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Irracionalismo e evolução sistêmica (uma tréplica)

Para o irracionalismo, o mundo não é inteiramente acessível ao conhecimento. Ele contém um resíduo ininteligível e inexplicável. A Ciência se esforça para explicá-lo pouco a pouco através de permanente teste de hipóteses. Enquanto elas se sustentam empiricamente, permanecem como explicativas. Alterado o contexto, com nova auto-organização de um sistema complexo, as velhas hipóteses são descartadas e substituídas por outras mais adequadas ao novo ambiente natural e institucional.

Talvez seja essa necessária auto subversão das ideias, principalmente daquilo aprendido como dogmas no passado, o incômodo de Elias Jabbour, professor adjunto da FCE-UERJ, com meu artigo Revisionismo e Evolução sistêmica, postado também neste portal do Brasil Debate. Eu agradeço suas críticas. Temos de superar nossa incapacidade de escutar o outro fora da nossa câmara de eco. Será a forma de ultrapassar a cultura de ódio em vigor no País – e expressa especialmente na rede social. Por que não retomarmos uma necessária formação cidadã para o debate público, de início, entre os próprios companheiros posicionados à esquerda?

A diversidade de pensamentos e as diferenças políticas se tornam produtivas quando cada qual consegue escutar (e ler) o outro. Não se pode refletir sobre o pensamento do outro a partir da própria posição ou valores. Responder ao outro a partir de si é uma escuta colonizadora: visa ou a arrebanhar o rebento desgarrado ou a excluir o descrente de vez. Neste filtro, ouve, mas não escuta. Lê, mas não aprofunda a reflexão proposta.

Empatia significa a capacidade psicológica para sentir o que sentiria uma outra pessoa caso estivesse na mesma situação vivenciada por ela. Consiste em tentar compreender de forma objetiva e racional o que sente outro indivíduo, no caso, o interlocutor.

Daí quando Jabbour se refere à “crise de pensamento” como característica cíclica da subjetividade intelectual/acadêmica, relacionando-a ao “final do século 19, quando o capitalismo já havia deixado de ser algo progressista para ser alimento de um irracionalismo filosófico” percebe-se seu ponto de vista estar firmemente fincado no materialismo histórico. O irracionalismo foi um componente do Romantismo, tendência filosófica influente no século 19, avessa à razão iluminista predominante no século anterior. Irracional não pode ser quem não concorda consigo.

Materialismo é a atitude de quem entende tudo ser matéria ou desdobramento de uma vida voltada unicamente para os bens materiais. Para o materialismo histórico, as formas de produção econômica são os únicos fatores realmente determinantes do desenvolvimento histórico e social. As demais esferas culturais, como Religião, Moral, Direito, Estado, Ciência, Arte e Filosofia são meras derivações. Representam uma espécie de superestrutura sobre a infraestrutura econômica determinante. A origem do materialismo histórico está ligada ao filósofo alemão Karl Marx (1818-1883).

Em sua concepção do materialismo dialético, ele se baseia na dialética para compreender os processos sociais. Tenho pontos de concordância com o Jabbour ao reconhecer a história não ser estática nem ter um fim na atual configuração sistêmica. Estudo os fatos históricos com base em elementos contraditórios interativos. Avalio um todo, em uma visão holística, e não somente o objeto do estudo em questão, em particular, o individualismo metodológico focado nas decisões ou escolhas pessoais.

Talvez tenhamos uma discordância pelo fato de o marxismo ortodoxo se fundar apenas no materialismo e se opor totalmente ao idealismo. A história da Filosofia abrange um processo de conflito entre o princípio idealista, baseado em ideias, pensamentos e no abstrato como um todo, e o princípio materialista, baseado nos determinantes materiais, fatos e estudos concretos. Justamente por adotar a dialética, baseando meus estudos na comparação de contradições na configuração de um todo, um sistema complexo emergente das interações entre seus múltiplos componentes, acho restritivo o pensamento economicista: a economia determinar o restante do mundo.

