O assassinato da vereadora carioca Marielle Franco tem uma soma de aspectos combinados, assim como seu perfil – mulher, negra, favelada, socialista, lésbica, tudo isso e muito mais. O crime, visivelmente encomendado, gerou um conjunto igualmente variado de reações. Algumas foram tão brutais e boçais quanto o próprio ato dos pistoleiros. Outras foram sutis e aparentemente compreensivas, embora claramente orientadas pela conveniência e pela tentativa de cavalgar um movimento ao qual seria difícil se opor sem prejuízo. Este último caso tem sido a “cobertura” da rede Globo de TV.
Talvez alguém me replique que reclamamos quando a Globo põe na tela e reclamamos quando não põe. A questão não é por ou não por no ar – é o modo como se põe e aquilo que se oculta. Não há personagem mais frequente no Jornal Nacional do que Lula. Não pode reclamar, não é?
Mas há algumas das manifestações a esse atentado que nos devem levar a pensar com mais calma nos seus pressupostos, nas raízes da coisa. Vejamos algumas delas.
Houve, como sabemos, um mar de “notícias” caluniosas, tentando destruir a reputação da vereadora. Uma delas, uma das mais torpes, a denunciava como agente de facção criminosa. Chegava ao detalhe de dizer que fora eleita pelo Comando Vermelho, para que o defendesse. Como depois “traíra” seus patrocinadores, teria sido executada.
Parece algo tosco, frágil nos fundamentos. E é. Mas está longe de ser inofensivo, longe de ser ineficiente. Produz o que pretende. Mas o tiroteio, de tão estouvado, dá munição a quem está fora do comando. Assim, um website reconhecidamente de extrema-direita, no afã de deslegitimar Marielle, colheu informações dos mapas eleitorais e mostrou que ela foi eleita… na zona sul, em bairros de classe média. Ou seja, ela não foi votada massivamente onde o Comando Vermelho supostamente tem suas “bases”.
Agora, façamos o exercício que mencionei acima. Vamos parar para pensar nisso para ver em que pé estamos, para além de nossas bolhas de afinidades ideológica, partidárias e similares. O que o site direitoso diz é verdade – e o que indica? Várias coisas a pensar. Algumas delas:
1. A vereadora defendia com paixão e inteligência exemplares a favela, os pobres, os negros e negras massacrados diariamente pelo capital e pela repressão estatal. Mas eles não são seus eleitores. Se isto não é um problema, não sei o que é. Temos que resolvê-lo. Ou pelo menos reconhecê-lo, o que já seria um enorme progresso.
2. A vereadora (assim como Marcelo Freixo) deve sua eleição, sem dúvida, aos muitos votos que conquistou em bairros de classe média (e branca) da zona sul da cidade, não dos subúrbios e favelas. O que isso nos diz sobre esses brancos de classe média? Por que votam desse modo? Não é por afinidade étnica nem por interesse material imediato – não são pobres, nem favelados, nem negros. Talvez alguns votem assim pelo sentimento quase religioso da compaixão. Pode ser, isso existe. Mas, quem sabe, outros votem por uma outra afinidade – podemos chamá-la de ideológica ou política. Por desejarem um outro “desenho”, menos desigual, para a sociedade em que vivem e criam seus filhos. Se não percebemos isso, olhamos com olhos vesgos para a vereadora, para sua imagem política e para o próprio crime, suas motivações e seus efeitos e desdobramentos.
Costumamos dizer que pessoas encantadas como Marielle são a voz das favelas. Mas essa é a voz dos sem voz, dos que não podem falar. Aparentemente, mais ainda, voz daqueles que recusam falar mesmo no momento anônimo do voto (que talvez não julguem anônimo, não é?). E isso também é um problemão.
Ainda vai levar um tempo para que isso mude. Um velho camarada, há 50 anos, me disse algo engraçado e ao mesmo tempo trágico: se o proletariado souber que nós falamos em seu nome, ele nos processa. A consciência “empírica” e a consciência “atribuída” ou “histórica” estão bem descoladas. Isso é mais do que uma pedra no meio do caminho. É toda uma pedreira.
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