A tragédia que trouxe ao primeiro plano Marina Silva como protagonista da corrida presidencial de 2014 certamente é um fenômeno inesperado.
Mais interessante é que, neste momento, Marina catalisa e expressa sentimentos antagônicos de toda estirpe e categoria social: entre alguns, ganha ares de messiânica, saiu dos mangues de látex, tornou-se uma política bem-sucedida e, por evitar estar no acidente aéreo, predestinada a eleger-se como presidente para representar miseráveis e sem esperanças.
Entre outros, expressa o desejo de mudança com sua ‘nova política’, uma terceira via de desenvolvimento sustentável que concilia interesses. Também é a expressão de políticas conservadoras que, finalmente, associa-se à esperança de derrubar a presença do PT no governo.
Como seria possível uma candidatura capaz de representar uma gama tão vasta e contraditória de aspirações?
Em essência, Marina ganha protagonismo justamente por não representar nenhuma das alternativas acima. Não é uma líder messiânica, embora deixe transparecer propositadamente ares de humildade e devoção.
Não tem nenhuma proposta consistente para o meio ambiente, tanto que seu ministério foi inexpressão em resultados, além de seu ecocapitalismo ser constantemente questionado por ser confuso e/ou impraticável.
Ao defender a política de austeridade do Banco Central e sua independência, flerta com o mercado financeiro, mas fala em justiça social, distribuição de renda e melhoria para os mais pobres com ajuda do Estado, talvez sendo incapaz de cumprir qualquer uma das duas promessas.
Ao falar do PT (partido de que fazia parte até recentemente) defende que quer governar com Lula – e FHC –, o que é inviável em qualquer cenário político.
Marina, por tamanhas as contradições sobre o que diz e o que propõe fazer, corre o risco de não ter nada em sério que a sustente. E talvez sejam justamente as suas inconsistências que a tornem fenômeno eleitoral. Para isso, temos que concordar que existe um forte movimento de infantilização da política.
O movimento de infantilização da política não é exclusividade da atual campanha eleitoral. Humor, ridicularizações, jingles, frases de efeito, efeitos em áudios e vídeos das propagandas e todas as ações de marketing vêm ganhando protagonismo ante as propostas e debates.
A política tornou-se terreno fértil do espetáculo. O objetivo das campanhas tem sido buscar atrair o grande público para o circo de atividades e, independentemente do debate, conquistar o voto. Assim como no consumo, os políticos têm retirado a ideologia do seu discurso, para vender facilidades a um público cada vez maior.
Desta forma, não importa o que ocorre antes ou depois de uma eleição, não importam as consequências dos atos e as responsabilidades públicas, importa que o voto seja conquistado. Só num mundo como este, onde não se discute decisões, deliberações, ganhos e perdas, vencidos e vencedores, Marinas, Fernandos e Jânios surfam desimpedidamente, na crista da onda criada pelo vácuo do debate.
Não existe segredo em política. Também não existem milagres. Políticas tratam de propostas e problemas. Boas políticas públicas resolvem problemas difíceis. Boas políticas são como bons remédios: têm gosto amargo, aparecem com um dano, mas podem gerar bem-estar social. Bons políticos tomam decisões difíceis.
A vida adulta ensina a cumprir compromissos. Ainda que sejam duras as obrigações, descobre-se em algum momento que cumpri-las é o melhor caminho para o sucesso. Ter responsabilidade significa muitas vezes optar por caminhos difíceis de trilhar, em alguns casos mais longos, em outros mais penosos. E não se trata de tornar-se conservador para alcançar as boas decisões, porque ser responsável não é sinônimo de ser conservador.
Do mesmo modo, o caminho da política não é um caminho fácil. Mas, em democracia, desacreditar no voto e desacreditar na política é o caminho dos irresponsáveis e imaturos. É também eximir-se da decisão. É uma manha como dizer: “se não tem o que eu gosto eu não faço nada”. Isso gera um processo de esvaziamento da política que premia aventureiros.
Independentemente de qualquer desgosto com a política, necessariamente teremos políticos que vão deliberar; se a sociedade não acompanha, os oportunistas podem se dar ao luxo de deliberar mal e decidir errado – ou pior: decidir propositadamente em favor pequenos grupos em prejuízo das necessidades públicas.
O movimento é até mais amplo. Boa parte de nossa sociedade – assim como crianças, jovens e adolescentes imaturos – tem evitado decisões difíceis. Jovens não gostam de tomar decisões que resolvem problemas, mas comprometem desejos.
Se com pouco dinheiro, por exemplo, uma criança tenta comprar doces e sorvetes, o vendedor pode forçá-la a escolher entre um e outro. A simples situação de tomada de decisão paralisa a criança e a faz chorar. Quando não buscam formas controversas de conseguir o que querem, como manhas ou tentativas de mudar as regras, crianças ficam insatisfeitas com resultados parciais para seus desejos momentâneos.
Do mesmo modo ainda imaturo, os jovens não gostam de ser contrariados. Não suportam que seus desejos não sejam atendidos. Não gostam, por exemplo, de pagar contas, porque os pagamentos inibem seu poder de compra.
É normal que durante um período de adaptação, os adolescentes sejam irresponsáveis com suas obrigações. Só ganham autonomia os jovens que demonstram ser responsáveis, seja na vida financeira ou na parte afetiva.
Não é preciso defender nada de novo para mudar a política. Não há fórmula mágica, como querem os adolescentes, para conseguir sorvetes e doces. No Brasil, para fazer um governo marcante, basta aprovar as reformas tributária e política. Basta rever a concentração de patrimônio e fortalecer as agências de regulação. Basta fazer uma política de austeridade econômica com defesa contra crescimento de inflação e desemprego.
Quando o fenômeno Marina despontou, a avalanche de empolgação obscureceu a dúvida sobre a aplicabilidade da sua proposta de nova política. Não se sabe se é ou não em favor de privatizações, só se sabe que vai rever a partilha do pré-sal. Não é claro se vai manter, reduzir ou ampliar os programas sociais do governo.
Sequer está clara a sua política sobre sustentabilidade. Ao que dizem suas ultimas declarações, ela abandonou essa bandeira em favor do voto do agronegócio. Também acenou para políticas de tolerância com leis de igualdade para LGBT, mas as abandonou em favor dos votos evangélicos.
Até o presente momento, suas deliberações são unicamente em favor do mercado e do voto de grupos majoritários. Se tomarmos como referência a única decisão concreta que sugere Marina – a autonomia do Banco Central – seu governo pode abandonar as políticas sociais e de geração de emprego e renda aos mais pobres em favor de crescimento econômico com concentração de renda. O que é não só uma política velha, mas também retrógrada.
Marina mira o voto dos mais pobres sabendo que suas propostas fatalmente vão traí-los. Se cada vez que Marina apontar para um lado eleitoral, atirar em outro lado da sociedade, sua candidatura não pode ser levada a sério.
Porque não apresenta a consistência de quem fala claro ao eleitor.
Enfim, no fundo, a diferença entre a infantilização da política expressa por Tiriricas e por Marinas é que uns nos levam para a comédia, e a outra nos leva para a tragédia.
Crédito da foto da página inicial: Leo Cabral/MSilva Online
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