“Pacto de sangue”. A frase dita pelo ex-ministro Palocci ao juiz Sérgio Moro na última quarta-feira, 6 de setembro, após um ano preso e contradizendo seu depoimento anterior, para qualificar a relação entre o ex-presidente Lula e a Odebrecht, aproxima ainda mais a Operação Lava Jato de uma peça de ficção. Peça, aliás, já transposta para as telas de cinema, cuja sessão de pré-estreia contou com servidores públicos – juízes procuradores e outros – rindo às gargalhadas em suas poltronas.
A Lava Jato, para essas pessoas que deveriam ser impassíveis e sóbrias diante da responsabilidade que seus cargos exigem, indica ter virado entretenimento. A investigação sobre a vida de sujeitos, os julgamentos que podem custar-lhes a liberdade, foram visualizados pelos agentes que os conduzem em uma telona enquanto comiam pipoca, trocavam afagos recíprocos e conversavam amenidades, como em uma sala de espetáculo.
O filme, que estreou oficialmente neste 7 de setembro em todo o Brasil, no exato dia seguinte ao depoimento de Palocci e a menos de dez dias do novo depoimento de Lula em Curitiba, custou 16 milhões, bancado por “financiadores ocultos”, segundo o produtor. O diretor Marcelo Antunez possui um currículo pouco extenso. Curiosamente seus únicos filmes conhecidos são três comédias. Mas já anunciou que a Lava Jato renderá uma trilogia. Ao ser entrevistado, disse que o filme é “apolítico”. Uma afirmação que não pode ser assimilada de outra forma: é desonesta! Nada mais político do que transpor para a linguagem cinematográfica, com todo o fascínio novelesco e ficcional, a luta entre “o bem e o mal”, exercitando as emoções que ligam o espectador aos homens, sendo esses personagens da vida real e política do país, despidos então de suas naturais complexidades para transmutarem-se em heróis ou bandidos.
A Operação Lava Jato completou três anos em março de 2017. Se ela pretendeu ser, em seu primórdio, um trabalho investigativo dentro do sistema de justiça brasileiro, sereno sobre corrupção, esse propósito, correto e digno, há muito se perdeu. Juízes e procuradores deixaram-se levar pela popularidade e vaidade, comportando-se em larga medida como agentes políticos, descumprindo normas e princípios do direito processual penal e da Constituição Federal para alcançar determinados fins.
Termos cunhados fora da legalidade, como “convicção”, personagens literários como Sherlock Holmes, têm sido adotados na representação discursiva das peças processuais, em teorias interpretativas nas quais realidade e ficção se confundem e se entrelaçam na construção de representação do mundo, em que os interlocutores estão divididos e identificados simbolicamente com deuses ou criminosos.
Embora questionada dentro e fora do Brasil por renomados e respeitados teóricos e operadores do Direito, a Operação Lava Jato parece ter conseguido naturalizar procedimentos que antes pareceriam difíceis de imaginar em uma democracia que se supunha madura. Um juiz que assume claramente o lado de parte no processo, tratando inclusive de questões que dizem respeito à investigação, é uma desconstrução do significado da imparcialidade como princípio.
Delações premiadas feitas com réus presos, alteração de conteúdo de depoimento, feita para negociar redução de pena e mudança na regra de cumprimento, assemelha-se inexoravelmente a uma tortura moderna. Teorias estrangeiras incorporadas ao nosso ordenamento jurídico de forma distorcida também compõem o cardápio, que já alcançou a declaração de um Tribunal de segunda instância de que essa não é uma operação “comum”, que necessite seguir as regras.
Nem mesmo quem defende a Operação Lava Jato consegue, sequer superficialmente, negar que o juiz de primeira instância, Sérgio Moro, tem a clara intenção de condenar o ex-presidente Lula, na primeira como em qualquer das ações, independentemente de qualquer prova. Sua aliança – explícita e comemorada – com o Ministério Público, com quem forma, segundo o procurador Deltan Dallagnol, uma “equipe”, por si só, seria bastante para que o processo fosse anulado de acordo com as normas que o regem.
Tendo se tornado personagens de cinema, objetos de observação para transposição romanesca, a considerar o comportamento adotado até aqui, é amedrontador imaginar o que procuradores e juízes da Lava Jato pretendem fazer para estimular as películas vindouras da trilogia cinematográfica, de forma a engrandecer o desejo de sua representação como paladinos da moral. O temor induz à lembrança do anjo pintado por Paul Klee, em tela interpretada por Walter Benjamin, que via a História do futuro como angústia e sofrimento.
A pretender ser uma película instrutiva, cinema de arte, o filme sobre a Lava Jato poderia enquadrar-se no realismo fantástico. Seu intento de conferir verossimilhança ao que é aparente ou abstrato está posto, o contraste do idealizado com a razão também. Alguns fatos narrados, de tão impressionantes e improváveis, poderiam ser traduzidos como sobrenaturais.
O cotidiano da operação é repetitivo e cheio de antecipações, como profecias. As sucessivas e intermináveis fases possuem nomes que dialogam com o prosaico. E ela assemelha-se, metaforicamente, a um polvo, com tentáculos que se creem éticos e alcançam a delinquência em vários cantos da nação.
Mas o filme passa ao largo de qualquer intento artístico, é apenas tradicional e mercadológico, criado com objetivo específico de estimular e adicionar números ao apoio popular a uma operação em andamento que ganhou ares de série de TV, com várias temporadas. Pode ser que queira também influenciar o resultado eleitoral. Afinal, quais os interesses de quem tirou 16 milhões do caixa pra financiar a obra?? Pergunta impertinente de resposta improvável! Ou quem sabe o filme queira apenas justificar todas as arbitrariedades já cometidas pela operação e as futuras. Não se sabe.
O que é possível delinear é que no mundo real, o porvir da Lava Jato é a aniquilação do processo penal brasileiro e, em consequência, de diversos instrumentos da nossa democracia. É a criminalização da política, com recortes para atingir apenas os segmentos, coletivos e personalidades que interessam aos seus protagonistas. Não é um caminho, é um atalho para nossa ruína civilizatória.
Crédito da foto: Ique Esteves/Divulgação
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