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O Baile da Ilha Fiscal de Bolsonaro

A economia brasileira vem manifestando sinais de morbidez, que se vão acumulando e urdindo uma trama intrincada. Precarização do trabalho, estagnação, a volta da inflação, a miséria e a fome se expandem. Novos desafios surgem, antigos se avolumam. A disputa eleitoral que se avizinha – na verdade, já começou, sob as vistas condescendentes das autoridades eleitorais – dificulta o enfrentamento de problemas tão complexos, mas também propicia a discussão pública de que tipo de sociedade aspiramos a ser.

Não é meramente uma questão técnica, como querem nos fazer crer os que criaram essa situação, lucram com ela, nela constroem suas carreiras. A questão é essencialmente política: que rumo devemos tomar?

A partir daí, e só então, os economistas escolhem que combinação de medidas utilizar. Devemos manter a orientação predominantemente liberal que hoje rege a economia brasileira? Ou dar uma guinada em direção a uma economia mais inclusiva, justa e equitativa? O debate eleitoral é um bom momento para cotejar essas visões de mundo. Que as urnas decidam.

1 – A questão do crescimento econômico

Para começar a discussão, temos o baixo crescimento econômico. A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – CEPAL, das Nações Unidas[i], divulgou recentemente as projeções de crescimento para 2022 da América Latina. Estimam que a região como um todo crescerá 1,8%, e o subcontinente sul-americano um pouco menos: 1,5%.

Os índices previstos são baixos, ainda mais se considerando que os dois anos anteriores apresentaram uma recessão causada – ou ao menos aprofundada – pela pandemia de COVID-19. Sobre uma base de comparação deprimida, seria de se esperar índices mais altos.

Com frequência, médias escondem grandes disparidades internas. A CEPAL espera que o Brasil cresça apenas 0,4% – menor crescimento entre as economias do subcontinente, representando menos de um terço do crescimento medíocre previsto para a média dos países sul-americanos.

A ironia é que o maior crescimento entre os países desse conjunto é previsto para a Venezuela, sob bloqueio comercial, militar e financeiro da potência hegemônica global: 5%. Uma das promessas frequentes do presidente Bolsonaro é a de não permitir a “venezuelização” do país. Quem nos dera agora imitar a Venezuela, ao menos nesse aspecto.

2 – A questão da demanda

Bolsonaro será o primeiro presidente em décadas a entregar ao final do mandato um salário-mínimo real menor do que o recebido em sua posse. A Renda Média Habitual de Todos os Trabalhos, medida pelo IBGE, vem caindo, fenômeno que, igualmente, não era observado há tempos. Embora o nível de emprego venha apresentando sinais positivos há alguns trimestres, as quedas da renda média e da massa salarial revelam a deterioração do mercado de trabalho, aprofundada pela Reforma Trabalhista.

Mesmo depois da reforma, a precarização das relações de trabalho segue avançando, como resposta à baixa nos níveis de acumulação de capital. A reação padrão dos governantes e dos economistas liberais tem sido a de prosseguir na destruição das leis de proteção ao trabalhador, para deprimir ainda mais os custos do trabalho. Desta forma, é improvável que o Consumo das Famílias – de longe, o componente de maior peso no PIB – seja responsável por puxar uma recuperação da economia brasileira este ano.

3 – A questão do investimento

Pelo lado do Investimento – outro importante componente do PIB, para além de servir como semeadura do crescimento futuro – as dificuldades não são menos relevantes. A Formação Bruta de Capital Fixo está em níveis historicamente baixos, embora tenha apresentado ligeira alta no quarto trimestre de 2021, na comparação interanual. Mas ainda está distante de recuperar seu ponto mais alto na história recente: o terceiro trimestre de 2013, quando alcançou 21,5% do PIB.

3.1 – Do investimento público

Do ponto de vista do investimento público, a política de austeridade fiscal, com a adoção de múltiplos mecanismos de controle dos gastos, atinge, como de praxe, mais duramente os gastos discricionários, notadamente o investimento. Milhares de obras públicas estão paralisadas ou andando a passo de cágado, em virtude de subfinanciamento.

