é limitada, cara e concentrada no curto prazo.
Essa é uma tragédia de longa data, mas que tem capítulos recentes: mesmo após a estabilização monetária, jamais se conseguiu promover uma redução sustentada das taxas de juros de curto prazo, imprescindível para o desenvolvimento de financiamento privado de longo prazo.
De fato, até recentemente, o setor financeiro privado vinha apresentando sinais de aumento do volume e alongamento de empréstimos, além de novos instrumentos de financiamento de longo prazo.
Porém, com a crise e com o aumento da incerteza, a banca privada se tornou menos propensa a aumentar a oferta e os prazos de crédito (para o comércio e pequenas e médias empresas), assim como o mercado de capitais se tornou mais volátil e menos importante como intermediário de poupança longo prazo.
Em segundo lugar, temos déficits elevadíssimos de investimento de longo prazo (em infraestrutura, logística, modernização produtiva) que afetam a competitividade do setor produtivo nacional. Estes déficits são resultados de pelo menos causas reconhecidas por todos: duas décadas (80 e 90) de estagnação do investimento público e privado de longo prazo – como resultado de uma perversa combinação de ajuste estruturais e profundos desequilíbrios macroeconômicos; e falta de prioridade por parte do setor público em atacar frontalmente estes problemas.
Os últimos 20 anos, caracterizados por um “novo processo civilizatório” (para utilizar a feliz expressão de Delfim Netto) de ampla inclusão socioeconômica, não geraram o problema – mas aceleraram a necessidade de enfrentá-los.
Por fim, assim como qualquer outra economia do G-20, o Brasil enfrenta desafios resultantes dos choques de oferta e da redefinição das cadeias de produção globais.
Este choque não é elementar. Por exemplo, a China, mesmo após o seu ingresso na Organização Mundial do Comércio em 2001, continua sendo ainda um regime no qual o governo tem controle significativo sobre variáveis-chaves para o desenvolvimento econômico: por exemplo, sobre fontes e condições de financiamento, sobre administração de grande parte das empresas produtivas e sobre variáveis macroeconômicas básicas (taxas de juros e câmbio, para citar dois).
Em um mundo de grande interdependência comercial e produtiva, esse é um desafio significativo até mesmo para economias da OECD – com setores produtivos tecnologicamente avançados, infraestrutura desenvolvida e graus de sofisticação altos da mão de obra, serviços etc.; e tem sido este desafio que, como vimos na primeira parte deste artigo, tem justificado o ativismo do Estado nestas economias, especialmente após 2008.
No caso do Brasil, uma economia de mercado em desenvolvimento, não é um luxo contar com políticas e instrumentos para enfrentar tais desafios: é uma questão de sobrevivência.
Por qualquer critério que analisemos, o BNDES tem, ao longo da sua história, e especialmente no passado recente, cumprido seu papel complementar à atuação privada.
Além disto, os mecanismos de controle social sobre a alocação dos seus recursos podem ser sempre melhorados – mas os que regem a supervisão do BNDES (pelo Banco Central, pelo TCU e pelo Tesouro) são reconhecidamente sólidos e transparentes. Isto impede que o banco esteja sujeito ao risco de captura por partes de setores e mesmo dos governos de ocasião.
Ao contrário: há claras indicações de que o BNDES historicamente manteve enorme independência técnica e administrativa, tornando-o praticamente isento de captura. Por fim, como reconhecem diversos estudos internacionais, o BNDES é uma das instituições financeiras de desenvolvimento mais eficientes operacionalmente no mundo.
Em suma, no mundo de hoje, ter um BNDES é um privilégio, que devemos usar sem acanhamento como instrumento para acelerar o enfrentamento dos desafios correntes – mas, especialmente, frente às rápidas mudanças tanto no cenário internacional como no doméstico.
Demandar que a instituição justifique sua atuação, com critérios definidos e transparência, não é só justo como acertado. Refletir sobre formas mais sustentáveis de financiamento das suas operações, e pedir esclarecimentos sobre o objetivo e as consequências das transferências advindas do seu acionista (a União) constitui algo normal em uma sociedade democrática.
Mas parece um erro, perigoso, tentar pintar um quadro no qual o crescimento e as políticas implementadas pelo BNDES apareçam como a expressão de um Leviatã em ascensão, faminto, ineficiente e contrário ao desenvolvimento privado (produtivo e financeiro).
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