Teremos um cenário em que cada vez mais empresas tentarão ocupar o lugar dos estados na esfera decisória. E empresas, diferentemente destes, são insensíveis às desigualdades humanas. Em paralelo, identitarismo e cultura woke desmoralizam a política e a dimensão coletiva
Jacques Attali* tem o raro encanto de provocar sem desolar. Em uma recente manifestação na França, por ocasião dos 50 anos da Unesco, em Paris, ele apresentou um cenário espetacular sobre o destino mundial próximo, logo ali, em 2050, que nos convida a pensar, meditar, refletir e agir.
Partindo de uma extensa base de dados públicos e privados produzidos e divulgados por variadas agências internacionais, ele avançou sobre algumas variáveis que vão modificar a face do planeta nos próximos dias, meses e anos até o meio e o fim deste século. A primeira diz respeito à demografia.
A população mundial dos oito bilhões de habitantes atuais tende a chegar aos 9,5 bilhões em 2050, sendo que, ao menos, quatro bilhões de pessoas estarão espalhadas pelo continente africano. Alguns muitos países “velhos”, que perderam a sua janela demográfica e possuem alta longevidade entre os seus residentes, por ausência de taxas positivas de natalidade e reposição humana, tendem a desaparecer ou diminuir muito de sua relevância atual.
Pelos cálculos de Attali, esse namoro com a irrelevância está para ser o caso de Alemanha, Itália, Espanha, China, Coreia, Japão, Rússia. A China, especialmente, parece que vai envelhecer antes de enriquecer. A Itália e a Alemanha, notavelmente, parecem que vão envelhecer mais e, inevitavelmente, empobrecer.
Essa movimentação demográfica desparelha tem tudo para agudizar, ainda mais, os movimentos migratórios presentes.
A explosão imigratória hodierna decorrente, particularmente, da falência de estados no Oriente Médio, na África e na Ásia, doravante, tem tudo para aumentar devido ao aumento de incertezas sociais mediante crescentes desigualdades multidimensionais que o mundo inteiro tem vivenciado, especialmente, após a pandemia de covid-19, no biênio 2020-2021.
Ao sul do mundo, por exemplo, aproximadamente 50% das pessoas, em 2050, estarão residindo em lugares, cidades ou países distintos dos quais nasceram. Adicione-se a isso, o agravante climático que impõe deslocamentos relevantes em muitas partes do mundo. Note-se, por exemplo, a situação dramática e sintomática do Paquistão.
No Paquistão, por sabido, intempéries entre temperaturas extremas que ultrapassam os 50 graus e inundações imensas, causadas por recorrentes temporais descomunais, tornaram-se comuns, normais e insuportáveis. Esse verdadeiro Armagedão climático por lá já deixou, nos últimos anos, mais de 30 milhões de paquistaneses sem moradia, esperança nem destino.
Nenhum país consegue administrar essa intermitência de tragédias incólume. O fluxo de migração, forçada ou não, tende, assim, a se impor como a saída estatal para a manutenção da existência de seus nacionais.
Outro desafio logo ali, daqui cinco, dez, vinte e/ou trinta anos, diz respeito à aceleração das mutações tecnológicas impetradas pela Quarta Revolução Industrial.
A internet das coisas já é uma realidade em muitas partes do mundo. O Metaverso começa, pouco a pouco, a tomar conta do cotidiano das pessoas. Mesmo das mais desprovidas de demais equipagem econômica, social ou cultural. Mas outros e novos avanços na popularização, por exemplo, do uso de hologramas, nanotecnologia, biotecnologia, computação quântica, automação e afins tendem a modificar a capilaridade das relações entre os humanos.
Se o celular, hoje, representa uma inquestionável prótese de uso constante e massificado, outros aparelhos e tecnologias, de uso também diuturno e colados ao corpo, vão se impor nos anos a seguir.
Geopoliticamente a concepção de poder, que vem se modificando, progressivamente, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, vai ganhar feições mais claras, abstratas e letais. O conflito ucraniano – que todos sabem não se tratar de uma guerra convencional tampouco de uma contenda somente entre Rússia versus Ucrânia, mas, efetivamente, de uma tensão mundial para a manutenção e/ou o restabelecimento de forças de hegemonização planetária – dá mostras efetivas dessa mutação na compleição do poder.
O império norte-americano, como participante ativo do contencioso ucraniano, agarra-se como pode em suas bases atuais de poder e hegemonia mundiais. Mas o seu declínio relativo, que vem desde muito constante, vai, claramente, acentuar-se.
Parece pouco provável que, logo ali, em 2050 ou mesmo em 2100, os Estados Unidos sejam destronados de sua condição de maior potência hegemônica no mundo. Contrário a todas as especulações, a China, especialmente pela projeção de queda demográfica, mas também por questões de natureza cultural profunda – vale reconhecer que os chineses, diferentemente dos ocidentais, não possuem vocação messiânica de levar a verdade e a iluminação a todos os povos –, vai, mais e mais, abdicar da condição de concorrente dos Estados Unidos ou aspirante ao posto de líder hegemônico global.
Em caso de declínio e queda súbitos do império norte-americano, é provável que se reavive a mesma realidade histórica de ausência de dominância imperial mundial como ocorreu após o desaparecimento do império romano, no mundo antigo.
Vale ressaltar que depois do desaparecimento do império romano, o mundo ficou sem liderança hegemônica até a emergência das cidades-estados italianas ancoradas, politicamente, em Veneza. Substituída pelo império Habsburgo holandês. Em seguida, pelo Reino Unido. Para, apenas, no entreguerras do século 20, os Estados Unidos mostrarem a sua face irresistível de hegemônico absoluto no sistema internacional.
Parece, hoje, bem claro, que a desmoralização da política e o féretro de democracias mundo afora causam um vazio intenso preenchido por empresas mundiais. Empresas tangidas pela financeirização do mundo e fiadores incontestes da globalização irresistível desde os anos de 1970. Empresas que, muita vez, aspiram à compleição de poder decisório mundial em lugar de estados.
Entretanto, empresas, diferentemente de estados, possuem integral indiferença e insensibilidade ao encontro de desigualdades humanas. A inovação acelerada que elas, empresas, produzem não reduz, em contrário, aumentam as desigualdades.
O fim dos estados e o fim da capilaridade mundial de alguns estados tende a gerar, assim, ainda mais, anomia pelo planeta, hoje, já, soterrado em penúrias e tragédias sem fim.
O identitarismo ambiente e a cultura woke, por sua vez, com a crescente desmoralização da política e do poder estatal, tendem a ampliar a dimensão egocêntrica da vida.
Essas duas realidades – identitarismo exacerbado e wokismo mal-intencionado – enfatizam a liberdade absoluta sem notar que esse tipo de liberdade solapa toda possibilidade de construção de laços de solidariedade e pactos de lealdade entre pessoas, culturas, estados e coletividades internacionais.
Vale sempre lembrar que, jamais, houve sociedade sadia, desde o mundo antigo, sem níveis importantes de solidariedade e lealdade.
Que, diante de tudo isso, fazer?
É a pergunta que Jacques Attali deixa no ar e, para a qual, parece caber a todos nós tentar responder.
* Economista, escritor, professor na Escola Politécnica francesa, fundador e primeiro presidente do Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento – BERD, diretor do grupo Positive Planet. É conhecido pelo público internacional, especialmente, por ter sido o conselheiro especial do presidente socialista François Mitterrand, entre 1981 e 1991.
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela USP, pós-doutor em Relações Internacionais pela Sciences Po de Paris, pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP e professor na UFGD.
Crédito da foto da página inicial: Colin Behrens/Pixabay
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