Cientista social formado pela USP (Universidade de São Paulo), Martins fala das propostas do grupo, que já se reuniu duas vezes com a presidenta Dilma Rousseff. Defende, por exemplo, que a revolução no esporte só será possível com a criação de um novo calendário, o que resultaria em um futebol de melhor qualidade para os grandes clubes e mais sustentável para os pequenos. E com um “fair play financeiro”, um sistema de controle de finanças para obrigar os clubes a gastarem apenas o que arrecadam.
Leia a entrevista a André Biancarelli e Joel Santos Guimarães:
Como surgiu o movimento? Quais são os seus objetivos?
Borges Martins – O movimento surgiu em setembro de 2013, numa partida entre Coritiba e Internacional, em que Alex, meia do Coritiba e Mozart, zagueiro do Internacional, se encontraram depois de muito tempo.
À conversa se juntaram Juan, Lincoln e o D’Alessandro, que também já haviam jogado na Europa. Juan disse que a volta estava difícil, porque tinham cinco jogos em 12 dias e todo mundo estava cobrando do Dunga, na época técnico do Internacional, mas ele não tinha tempo para treinar o time. E, por isso, era impossível praticar um bom futebol, de qualidade, sem tempo necessário de preparo.
O Paulo André, então zagueiro do Corinthians, soube dessa conversa e, muito interessado nessas questões, viu que ali havia um ambiente de mudança. Daí, o Paulo ligou para o Alex e começaram a conversar sobre o que poderia ser feito para melhorar o futebol no País.
Os próprios atletas foram atrás de outros profissionais que já trabalhavam com o tema nas mais diversas áreas e começaram a levantar quais eram as principais pautas e o que poderia ser defendido como bandeira e o que poderia ser feito de forma diferente na CBF. E quais foram as pautas levantadas?
Duas: calendário e fair play financeiro. O calendário é a busca por um calendário mais equilibrado em que os clubes da elite joguem menos. Hoje os clubes da elite jogam, em média, 40% a mais do que os clubes na primeira divisão da liga inglesa. E, em contrapartida, que os clubes menores no Brasil tenham jogos ao longo do ano. Para se ter uma ideia, dos 684 clubes profissionais existentes no País, 583 não têm calendário anual. Ou seja, 85% dos clubes ficam inativos por mais de seis meses.
Os clubes inativos e os jogadores desempregados…
Exatamente. Hoje, no Brasil, existem 25 mil atletas em atividade. E esse número é subestimado. A última pesquisa feita pela Universidade do Futebol dá conta de que 85% desses jogadores recebem menos de dois salários mínimos mensais e existe um desemprego muito grande. Na verdade, o futebol, para grande parte desses atletas, é um subemprego.
Qual é a proposta do Bom Senso para mudar esse quadro?
Criamos uma proposta de calendário que teria uma série E. Seria uma liga nacional, mas para disputar em microrregiões, e que teria um custo de jogo muito mais baixo, porque a gente sabe que esse custo é pago pela própria CBF e a CBF hoje patrocina essas séries E e D.
Quanto custa esse patrocínio?
Ela paga transporte e hospedagem para os clubes da série E e D. São 60 clubes, são R$ 40 milhões para financiar 410 jogos. Nós defendemos a realização de 9.300 jogos na série C, D e E com um custo de R$ 93 milhões, o que diminuiria em 10 vezes o custo de um jogo. Essa é uma das nossas sugestões para a elaboração de um novo calendário para o futebol brasileiro.
E o que impede a implantação desse calendário?
O calendário é uma demanda da CBF, é de competência dessa entidade que administra o futebol e sobre a qual o governo, o Estado, não tem nenhuma interferência e não pode ter. Essa entidade tem autonomia e administração própria.
É possível fazer uma reformulação no futebol sem que se reformule a CBF?
Não, a CBF tem o monopólio do futebol. Mas é claro que é possível que se crie uma associação ou se forme uma liga e coisas do tipo, como acontece em outros países. Mas não existe ambiente aqui no País para isso.
Por quê?
Existe certo clubismo, se é que dá para chamar assim, entre os próprios clubes, que se veem como rivais e dificilmente colaboram para que se consiga alguma coisa em benefício mútuo. O que se vê é a CBF centralizando isso. Portanto, é um cenário muito difícil para a criação de uma liga.
Mas é possível intervir na CBF?
É possível, sim. Se, por exemplo, mudarmos a Constituição. No caso, o artigo 217, inciso 2, que trata da autonomia dessas entidades na administração do desporto e essa autonomia é uma autonomia regrada. Ela poderia ser regrada de tal forma que a CBF passe a se adequar a determinados padrões de governança, de gestão. É possível, sim, que o governo intervenha. É um caminho difícil, pois exige uma PEC.
Existe outra alternativa?
Outro caminho possível é a Lei Pelé, na qual existe o artigo 18-A, que determina alguns pré-requisitos aos quais as entidades de administração e prática do desporto precisam se adequar. A questão é que todos esses critérios estão vinculados ao recebimento de recursos públicos. E a CBF não recebe recursos públicos, nem de forma direta nem indireta, e não tem isenção, faz questão de pagar todos os seus impostos.
Outro seria vincular os clubes e impedir que recebam recursos públicos e isenções ao se vincularem a entidades que não cumpram com os mesmos requisitos. Existem mecanismos legislativos para se regular a CBF. Agora, é preciso muita vontade política dentro do Executivo e dentro do Congresso para que isso possa acontecer.
Quem apoia o Bom Senso?