O orçamento da União para 2022 prevê que apenas 96,5 bilhões de Reais serão gastos com investimento, num orçamento total de 4,8 trilhões de Reais. Apenas 2% do orçamento é destinado à continuação ou ao início de obras de infraestrutura econômica, mobilidade urbana e outras. Nunca o governo federal despendeu tão pouco nessa rubrica. Analistas avaliam que o investimento previsto sequer repõe o desgaste dos equipamentos públicos devidos ao seu uso – a depreciação. Assim, o orçamento federal já precifica um desinvestimento público em termos reais.

3.2 – Do investimento privado

Do ponto de vista do investimento privado, o quadro não é mais animador. A desorganização das cadeias produtivas globais causada pela pandemia ainda não foi sanada, como se vê no caso da falta de componentes eletrônicos que vem ainda prejudicando a produção da indústria automobilística, em queda de 14,3% em relação ao ano passado, segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, a ANFAVEA.

A baixa expectativa de recuperação do consumo interno e o encolhimento do comércio internacional, agora agravado pela guerra no leste europeu, terminam de compor um cenário sombrio para a demanda, ainda sem perspectivas de aquecimento, ao menos no curto prazo. Sem demanda e sem insumos, não há por que investir.

3.3 – Do investimento social

A política de liberação de recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, visando a amenizar os efeitos da queda da renda sobre a demanda, tem baixo efeito sobre o crescimento, visto que muitos usam tais recursos para se desendividarem e poderem voltar a acessar o crédito em um momento mais propício; e a médios e longo prazos debilita o FGTS, importante instrumento de poupança forçada e principal financiador dos investimentos em habitação popular e saneamento básico.

Para agravar, uma proposta legislativa em tramitação, que visa a reduzir a contribuição patronal mensal ao FGTS, de 8% para apenas 2%, e a multa rescisória de 40% para 20% representará, caso seja aprovada, a pá de cal nesse fundo bilionário. Torneiras abertas e entradas reduzidas a um quarto do volume atual, sem considerar a massa salarial, destruiriam esse funding essencial de investimentos sociais.

4 – A questão da inflação

A inflação volta a assombrar os brasileiros. A cada mês, somos informados de uma inflação recorde desde o Plano Real. A taxa anual de inflação, medida pelo IPCA, chegou em abril a 12,13%, e vem escalando lentamente, estando acima de dois dígitos desde setembro de 2021. As principais causas desse surto inflacionário estão nos grupos “transportes” e “alimentação e bebidas”.

4.1 – Dos preços dos combustíveis

A política de Paridade de Preços de Importação – PPI, adotada ainda em 2016 pela Petrobras, é a principal responsável pelo descontrole de preços que se alastra pela economia. A gasolina aumentou cerca de 46% em 2021, e mais 10% em 2022. O litro do óleo diesel – preço fundamental num país de matriz de transportes essencialmente rodoviária – dobrou de valor em cinco anos. Com essa política, a Petrobras vem obtendo lucros trimestrais na casa dos 40 bilhões de Reais, sem reinvestir na prospecção ou no refino, como seria desejável, visto que o país é superavitário em óleo cru, mas deficitário em combustíveis, que tem maior valor agregado.

Em resumo: a sociedade vem sendo super explorada e não colhe sequer os benefícios do aumento do investimento produtivo ou da redução da dependência externa de combustíveis. A quase totalidade desses lucros indecentes vai para as contas bancárias dos acionistas minoritários. Um montante significativo em dividendos é simplesmente transferido para o exterior.

Não é o caso aqui de abordar o debate de como alterar essa política de preços, tão injusta quanto insustentável. Isto tem sido tratado de forma competente por economistas como Ricardo Carneiro, da UNICAMP, e Bruno Moretti, da Assessoria Legislativa do Senado Federal, em artigo publicado pela Carta Capital[ii]e que instruiu proposta legislativa em curso no Senado; e Julia Braga, da UFF, em recente entrevista ao jornalista José Paulo Kupfer, no portal de notícias UOL[iii], entre outros. Os interessados em aprofundar essa discussão têm nessas duas publicações uma boa base de informações.

