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  • Foto do escritorNathan Caixeta

Keynes e a moeda sul-americana

Atualizado: 14 de ago.


A premissa teórica da SUR não é a mesma do Euro. É inspirada no Bancor, proposto por Keynes em Bretton Woods, não como afronta ao dólar, mas como sinônimo de relativa autonomia da periferia latino-americana na efetivação de seus projetos de desenvolvimento

Nesse mesmo espaço procurei repercutir a inteligente proposta de Fernando Haddad e Gabriel Galípolo, hoje os homens fortes da economia de Lula, sobre a criação de uma moeda latino-americana. Na ocasião, as críticas à proposta não passaram de narizes torcidos. Agora, os narizes cresceram e devemos voltar ao tema.


Lula em visita à Argentina anunciou a formação de um grupo de trabalho que irá analisar a proposta. Não demorou para a gralhada liberal tomar o espaço da mídia especializada e informar ao público seu descontentamento. Vale, entretanto, avaliarmos a proposta desde sua concepção como luta pela soberania.


A ideia de uma moeda “virtual” que corrija desequilíbrios no fluxo comercial-financeiro entre países é antiga. Nas conferências de Bretton Woods, Keynes propôs o Bancor, uma moeda transacionada apenas entre os Bancos Centrais e regulada por um Banco Central supranacional. Os norte-americanos ganharam o páreo e a hegemonia do dólar se firmou nas pernas mancas do desenvolvimento desigual e combinado.


A proposta de Keynes visava a liberar as políticas nacionais de desenvolvimento das amarras externas que obrigavam, vez sim, outra também, os países (especialmente os mais pobres) a ajustar suas economias com recessões deliberadas.  O problema, segundo ele, residia na transferência de recursos que ocorre quando déficits externos se instalam estruturalmente em determinadas economias, minando sua autonomia política e sua soberania monetária.


Evidente que o “lado real” carregado pelas diferenças no grau de desenvolvimento industrial dos países contribui de modo a “deteriorar os termos de troca”, para ficar em um termo Cepalino. Contudo, o que determina a posição dos países na hierarquia de moedas são, sobretudo, os enlaces produzidos pelas estruturas de financiamento da riqueza patrimonial. A riqueza é amante do risco. A concorrência entre capitais, a alcova.


O que caracteriza as posições monetárias soberanas é a expectativa de liquidar a riqueza patrimonial privada na instituição pública da moeda. Esse enlace é produzido pela confiança que os detentores privados têm na dívida pública do país soberano em relação aos títulos oferecidos pela ralé dependente. A dívida pública é uma dimensão histórica da formação do capitalismo e seus arranjos produtivo-tecnológicos, portanto, é base da composição patrimonial dos sistemas de financiamento.


Dito de outra forma: a dívida pública assegura a formação da riqueza privada e essa riqueza sempre retorna à sua forma fundadora quando os riscos de desvalorização futura se espelham no presente. A segurança de voltar ao casulo torna a borboleta destemida. A necessidade de superar a concorrência empurra os agentes privados para o risco, certos de que, caso os mecanismos de ajuste via mercado falhem, o Estado salvará a lavoura.


A grande questão colocada desde os primórdios da internacionalização dos métodos capitalistas de produção, comércio e financiamento é: “quem salva a lavoura do mundo?”. Essa dúvida é suportada pelo que Keynes denominava como convenções, um conjunto de crenças que amparam o desassossego diante de um futuro incerto.


Nos tempos do padrão ouro-libra, o fim do arco-íris transpassava o horizonte até que os tempos chuvosos forçassem ajustes monetários severos. Keynes combateu obstinadamente o mecanismo que erguia a promessa das reservas-ouro como fonte de salvamento da riqueza.


Esse sistema estava baseado na falência recorrente, pois a riqueza estava pendurada numa fonte ilusória. Não o ouro, mas a libra que o representava. A libra que imitava a forma da riqueza socialmente reconhecida e que na altura do século XIX já havia em muito superado as aspirações do ouro como riqueza universal.


O Bancor e a Clearing Union eram formas que rejeitavam o amparo da riqueza socialmente produzida e apropriada por sujeitos privados nas formas necessariamente imitativas da riqueza social. O padrão dólar concedeu aos EUA a possibilidade de fixar o seu endividamento como ponte de partida e retorno da riqueza universal, suportando, assim, o superávit privado do mundo capitalista.


O déficit norte-americano, portanto, imita a liquidez adicional exigida para as crescentes rodadas de valorização da riqueza financeira.


Na contramão, o pensamento de Keynes investia a favor de uma forma cosmopolita de ajuste entre as economias. Nenhum país ficaria responsável pela absorção do déficit de outro, ao contrário, os déficits e superávits entre os países se autocompensariam, permitindo que internamente as políticas econômicas não necessitassem espelhar os movimentos realizados para acompanhar os termos de ajustamento do país emissor da moeda-chave.


A volatilidade das taxas de câmbio seria substituída pela soberania de cada país em determinar sobre sua própria moeda e não, como hoje se faz, respondendo aos humores dos agentes privados na busca por títulos públicos do país hegemônico. Na ausência de desequilíbrios na capacidade de financiamento externo, assegurada pela iniciativa comum dos países, suavizaria sobremaneira os riscos de contágio de crises financeiras ou surtos inflacionários motivados pela impossibilidade de países devedores honrarem compromissos financeiros com outros países (como no caso argentino).


A premissa teórica da SUR não tem conveniência com o Euro. Ela é inspirada no Bancor não como afronta ao dólar, mas como sinônimo de relativa autonomia da periferia latino-americana na efetivação de seus projetos de desenvolvimento. As questões que permanecem giram em torno de como operar em bloco diante de um mundo ainda pendurado no dólar. Como no futebol moderno, dizem os grandes treinadores, atacar em bloco o problema do subdesenvolvimento e defender em bloco contra as aventuras do capitalismo soterrado no túnel do endividamento norte-americano.


Hoje 50% das dívidas dos países pobres estão vinculados ao esforço chinês de financiamento em infraestrutura e outros créditos emergenciais. Notadamente, a China está substituindo os EUA como financiador universal e sua posição está ancorada na detenção de 1,3 trilhão de dólares da dívida norte-americana. Isso não significa uma mudança de hegemonia monetária, mas um evidente desarranjo do sistema monetário internacional fixado no dólar.


A capacidade de endividamento dos EUA para cumprir com o déficit externo depende que a China absorva títulos americanos; por outro lado, compatibilizar o crescente déficit fiscal com a posição deficitária externa depende da elevação sem freios da dívida pública para absorver as oscilações da riqueza privada; quanto mais explicita essa dupla dependência, maior o custo de emissão e pressão para valorização do dólar, algo que só aumenta o ciclo de endividamento público-privado.


Arriscamos chegar ao ponto em que a forma universalmente aceita da riqueza não depende do seu emissor. Se a moeda americana é a forma universal e perde a capacidade de carregar o valor da riqueza para o futuro, esse valor desaparece no presente.

Não apenas na América Latina necessitamos de uma forma comum de resolver o problema da transferência de recursos vigente na ordem global (gerado, inclusive, pela persistente valorização do dólar pós-2008). Essa necessidade é global.


Na era das autonomias, a soberania comum deve defender o mundo do despotismo particular da riqueza.


Nathan Caixeta é economista pela FACAMP, mestrando em Desenvolvimento Econômico pelo IE/Unicamp e pesquisador do Núcleo de Estudos de Conjuntura da FACAMP (NEC/FACAMP).


Crédito da imagem da página inicial: Agência Brasil

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