Usualmente, os mais apressados comem cru. Em análise de conjuntura isso é mais do que frequente. A importância de dado acontecimento histórico é função da abrangência e da duração de seus efeitos. Logo, acontecimentos importantes devem se avaliados nos seus desdobramentos. Como tal, compreendem-se os campos de possibilidade abertos para ocorrência de novos acontecimentos.
O Estado do Rio de Janeiro possui o segundo maior conglomerado urbano do país, com cerca de 10 milhões de pessoas. Desde 2015, com a desorganização da economia do Estado, os gestores viram-se diante de aumento sem precedentes na instabilidade dos sistemas públicos. O aumento na informalidade implica historicamente aumento na ilegalidade. Ou seja, desde 2015 o ERJ tornou-se o locus de produção de líderes de máfias locais – das favelas, passando-se pela polícia até o poder central.
O “problema da violência” no ERJ foi retratado fielmente na sequência de filmes Tropa de Elite. Todos no ERJ o conhecem de perto. A Zona Oeste da capital, os municípios da baixada fluminense e o bairro de São Gonçalo de Niterói são regiões periféricas nas quais os traficantes já não disputam boa parte dos territórios. Em seu lugar, tem se estabelecido forma paraestatal composta por policiais e ex-policiais, em sua maioria. As milícias são instituições que garantem provimento de serviços públicos (segurança, mas também gás, água, TV a cabo etc.) mediante cobrança de taxas. Tudo ilegal e extorsivo. Mas não seriam os juros igualmente extorsivos?
Nos territórios em que a milícia encontra-se estabelecida, os indicadores de violência são usualmente baixos. Somando-se o controle das milícias sobre a população, tem-se a articulação de máfias com tentáculos que se estendem até o parlamento e, eventualmente, ao Governo Federal (vide, entre outros, recente caso da ministra do Trabalho, filha de R. Jefferson/RJ).
A elite carioca e seus seguidores médios, influenciáveis e replicantes, só se move pelo medo. Com isso, almeja extinguir, com emprego da máxima força repressiva, aqueles moradores da favela que foram levados a organização do narcotráfico. Em situação de crise, o comando do tráfico desenha os roubos de cargas para financiamento de capital de giro.
No presente texto procurou-se avaliar a “solução Bolsonaro”, de colocar os militares na rua, armados até os dentes.
Qual a missão do exército no ERJ?
A primeira pergunta que se coloca na avaliação dos desdobramentos da intervenção militar no Rio de Janeiro é: qual a missão do Exército?
Responde o vice-presidente em exercício:
“O objetivo da missão é defender a integridade da população, preservar a ordem pública e garantir o funcionamento das instituições. A medida de hoje é mais um passo no combate a esta situação que inquieta e angustia todos os brasileiros, particularmente os moradores do Rio de Janeiro”.
Segundo o General Sinott, comandante da 1ª Divisão, o Exército irá atuar em operações na Baixada Fluminense, Niterói, São Gonçalo, Itaboraí e Zona Oeste da cidade. Já as tropas da Marinha estarão presentes no Centro do Rio, além de Zonas Norte e Sul. A Aeronáutica em ações na Ilha do Governador.
No entanto foi o ministro do PSDB, pré-candidato ao Governo do ERJ ao final do ano, que bem definiu os objetivos da intervenção – o foco das ações será o enfrentamento de quadrilhas de tráfico de drogas e roubo de cargas:
“As Forças Armadas vão atuar sob demanda, segundo as informações que forem levantadas pela Secretaria de Segurança. O cardápio é toda e qualquer ação que seja necessária para golpear e tirar a capacidade do crime organizado”.
Ou seja, sem qualquer diversionismo explicita-se que a intervenção privilegiará a logística de mercadorias para e do Estado do Rio de Janeiro. Redes de comércio de medicamentos, eletrodomésticos e supermercados serão os beneficiados. Bem como companhias de seguros, que absorvem boa parte das perdas até aqui. Na figura 1 pode-se perceber o aumento na criminalidade por roubo de cargas no Estado. Em 2017 foram 10.599 casos (7,6% contra 2016), o que confirma trajetória expansiva.
Ocorre que o roubo de carga no ERJ tem dado origem a sofisticada rede de distribuição de mercadorias nos territórios. Nos complexos de favelas surgem maneiras de distribuir, para a própria população, os frutos do roubo. Entre 2011 e 2015 estimam-se em cerca de R$ 2,1 bilhões ao ano com desvios de carga no ERJ.
