Aqueles que dedicaram anos à integração regional da América Latina podemos agora avaliar na contemporaneidade quantas foram as dificuldades encontradas por Simon Bolivar (1783 -1830) para o seu sonho, vivido com tanta intensidade e embates.
Curiosamente, o golpe jurídico-midiático-financeiro no Brasil realizou de tal forma o seu objetivo que os acontecimentos na Venezuela servem de semblante ou máscara para o que de fato importa às lideranças conservadoras que parecem animadas na hora presente.
Na nossa opinião, o foco das atenções dos grandes grupos econômicos monopolísticos multinacionais é de fato o Brasil, o seu mercado interno, as descobertas referidas ao Pré-sal, as movimentações realizadas pelo Brasil no plano internacional com a Rússia, Índia, China e África do Sul, parceiros estratégicos que, juntos, compõem os BRICS. No entanto, os graves acontecimentos que acontecem na Venezuela tiram a atenção de Brasília e impõe Caracas na cena internacional.
Vale uma “piada de português”, mas que reflete humor e ironia, dando a dimensão do problema. Durante a guerra de Portugal, nas colônias africanas ansiosas por sua independência, conta-se que um certo dia o primeiro ministro Oliveira Salazar foi comunicado das descobertas de petróleo num patamar maior do que o suposto em Angola. Ao que o dirigente português teria respondido; “Oh! Deus! Não me bastam as lutas coloniais, agora vem mais esta; o petróleo…”
Mas o que devemos pensar é como fala Guilherme Estrella, diretor de exploração e produção da Petrobras entre 2003 e 2012: “O Pré-sal é grande oportunidade, não uma grande ameaça”. Todavia, não podemos descartar os interesses que despertam tal descoberta e que podem afetar seriamente a soberania brasileira.
Tudo isto está a acontecer num momento de incorporação de Cuba à “Casa Latino-americana”, parafraseando Gorbachev quando falava em relação à “Casa Europeia”. Inegavelmente, no correr dos anos, realizamos um movimento forte de aproximação com todos os latino-americanos, realizando uma autêntica política de aggiornamento.
Que esta seja nomeada pelos inimigos desta política, e com um sentido pejorativo, de política bolivariana, é indício flagrante do acerto em relação ao sonho bem sonhado de Simon Bolivar. Mas quantos obstáculos ainda se impõem!
Como negar a redução formidável do contencioso com os argentinos nos governos Lula e Dilma Rousseff que, no passado, nos opunha no campo da pesquisa nuclear, da estratégia militar, mesmo de uma aproximação econômica mais solidária. Aqui, deu-se o inverso do que acima foi narrado, pois o sentido pejorativo da expressão “hermanos” para nossos companheiros argentinos e logo transformada em expressão coloquial para dizer das nossas diferenças e inimizade – incorporada com especial gosto ao mundo do futebol – transformou-nos a todos, argentinos e brasileiros. Hoje somos irmãos, sem sombra de dúvidas.
Um outro avanço digno de ser anotado foi aquele ocorrido na área da educação universitária. A criação da UNILA – Universidade de Integração Regional Latinoamericana, em Foz do Iguaçu, representa igualmente um grande esforço na nossa aproximação.
Deixamos de falar aqui das ações no campo da cultura, pois sabemos o quanto a música, teatro, cinema, fotografia, literatura, a arte em toda a sua diversidade, contribui para a integração entre os povos. Igualmente produziram-se transformações de monta na formação dos que aspiram à carreira diplomática.
Em sucessivos encontros internacionais, realizados primeiramente no Brasil e logo em Buenos Aires, Montevideo e Assunção, o Fórum Universitário do Mercosul (FoMERCO) atestou as discussões sempre proveitosas entre cientistas e pesquisadores reunidos em torno do tema da integração regional.
As discussões são sempre bem-vindas, especialmente no meio intelectual. Entretanto, o que não esperávamos era a pressa com que o governo interino de Michel Temer, com o ministro de Relações Exteriores José Serra à frente, tomou de assalto o Itamaraty, tentando impor um “cavalo de pau” no âmbito da política externa num continente que a duras penas vem concentrando esforços numa proposta de multilateralismo internacional, em cujo projeto o Brasil despontava como um player que até então merecia ser ouvido nas suas ponderações.
Celso Amorim, Marco Aurélio Garcia, Samuel Pinheiro Guimarães foram protagonistas no exercício de uma liderança nada desprezível respaldados por sucessivas vitórias eleitorais.
Para alguns, a história de vinte anos do Mercosul aponta mais no sentido da integração cultural do que na integração das cadeias produtivas, ou no que se refere à integração monetária ou até à integração política. E isso, mesmo após a inauguração da rodovia Transoceânica no dia 15 de julho de 2011. A perspectiva de um corredor de commodities que possa alcançar o Oceano Pacífico (Porto San Juan, Porto Matarani, Porto Ilo) partindo do lado brasileiro desde Assis Brasil, no Acre, e passando por Puerto Maldonado e Cuzco, no Peru não arrefeceu o ânimo dos críticos da integração regional.
Vários deles preferem ressaltar os obstáculos e frequentemente são citadas as dificuldades: a) na coordenação das políticas macroeconômicas; b) na livre circulação de bens entre os países membros; c) nos desequilíbrios, sejam nas complementações econômicas setoriais sejam nas balanças comerciais entre os países. Outros preferem enfatizar as trocas assimétricas ou o potencial maior do Brasil.
Alguns chegam a citar os setores de máquinas agrícolas, eletrodomésticos, têxteis e móveis como exemplos flagrantes de desnível nas relações comerciais. Há reclamações e vozes dissonantes. Não há dúvida, há desequilíbrio estrutural, há desníveis de escala e gargalos na integração real que acabam por não favorecer a integração regional como um todo. Mas não se pode desmerecer a caminhada percorrida até aqui que, sem dúvida, é positiva.[1]
O que nos causa impacto é precisamente que José Serra tenha corrido com muita sede ao pote… Intelectual renomado, pensador da economia brasileira, reconhecido nacional e internacionalmente, não se fez de rogado em assumir o posto de Chanceler do Ministério das Relações Exteriores devidamente protegido pela absorção da política do comércio exterior ao Itamaraty. Engenhosa solução, menos para o Brasil e mais para a proteção do ex-candidato à Presidência da República.
A maneira como tem se posicionado, as querelas com atuantes grupos de manifestantes em vários países estrangeiros e intelectuais brasileiros que indagam da sua legitimidade política para impor fortes mudanças na política externa sem o respaldo eleitoral, com certeza não honram a tradição democrática do atual senador e ex-dirigente estudantil de reconhecida liderança quando jovem.
Nota:
[1]Cerqueira Filho, Gisálio (Org. e co-autor).Sulamérica Comunidade imaginada: emancipação e integração. Niterói: EdUFF, 2011. 367 pp. [Anais do XI Congresso Internacional do Forum Universitário do Mercosul (FoMERCO) realizado entre 8 e 10 de setembro de 2010, em Buenos Ayres].
Crédito da foto da página inicial: José Cruz / ABr
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