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O atalho soberano

O economista inglês Guy Standing é um pensador de índole provocadora que tem se notabilizado por enxergar, no que chama de “precariado” – conjunto disforme de indivíduos pautados pelas circunstâncias e que vive à deriva – o estrato de onde poderá brotar uma nova ordem social.

Militante da “renda básica de cidadania”, o inglês é também conhecido pela defesa da “democracia deliberativa” e por desconfiar de alguns pilares da luta política do século 20 – o ceticismo em relação ao trabalhismo e às organizações sindicais é provavelmente a sua mais ardida heresia.

Mas em seu livro, “The precariat charter: from denizens to citizens” (Blumsbury, 2013), Guy Standing sustenta um conjunto de propostas que merece uma reflexão por parte daqueles que se arriscam a imaginar o futuro deste cambaleante capitalismo do século 21. A questão de fundo que o preocupa é como garantir segurança social e um nível básico de civilidade a um crescente exército de indivíduos cujos vínculos sociais foram gravemente dissolvidos pela dinâmica do capital globalizado e pela ética utilitária da sociedade de consumo.

Para Standing, a desigualdade é a tônica de nosso tempo, mas ela não se restringe à dimensão econômica. Tão grave é a desigualdade em relação à distribuição dos riscos e das incertezas.

Na medida em que, por um lado, se desconstroem as instituições do Estado de Bem-Estar Social e, por outro, o fator trabalho perde significado no processo de produção – levando com ele toda uma construção social, cultural e ideológica que dava guarida aos proletários de outrora – os despossuídos de hoje são jogados para fora do tabuleiro da civilização e suas vidas vagam a esmo, sujeitas a toda sorte de riscos e a horizontes cada dia mais curtos e opacos. No limite, ávidas por sentido, essas almas penadas são presas fáceis de fundamentalismos das mais variadas cores e, não raro, mandam pelos ares de maratonistas a cartunistas.

É por esse espectro sombrio que Standing vai escarafunchar novos caminhos.  Apostando que aquela gente à deriva – o precariado – ainda há de se tornar vanguarda de uma civilização que resgate a “grande trindade” (liberdade, igualdade e fraternidade), seu livro ousa apresentar uma Carta com um conjunto de Artigos que deveriam ser abraçados por essa nova classe.

Como em todo exercício vanguardista, tem lá suas idiossincrasias, com propostas mais ou menos exequíveis, algumas urgentes, outras ainda no nobre campo da utopia. Mas uma delas parece especialmente relevante para os dias que correm e para o Brasil em particular.

Para poder sonhar com um novo paradigma distributivo, Guy Standing aposta suas fichas na constituição dos Fundos Sociais Soberanos. Em curtas linhas, propõe que ao invés de tentar resistir às forças de destruição criadora do capital, colocando freios e travas ao seu desenvolvimento, deveríamos todos tomar a frente da dinâmica de acumulação do capital, controlando empresas detentoras de monopólios naturais e produtoras de bens públicos, de modo a que suas rendas fossem revertidas para a coletividade.

Em uma concepção, portanto, que se aproxima da ideia de “capitalismo de Estado”, as estatais teriam seus lucros divididos em dois quinhões: um, de menor monta, permaneceria na empresa para financiar novos investimentos e garantir dinamismo econômico; outro, provavelmente mais polpudo, seria repassado a um Fundo Social Soberano, cujos rendimentos seriam destinados a financiar a seguridade social, reduzindo gradativamente sua anacrônica dependência dos encargos sobre a folha de salários.

Para garantir transparência e evitar vícios corporativos, Standing recomenda ainda que tais fundos deveriam ter administração independente do governo de turno e também da administração das empresas estatais. Seriam controlados diretamente pelo conjunto da sociedade, por meio de mecanismos de democracia deliberativa, em que todos os beneficiários decidiriam coletivamente como e quanto seria transferido para cada finalidade.

Sim, a proposta é algo semelhante ao Fundo Social constituído com os royalties do petróleo no Brasil, mas um tanto mais ousada. Também os lucros das estatais (não apenas os royalties, que são uma fração desses) deveriam alimentar esse fundo – experiências semelhantes já operam com reconhecido êxito em alguns países ou regiões ao redor do planeta: os fundos soberanos da Noruega, do Alaska e do Irã são exemplos frequentemente lembrados, a despeito das especificidades de cada qual.

Em última instância, portanto, a aposta de Standing, além de se afastar de qualquer arroubo luddista ou do sonho iluminista do “concerto de nações”, tem o mérito de recuperar os primeiros insights de Marx, qual sejam, de encarar o capital como um poderoso instrumento de eliminação do trabalho vivo e o capitalismo como etapa necessária à socialização dos meios de produção.

Em suma, a estratégia de ancorar a seguridade social de um país a grandes massas de capital, orientadas e dirigidas por interesses coletivos e nacionais, desponta como uma alternativa promissora para contornar os constrangimentos impostos pela mundialização financeira e pela incontornável tarefa de participar de um mercado de bens cada vez mais competitivo.

O modelo de financiamento da seguridade social pendurado na folha salarial torna-se crescentemente disfuncional e, cedo ou tarde, precisaremos encontrar outros instrumentos para manter e até ampliar a seguridade social em nosso País.  Não se trata, por certo, de uma estratégia indolor ou isenta de riscos, mas parece especialmente oportuna para países como o Brasil que, a um só tempo, são ricos em recursos naturais, dispõem de um parque industrial amplo e complexo e ainda almejam consolidar seu projeto de Estado Social.

Crédito da foto da página inicial: EBC

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