Os medicamentos integram o grupo de produtos mais afetados pelo roubo de cargas no ERJ. No caso de eletroeletrônicos, computadores e celulares são muito visados, seguidos de alimentos e vestuário.
Funciona assim. O tráfico possui as armas e precisa permanentemente de capital de giro. Planejam-se ações em rodovias que atravessam pobreza. A carga é desviada e vendida pelos traficantes a atacadistas que comercializam nas favelas. Muita gente se beneficia, inclusive os consumidores.
Ou seja, o negócio se alimenta da pobreza e do desemprego. Da informalidade, que se torna o dia a dia de comunidades inteiras.
Em março de 2017 a Firjan, maior apoiadora da intervenção militar no ERJ, lançou o Movimento Nacional contra o Roubo de Cargas, reunindo-se mais de 100 sindicatos e associações patronais. Segundo o presidente da Federação de Transporte de Cargas (Fetranscargas):
O roubo de cargas é braço financeiro do tráfico de drogas e armas. Não é possível mais passar em trechos do Arco Metropolitano e bairros próximos às comunidades do Complexo da Pedreira e Complexo do Chapadão.
Só que os militares, ao combaterem o tráfico a mando das redes de comércio, estarão abrindo espaço para uma outra forma de criminalidade – as milícias.
As milícias e a política no ERJ
Segundo investigação conduzida pela UERJ (Nota) e publicada em 2012, as milícias são forças paramilitares que atuam de acordo com os seguintes princípios básicos:
– Domínio territorial e populacional de áreas reduzidas por parte de grupos armados irregulares;
– Coação, em alguma medida, contra os moradores e os comerciantes;
– Motivação de lucro individual como elemento central, para além das justificativas retóricas oferecidas;
– Discurso de legitimação relativo à libertação do tráfico e à instauração de uma ordem protetora. Diferentemente do tráfico, por exemplo, que se impõe simplesmente pela violência, as milícias pretendiam se apresentar como uma alternativa positiva;
– Participação pública de agentes armados do Estado em posições de comando.
Na visão dos delegados do ERJ, as milícias atuam em três níveis. O Nível 1 corresponde a grupos de extermínio formados usualmente por moradores de dado local que se reúnem para combater traficantes e outros tipos de criminosos. O Nível 2 envolve cobrança de taxas aos moradores das comunidades, usualmente por meio do cadastramento pelas associações de moradores. Tais organizações apoiam candidatos a cargos eletivos. O Nível 3 implica controle de diversos serviços, como gás, TV a cabo, transporte alternativo etc. As associações de moradores são controladas por esses grupos. Os milicianos se tornam, eles próprios, candidatos nas eleições.
Dados do Tribunal Regional Eleitoral revelam que os cargos públicos acusados de pertencerem às milícias apresentam votações altamente concentradas em determinados territórios.
O crescimento das milícias pode ser observado mediante dados colhidos por Cano&Duarte (2012), tomando-se dados do Disque Denúncia e presença em veículos de comunicação.
Em síntese, aparentemente a intervenção militar no ERJ responde a estratégia estabelecida entre o PMDB no RJ e interesses industriais (farmacêutica, eletroeletrônica, têxtil) para combate ao roubo de cargas associado ao negócio das drogas.
Com o emprego do Exército, esperam-se ainda diminuir indicadores de violência nos territórios ocupados pelas elites e camadas médias, atualmente sob influência de organizações criminosas estabelecidas em presídios.
Neste contexto, ao entrar nos territórios ocupados pelo tráfico, o exército colaborará para o posterior fortalecimento das milícias e respectivos elos com políticos (do PMDB).
Com isso, o conglomerado urbano carioca se oferece como pioneiro em nova forma de ocupação política das periferias urbanas brasileiras no século 21. A manutenção de ordem social na miséria passa a ser atividade privada (desregulada) sob responsabilidade de ex-policiais/oficiais (das forças?), majoritariamente. Em contrapartida, os núcleos mais prósperos, enclaves para o desfrute do turismo internacional, serão mantidos em patamares de segurança civilizados.
Na disputa pelas poucas gotas de sangue que restam aos braços fortes da minha terra, os impostos se somam à extorsão por bancos e milícias. Triste destino para um dos mais belos acidentes geográficos neste vasto Brasil.
Nota
“No sapatinho” : a evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011). I. Cano & T. Duarte (coord.); K. Ettel e F. N. Cruz (pesq.). Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2012.
Crédito da foto da página inicial: Fernando Frazão/Agência Brasil
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