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Não somos Charlie: os dois pesos da vida no debate sobre a tragédia

O assassinato dos cartunistas de Charlie Hebdo é algo de fato terrível, trágico e escandaloso. O caráter irrevogável da morte é um dos dados mais chocantes da existência humana, algo com o qual nós, os vivos, nunca nos acostumamos. Para além da pura lamentação, resta-nos tentar compreender o ocorrido e tirar as melhores lições possíveis para orientar nossas ações futuras.

É necessário primeiro fazer algumas distinções em relação ao conteúdo desse debate. Algumas questões nele são de ordem moral; giram em torno do valor do justo, do correto; outras são de ordem política e dizem respeito às instituições, forças sociais, valores de comunidades concretas.

No caso em pauta, a maior parte das questões de natureza política concerne a França, suas leis, direitos, cultura política, partidos, movimentos sociais etc. Claro que há ressonâncias de ordem internacional, relacionadas às comunidades islâmicas em outros países, ao “Ocidente” e suas políticas nos países de maioria islâmica, a Israel, mas elas são menos relevantes.

Aqui entra meu primeiro argumento: para melhor compreendermos o que se passa é importante conhecer a política francesa, mas não é necessário que tenhamos uma posição política acerca do ocorrido.

Não sou cidadão francês, não tenho direitos naquele país tampouco deveres que não os de estrangeiro visitante quando por lá passo. Tenho enorme simpatia pela contribuição dos franceses ao mundo, nas artes e no conhecimento. Mas preciso reconhecer que os problemas políticos e sociais da França estão fora da alçada de minhas ações.

No máximo, tenho algum investimento na posição da política externa brasileira em relação àquele país, mas isso é pouco. Em suma, je ne peux pas être Charlie, nem que quisesse. É claro que tem gente que acha que podemos ter posições políticas acerca de tudo, pois há um debate universal de valores que açambarca toda a humanidade. Essas pessoas, a meu ver, simplesmente estão erradas, pois esse debate é no máximo moral e, como pretendo mostrar, ainda assim equivocado quando tomado de uma posição radicalmente universalista.

As questões morais suscitadas pelo caso são de grande interesse. Quero chamar a atenção apenas para uma dentre as que foram exaustivamente esgrimidas nos textos, artigos e posts que trataram do affair Charlie Hebdo até agora: o direito à vida.

A defesa do direito à vida é um dos princípios fundamentais do constitucionalismo moderno, mas, da maneira como é colocada nesse debate, se apresenta como um princípio moral universal: todos os seres humanos têm direito à vida.

Esse é um princípio muito bonito e inspira um sem número de boas ações. Contudo, para melhor avaliarmos o que está em jogo aqui precisamos descer do espaço rarefeito habitado pelos grandes princípios abstratos e perguntar: quem de fato goza de direito à vida, e quem tem esse direito frequentemente negado? Aqui é que o caldo entorna, pois as violações do suposto direito à vida dos povos muçulmanos perpetrados pelo Ocidente ao longo dos séculos são tão abundantes que dispensam recenseamento detalhado.

Numa brevíssima lista temos Cruzadas, Reconquista da Península Ibérica e colonialismo, do qual a França participou com afinco aguerrido até a década de 1960! Mas o que mais afeta a comunidade muçulmana francesa do presente é a islamofobia nacionalista, bandeira da extrema direita que conta com adeptos mais ou menos aguerridos em outras searas do espectro político.

Além disso, há laços de solidariedade entre as comunidades muçulmanas francesas e outras comunidades muçulmanas que sofrem atrocidades nos dias de hoje, seja da política externa norte-americana, seja do Estado de Israel.

Muitos que se levantaram em defesa do semanário nos últimos dias dizem que ele tratava com mordacidade igual todas as religiões. Essa é uma brutal falácia, como bem mostra Tariq Ali em artigo recente. O Charlie Hebdo batia no cristianismo, poupava em grande medida o judaísmo e massacrava o islamismo. O desequilíbrio é muito patente para ser ignorado por uma pessoa de boa fé. Tal desequilíbrio em um país já eivado pela islamofobia é duplamente condenável do ponto de vista moral.

Humor corrosivo

Muitos que defendem o semanário acham que os muçulmanos deveriam ser forçados pelo humor corrosivo do periódico a aprender a rir de seus próprios valores, usos e costumes, assim como cristãos e judeus. Ora, estudos sociológicos mostram que minorias discriminadas e socialmente marginalizadas tendem a se agarrar aos poucos elementos de solidariedade à sua disposição. A religião muçulmana faz esse papel. E é ela que permite inclusive a solidariedade desses franceses com outras comunidades muçulmanas do mundo. Agora, cobrar de quem já está em posição de desvantagem que abra mão de seus parcos instrumentos de solidariedade social, ou que ria deles, com o espírito aristocrático com que Voltaire ria do absurdo das narrativas do Velho Testamento, é o máximo da crueldade.

Nada disso, contudo, é justificativa para assassinar os cartunistas. Mas já que o tópico é o direito à vida, comparemos a onda de indignação que se levantou após o ocorrido e a indignação gerada pelas torturas, prisões ilegais, assassinatos, bombardeios com inúmeras vítimas civis executados pelos Estados Unidos contra muçulmanos ou as ações homicidas do Estado de Israel contra palestinos civis e vejamos a indignação que esses crimes provocam.

Parece claro como o dia que, aos olhos de muitos daqueles que hoje “são Charlie”, as vidas desses quatro cartunistas franceses valem muito, mas muito mais do que as vidas de centenas de milhares de muçulmanos assassinados cruelmente, isso sem mencionar os inúmeros atos de privação de liberdade e de propriedade perpetrados contra essas pessoas e seus parentes, como é o caso da política de demolição das casas das famílias de palestinos condenados, praticada por Israel.

Quem grita “Je suis Charlie” e cala quando tais crimes contra muçulmanos são praticados não está defendendo um direito universal à vida.

O affair Charlie levanta questões morais que não são nada fáceis. Posições apressadas, baseadas em princípios universais e sacrossantos estão fadadas ao erro grosseiro, à insensibilidade em relação às complexas relações do contexto onde se desenrolaram os acontecimentos. Toda vez que a moral humana é pensada fora de seu contexto, fora de sua aplicação, da relação de seus princípios com a vida real das pessoas, ela se torna mera abstração metafísica, em uma palavra, ela vira religião. Não é disso que estamos tratando aqui – com ironia, por favor!

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