A pandemia mostrou o lado mais perverso de uma visão de mundo baseada na crença de que o Estado brasileiro está “quebrado” e o gasto público é o principal vilão para a saúde da população e econômica do país. A perversão se explicitou sobre um mercado de trabalho precarizado, com rebaixamento da remuneração salarial e ainda alto desemprego. Ela se deu com a retórica de que cada um é responsável individualmente por sua própria situação, ao invés de o Estado garantir mecanismos de proteção econômica para empresas e grupos sociais. Cabe lembrar que o Brasil anterior à pandemia enfraquecia os mecanismos de proteção já existentes e vivia um quadro econômico recessivo sem sinal de recuperação sustentada. A situação da pandemia apenas agrava esse quadro, não sendo a causa dos problemas socioeconômicos que são anteriores.
A despeito disso, a pandemia colocou na ordem do dia a solidariedade humana e a possibilidade de recriar a ordem mundial baseada numa reavaliação da necessidade de um Estado de Bem Estar Social. Ganha evidência que terão sucesso nesse reordenamento aqueles países que garantirem capacidade de coordenação dos Estados, especificamente através da reorganização de uma poderosa estrutura de planejamento público e seu sistema de incentivos.
Nesse sentido, ganha evidência o debate sobre o grau de disfuncionalidade de nossas regras fiscais para atender esses objetivos, e seus reflexos sobre os condicionamentos impostos aos gestores públicos no que se refere a políticas de austeridade. É forçoso reconhecer que a evidência dessa disfuncionalidade está longe de um consenso na opinião pública. Inclusive os adeptos do liberalismo, na qual as regras fiscais estão baseadas, já buscam uma “nova” retórica para colocar o papel do gasto público como um caso particular ou uma exceção temporária. Buscarão ao máximo preservar as regras fiscais, abrindo espaço só para flexibilizações pontuais e circunstanciais, e tentando impedir uma superação do quadro normativo conservador.
O reflexo disso no quadro federativo explicita essa contradição. Cabendo aos governos estaduais e municipais darem respostas rápidas e estarem totalmente atados financeiramente. Há a possibilidade de uma agenda política que rediscuta a responsabilidade pública não só na escala nacional, mas também nas escalas subnacionais. O que significa que há uma janela de oportunidade para refortalecer o pacto federativo com um modelo mais cooperativo.
Portanto, se há coronovírus e sua pandemia é uma realidade, não há razão de se sustentar o “coronadilema” entre compromisso com a saúde pública e com a garantia de emprego e renda. Só o dogmatismo cego ao custo social e uma ideologia antiestado permitem sustentar um dilema entre princípios constitucionais. Para o período pós-pandemia, a agenda política passa por uma discussão na qual sistema de saúde e os complexos da economia nacional sejam mais integrados numa mesma estratégia de desenvolvimento.
Torna imperioso a organização desse debate de forma unitária e que garanta seu uso como arma retórica na luta política de forma urgente. Portanto, o desafio de se criar uma plataforma no combate ao “coronadilema” e que aponte a possibilidade de superar paradigmas envelhecidos: seja na rigidez da política fiscal, seja na relação federativa tensionada, seja na desprioridade das políticas sociais. Que essa movimentação seja executada antes que as contradições ora explícitas sejam ocultadas.
Crédito da foto da página inicial: Thomas Peter/Reuters/Agência Brasil
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