As propostas incluem desde a criação de um imposto variável sobre a exportação de óleo cru e a taxação dos lucros extraordinários das petroleiras para financiar a criação de um fundo de estabilização de preços, até a adoção de uma política de paridade nacional, que leve em conta os preços de importação, mas não apenas, o que significaria moderar as margens de lucro do negócio petróleo e gás. Qual política será, ao fim e ao cabo, adotada, dependerá da correlação de forças no Parlamento e na sociedade, e da eleição.

A política de desinvestimento em refino contribui para o descalabro. Segundo o economista Eric Gil Dantas, do Observatório Social da Petrobras[iv], o efeito imediato da privatização das refinarias seria um aumento de 19% nos preços da gasolina e de 12% no óleo diesel. Indício disso são os preços mais altos do que os praticados pela Petrobras que já se observam na privatizada Refinaria Landulpho Alves, hoje Mataripe, na Bahia.

4.2 – Dos preços dos alimentos

O grupo “alimentação e bebidas” foi fortemente afetado pela política ultraliberal de desregulamentação do abastecimento, que levou ao fechamento de dezenas de armazéns públicos em todo o país e à liquidação de estoques reguladores de grãos, deixando ao mercado a tarefa de formar livremente os preços, avalia o economista Pedro Rossi, da UNICAMP, em suas redes sociais[v]. Rapidamente, os preços no atacado tiveram fortes altas, o que logo se espelhou no varejo. Fatores climáticos e os preços dos fretes completaram o impulso altista.

4.3 – Da inflação inercial

Problema adicional é o efeito de spill over que já se observa. Preços de energia são básicos, afetam a todos os setores da economia. As altas de preços começam a se generalizar. Em abril, cinco dos nove grupos que compõem o IPCA tiveram variação superior a 1%. Apenas o grupo “habitação” teve variação negativa em relação ao mês anterior. O professor Gilberto Maringoni, da UFABC, alerta em suas redes sociais[vi] para a volta do componente inercial da inflação. Trata-se de fenômeno causado pela persistência no tempo de uma taxa de inflação elevada.

Os agentes econômicos começam a aumentar preventivamente seus preços, com base no ocorrido no passado. Em resumo, a inflação passada se perpetua. Tal comportamento se generaliza pela economia e não é facilmente combatido. Se não for revertida em breve, a inflação tende a perder racionalidade e a se espalhar, escalando rapidamente. Os brasileiros de 40 anos ou mais sabem o sacrifício que representa estabilizar um processo de hiperinflação.

Ademais, a inflação que atinge a cesta de consumo dos mais pobres é ainda maior do que o IPCA, que representa uma cesta média de consumo. A inflação dos pobres contribui para agudizar uma já caótica situação social.

4.4 – Do combate inadequado à inflação

Vivemos um processo de inflação de custos, mas o Banco Central só tem um instrumento para combatê-la: elevar os juros. Esse mecanismo tem efeito sobre a demanda, que está longe de ser a causa do atual surto inflacionário. Porém, não tem ação sobre a causa real, o aumento de custos básicos. É como receitar antibióticos a alguém com a perna fraturada. Reduz o crescimento econômico – já próximo de zero –;é pouco útil para debelar a alta de preços; e, adicionalmente, tem o efeito de piorar as contas públicas, pela elevação do custo do serviço da dívida.

Talvez seja essa a principal razão pela qual os operadores da Faria Lima insistem que devemos controlar a trajetória do déficit (ou superávit) público primário – que não inclui os gastos com juros – e não a do déficit nominal que, por incluir as despesas com juros, vem tendo comportamento diverso do déficit primário. Apesar da austeridade, a Dívida Líquida do Setor Público cresce, se aproximando dos 60% do PIB, mas esse fato não está na ribalta. Tal como os prestidigitadores, os rentistas querem que prestemos atenção a uma de suas mãos, para que não vejamos o que fazem com a outra.