A Economia é necessária, mas não é suficiente para explicar a verdade, isto é, o todo. Por essa busca incessante em busca de uma verdade variável a cada contexto sistêmico, ninguém se pode colocar como “dono da verdade”. Não é possível apropriá-la a partir dos dogmas de sua crença. Senão, aqui-e-agora, estaria com uma postura igual, embora oposta, aos partidários da Escola Sem Partido. De um lado, basta a Bíblia, para que a Ciência do darwinismo evolucionário? De outro, basta O Capital, para que “o caso do professor Fernando Nogueira da Costa que, em artigo recente (“Revisionismo e evolução sistêmica”) adianta um desnecessário acerto de contas com o marxismo, alguns de seus princípios e a experiência soviética”?

Dogma significa, literalmente, “o que se pensa é verdade”. É uma crença ou convicção, um pensamento firme ou doutrina. Para os sábios-pregadores do marxismo ortodoxo, este passou a ter um fundamento religioso ao caracterizar cada um dos pontos fundamentais e indiscutíveis do materialismo histórico como uma crença ou questão de fé. Pontos inquestionáveis, uma verdade absoluta a ser ensinada com autoridade.

Além do marxismo ortodoxo ou estalinista, os dogmas estão presentes em outras religiões como o cristianismo, o judaísmo ou islamismo. Os princípios dogmáticos são crenças básicas pregadas pelas religiões. Elas devem ser seguidas e respeitadas pelos seus membros sem nenhuma dúvida.

Quem os rejeita pode incorrer em crimes variáveis de acordo com a religião. Na Igreja Católica, o crime de heresia aconteceu no período da Idade Média, quando as pessoas acusadas eram excomungadas ou perseguidas através da Inquisição. Na URSS, o crime de dissidência aconteceu no período do estalinismo, quando as pessoas acusadas eram renegadas, perseguidas através da KGB e confinadas no Gulag ou na Sibéria.

Assim, os dogmas proclamados pela URSS devem ser aceitos como verdades reveladas por Stalin através de sua leitura de O Capital. São irrevogáveis e nenhum membro da esquerda, muito menos um reles professor universitário, tem autoridade para os alterar.

Aprendi com Jabbour serem dogmas intocáveis do materialismo histórico a infraestrutura como determinante única da superestrutura, a predominância absoluta do método histórico-indutivo sobre o abstrato-dedutivo, a impessoalidade do sistema, seja capitalista, seja socialista (SOREX: Socialismo Realmente Existente):

– “O capitalismo financeirizado desde a década de 1970 e acelerado com a contrarrevolução neoliberal dos anos de 1990 tem impulsionado uma nova onda de crise de pensamento e de mediocridade intelectual”.

– “O pós-crise financeira de 2009 abre outra vaga de irracionalismo filosófico sob o acicate de formas nada triviais, entre elas o niilismo e o revisionismo histórico”.

Em seguida, Jabbour passa à defesa da URSS por conta de “o professor Fernando Nogueira da Costa tece uma série de comentários, a meu ver sem nenhuma historicidade”. Por exemplo, a “má experiência soviética” como o “primeiro modelo totalitário de direção de Estado sobre todas as atividades econômicas”.

Em resumo, seu argumento é, seja durante a II Guerra Mundial, seja por conta da chamada por ele de III Guerra Mundial (“Guerra Fria”), ambas colocaram “frente a frente um país cujo objetivo primário era o de colonizar e exterminar povos inteiros [Alemanha nazista ou Estados Unidos imperialista] e outro cujo exemplo foi fundamental aos processos de libertação colonial e de emancipação social dos negros e mulheres dos EUA [URSS]”. Espanto, né?

Jabbour critica a minha crítica ao totalitarismo estalinista: “longe de apontar o dedo aos verdadeiros algozes (a fusão da indústria com a grande finança – o imperialismo e o nazismo), lança desonra, atingindo suas vítimas (povos colonizados) e seus defensores históricos (URSS e República Popular da China)”. Não cita em nenhuma passagem o próprio Stálin! Maniqueísmo é a ideia baseada em uma doutrina religiosa, infelizmente, no caso, a marxista dogmática. