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Judicialização da saúde: caminhos para o acesso universal

Com o avanço da cidadania, à medida que a população obtém maior consciência dos seus direitos, espera-se que a sua atuação perante as instâncias do Estado mude, ganhando maior qualificação e persistência em suas demandas. Sendo esta, talvez, uma das possíveis causas do crescimento da judicialização da saúde no Brasil.

A noção do direito adquirido[1] tem levado aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) e dos planos de saúde a exigirem seus direitos de forma mais assídua. Entretanto, o atual processo de judicialização da saúde tem atingido dimensões maiores do que o mero aumento unilateral da demanda pelos usurários. O mecanismo tem sido utilizado por empresas privadas para gerarem ganhos pecuniários junto ao Estado tanto pelo lado da demanda quanto pelo lado da oferta, se transformando numa verdadeira estratégia empresarial.

Em outras palavras, através das ações judiciais propostas pelos usuários para obtenção de acesso a medicamentos, tratamentos, internações, órteses e próteses, os agentes do mercado – escritórios de advocacia, empresas farmacêuticas e até mesmo profissionais médicos – vêm fomentando o crescimento do volume das ações como forma de gerar resultado financeiro, o que não se harmoniza com as diretrizes do SUS e fragiliza a estrutura montada com o desiderato de promover, proteger e recuperar o direito fundamental à saúde.

Assim, o impacto da mencionada prática sobre o financiamento do sistema compromete a organização e o bom funcionamento da política pública da área. Descortina-se, portanto, um panorama que revela a mercantilização exacerbada da demanda, em que o interesse monetário se sobrepõe aos objetivos sanitários e sociais do sistema.

Em termos concretos, atualmente, segundo estudo realizado pela Fiocruz – “Judicialização da Política de Saúde nos Municípios Brasileiros: Um retrato nacional” – o perfil da demanda judicializada estrutura-se da seguinte forma:

– 58% das ações judiciais vêm da prescrição de um médico particular;

– 65% é referente a medicamentos;

– 78% deles não são padronizadas no SUS;

– 2% são produtos importados sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA);

– Em 22% das ações, se pede uma marca comercial específica do medicamento.

Ademais, pelo lado da oferta, aspecto ainda pouco divulgado, a judicialização tem sido utilizada pelas empresas de seguro privado como estratégia empresarial para desafogar sua rede de prestação ao se absterem do cumprimento de suas obrigações. Dessa forma, cônscio das fragilidades do ordenamento jurídico, o setor privado assume, por vezes, o calculado risco de transferir o ônus de tratamentos de alto custo para o Sistema Único de Saúde resistindo a pretensões de seus beneficiários, induzindo, assim, a judicialização.

Trata-se de expediente moralmente reprovável, o qual não se coaduna com a obrigação imposta pela Carta Política de 1988[2], de promover, ainda que de forma complementar, o direito social à saúde.

Não obstante, o texto do art. 32 da Lei Federal n° 9.656, de 03/06/1998, estabelece que deverão ser ressarcidos pelas operadoras de Plano Privado de Assistência à Saúde os serviços de atendimento à saúde previstos nos respectivos contratos, prestados a seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do SUS, em um claro esforço de corrigir a distorção.

Entretanto, a fragilidade da dinâmica na cobrança, corroborada pelo entendimento jurisprudencial[3] de que o ressarcimento ao SUS tem natureza indenizatória, sendo quinquenal, com lastro no teor do art. 1° do Decreto n° 20.910/32, apresenta alguns desafios para sua plena execução. A ocorrência de vícios nos processos de cobrança, a letargia na identificação dos débitos e na persecução administrativa e judicial do ressarcimento, associada ao já noticiado fato da incidência do prazo prescricional de apenas 5 anos, revelam panorama favorável às seguradas privadas da área.

Diante disso, esse quadro tem suscitado diversas dúvidas sobre a judicialização na saúde, muitas vezes encarado como mecanismo perverso dentro sistema público de saúde. Mas, é preciso compreender que o mecanismo é legítimo e como instrumento de acesso e cumprimento dos serviços ele deve, em primeiro lugar, ser aperfeiçoado para reforçar o aspecto universal de justiça social do SUS. Por isso, é possível propor ações que contribuam para melhoria dos resultados.

No caso da demanda, mais especificamente aquelas geradas no âmbito dos municípios, uma das soluções já pontualmente implementadas tem sido a responsabilização de todos os agentes no processo, indo do paciente, passando pelo médico, pelo advogado, até chegar na empresa fornecedora do medicamento, da qual se exige a performance do produto solicitado.

Cada partícipe é chamado a assumir sua parcela de responsabilidade nos atos que lhe competem no curso do procedimento voltado para a formação da demanda pelo serviço público de saúde. De forma que a propaganda e a indicação médica do produto ou serviço não sejam os únicos parâmetros para tomada de decisão, exigindo-se, primordialmente, a necessária comprovação da eficácia e custo-efetividade do que se demanda.

Neste sentido, a prescrição do profissional médico deverá ter lastro em documentada relação de custo-efetividade, assim como o profissional da área jurídica perseguirá objeto que melhor atenda ao seu cliente, litigando, porém, com assento em fatos e fundamentos que persigam uma melhor conexão entre o direito e as diretrizes do SUS, evitando ao máximo práticas que não se vinculem diretamente às exigências sanitárias do sistema público de saúde.

Por outro lado, para a oferta, a atuação coordenada entre os órgãos e as entidades com atribuição institucional sobre a matéria pode ser aprimorada com a adoção das seguintes providências:

a)Atuação integrada entre o Ministério da Saúde, Agência Nacional de Saúde Suplementar e, especialmente, a Advocacia Geral da União, com o objetivo de estreitar o diálogo, a troca de informações e a atuação, de forma permanente e sistematizada, entre os órgãos e entidades partícipes, com vistas a prevenir distorções no processo;

b)O aprimoramento das estratégias de identificação e cobrança dos créditos, conferindo-se celeridade ao procedimento de persecução do ressarcimento;

c)Identificação das operadoras de Plano Privado de Assistência à Saúde que estejam a incorrer em práticas sujeitas a incidência de sanções administrativas e cíveis.

Contudo, é necessário que a judicialização da saúde seja compreendida em suas duas grandes dimensões – demanda e oferta – para uma melhor resolução do quadro estrutural da segmentação no setor. A ação conjunta nessas frentes possibilita a maximização dos resultados diante das práticas moralmente reprováveis do mercado.

Notas

[1] No campo jurídico são considerados adquiridos, à luz do texto do art. 6º, § 2°, da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, “os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”.

[2] Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

-1º As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.

[3] Superior Tribunal de Justiça (AgRg no AREsp 850760/RS Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n° 2016/0024810-5;  AgRg no AREsp 730001/PR Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n°2015/0144797-1; dentre outros).

Crédito da foto da página inicial: Agência Brasil

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