O Bom Senso conta com a adesão de profissionais de várias áreas, de pessoas que gostam e estudam o futebol e vem se estendendo a outros setores. Começamos a conversar com o pessoal do futebol feminino, do futebol de praia, do futsal. Já tivemos conversas com executivos de futebol, com gestores e com árbitros também.
Enfim, estamos tentando trabalhar e fazer jus ao nosso lema, que é de um futebol melhor para todos. Tentando trabalhar todas as áreas, que a gente sabe que muita coisa precisa ser feita, e a entidade de administração do desporto não dá a devida atenção a todas as modalidades, não tem nenhuma visão, não tem planejamento, não tem um olhar para o futuro. A gente está tentando de alguma forma ocupar a lacuna deixada pela CBF.
Algum clube já manifestou apoio claro ao Bom Senso?
Sim. O Bahia oficialmente se colocou favorável. O Santos, no ano passado, também manifestou apoio – agora, com a mudança de presidente, não sei qual é o posicionamento. O Paraná também nos apoia. Ou seja, você tem clubes interessados em mudança, porque a CBF é muito fechada. O sistema é fechado, não conta com a visão do corpo técnico do futebol, como atletas, executivos, treinadores, árbitros que estão trabalhando e que são o principal do esporte. Eles não têm voz nenhuma lá dentro. E os clubes têm menos voz que as federações.
Que lições tirar da derrota da Seleção para a Alemanha e a consequente não conquista do título?
Esse é um possível legado que a Copa deixou. A partir do que aconteceu, surgiu um debate e dele a conclusão da necessidade de se criar forças suficientes para que haja mudanças lá em cima. A CBF recebeu muita pressão depois do fracasso da Seleção. Como ela respondeu a isso? Colocaram o Dunga para substituir o Felipão e o Gilmar Rinaldi e o Mauro Silva e pronto. Para eles, a mudança já foi feita.
O que fazer para mudar isso?
Apenas com a pressão da sociedade organizada e da vontade política do Executivo e Legislativo. E a missão do Bom Senso é ajudar a tornar o Brasil o verdadeiro País do Futebol.
Começar a pensar na base do futebol brasileiro de uma forma um pouco mais sistêmica, um pouco mais integrada. E ainda pensar nos espaços que os clubes brasileiros têm para exportar as suas marcas. Pensar num futebol forte em casa, com clubes fortes e com mercado desenvolvido, sem problemas básicos como o atraso de pagamento dos atletas, das suas dívidas e não pagamento de tributos.
O Bom Senso tem se manifestado contra o projeto de lei de Responsabilidade Fiscal para o Esporte (LRFE) como ele está e faz várias sugestões para torná-lo mais forte. Poderia explicar melhor essa posição? Aliás, a LRFE foi um dos temas do segundo encontro que vocês tiveram com a presidenta Dilma, não?
A receptividade da presidenta ao movimento foi muito boa. Foi notória a abertura dela com os atletas para entender o problema do esporte. Na primeira reunião, os atletas levaram a ela o que acontece no futebol. Dissemos que se cria essa imagem que o futebol é um esporte bem-sucedido no País e que os problemas dos outros esportes não acontecem no futebol. Mostramos a ela que não é verdade. A presidenta se mostrou bastante sensibilizada com o que ouviu.
A segunda reunião foi mais técnica, para tratar de quais eram as propostas de emenda que nós iríamos levar para a LRFE. Defendemos que é preciso criar um comitê de acompanhamento com poderes mais específicos e mais claros, e que os clubes sejam obrigados a prestar contas com uma frequência maior, inclusive sobre o pagamento dos contratos de trabalho. Então, trimestralmente, os clubes precisariam prestar contas de que os salários de seus atletas e funcionários estão em dia.
Isso não está no projeto. O que nós propomos foi também um sistema escalonado de punições. Por exemplo: se o clube em três meses não pagar os contratos de trabalho, recebe um aviso. Se no próximo trimestre tiver algum outro mês de não pagamento, recebe um aviso. No trimestre seguinte, se estiver ainda com atraso, recebe uma multa.
Até que, se continuar inadimplente, poderá ser rebaixado de divisão no próximo campeonato. Isso varia de acordo com alguns critérios que são públicos, estão no nosso site. São eles controle de déficit, custo do futebol, apresentação de certidão negativa de débito, pagamento rigoroso dos contratos de trabalho, reavaliação do endividamento e padronização de demonstração.
Quando se fala em fair play financeiro, se observa que aqui no Brasil ele está muito ligado à questão do endividamento. Há dois, três anos, por exemplo, houve aquela renegociação de contrato de televisão – que gera uma receita extraordinária para os clubes – mas a situação de endividamento não mudou, até piorou. Como explicar isso?
É, ele subiu em cinco anos 120% das receitas dos clubes e, nesse mesmo período, aumentaram em mais de 90% as suas dívidas. Os clubes estão endividados e a ideia é justamente que eles deixem de estar e que parem de ter déficits no final de seus períodos.
As eleições para o Legislativo talvez sejam até mais importantes para essa questão do futebol. Tem até a bancada da bola. Existem parlamentares mais simpáticos ao movimento?
Antipatia a gente não teve, pelo menos não declarada. A gente sabe que tem deputados ali com relações muito estreitas com a alta cúpula da CBF e de clubes também. Romário já falou sobre isso. Mas existem os que estão a fim de comprar briga pelo futebol.
E, nesse momento, a gente tenta formar uma aliança do movimento, dentro do Congresso, para que, mesmo que o Executivo não coloque no projeto as nossas emendas, a gente consiga também apresentar a proposta do movimento. Para que as pessoas encontrem um caminho pelo movimento de participar do futebol. A partir do futebol, as pessoas se interessam por questões públicas.
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