5– A questão da situação social

Todas as causas acima, combinadas, levam a um desastre social de consequências imprevisíveis. A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional – PENSSAN estimava que, ao final de 2020, 19 milhões de brasileiros estavam em situação de insegurança alimentar grave – a fome propriamente dita. Pesquisas mais recentes, como a da Universidade Livre de Berlim, colocam a situação em patamar ainda mais alarmante, avaliando que a fome atingiria mais de 30 milhões de brasileiros, com maior impacto sobre famílias chefiadas por mulheres pretas e pardas, nas regiões Norte e Nordeste, e que têm crianças de até 4 anos.

A reforma da previdência – baseada em cálculos fraudulentos, como demonstrado por Nota Técnica do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica – CECON, do Instituto de Economia da UNICAMP em 2019, coordenada pelo economista Pedro Paulo Bastos[vii]– afasta os brasileiros que exercem trabalhos precários da aposentadoria, reduz o valor dos benefícios e retarda o direito à aposentadoria, tornando-a inalcançável para muitos.

O açodamento, de caráter eleitoreiro, em extinguir o exitoso e premiado programa Bolsa Família e substituí-lo pelo Auxílio Brasil, mal desenhado, não claramente custeado, temporário e que deixa à espera na fila de entrada milhões de brasileiros fragilizados. O Auxílio Brasil pode – e talvez seja – ampliado neste ano eleitoral, mas sem garantia legal de continuidade para além de 2022.

As ruas das grandes cidades estão tomadas por uma população sem moradia, que não tem mais emprego ou como pagar aluguéis. O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – IPEA, calculou que em março de 2020 mais de 221 mil brasileiros dormiam nas ruas. O Movimento Nacional da População de Rua – MNPR, calcula que hoje esse doloroso contingente ultrapasse o meio milhão de pessoas, como informa o noticioso alemão Deutsche Welle.

Os efeitos da austeridade fiscal sobre gastos essenciais, como saúde, educação e assistência social, que vem sofrendo cortes impiedosos, mesmo em tempos de pandemia, completam o cenário de devastação, coroado pela volta do Brasil ao vergonhoso Mapa da Fome da ONU.

Como alerta o lema dos Economistas pela Democracia, “se há fome, não há democracia”.

6 – Conclusões

O quadro que se desenha é de estagflação, grave combinação de estagnação econômica e alta inflação. Nada indica que o governo Bolsonaro fará algo que se assemelhe a controle de preços, elevação da taxa de investimento em detrimento dos controles fiscais, aumento da contribuição tributária dos mais abastados para reforçar os gastos sociais. Nada que desagrade suas bases de apoio entre os rentistas e o agronegócio.

Apesar de todas essas questões e da balbúrdia institucional que alimenta, Bolsonaro é, não nos iludamos, um adversário formidável. Tem considerável base de apoio popular, liderança, apoio na apodrecida cúpula militar e entre as polícias estaduais e a caneta nas mãos.

Mas as suas chances eleitorais, informa a média das pesquisas – há mais de um ano sem variações relevantes -, são reduzidas. A realidade econômica e social se impõe, e o candidato que é seu principal opositor tem a seu favor um histórico de bom governo recente, carisma, amplo apoio popular e internacional, um partido forte e organizado ao centro de uma coalizão que dispõe de militância e capilaridade.

Bolsonaro não está derrotado, mas vê a cada dia se reduzirem suas chances de reeleição. Daí a tentativa de queimar patrimônio público, apressada e descuidadamente. Nacos representativos da Petrobras, ou mesmo a petroleira inteira, que recentemente chegou a ser a maior companhia do hemisfério sul. A Eletrobras, que representa o sistema elétrico nacional de porteira fechada.

Seus apoiadores no grande capital pressentem a descontinuidade do ultraliberalismo que vem permitindo que ampliem suas possibilidades de acumulação pela via da aquisição de patrimônio público a preços aviltados, garantindo-lhes acesso a mercados oligopolizados, sem controle e regulamentação de preços ou de outra natureza.

Por isso têm pressa. Terão tempo para realizar seus planos? Já ecoam em nossos ouvidos os primeiros acordes da orquestra que anima o Baile da Ilha Fiscal do governo Guedes-Bolsonaro.

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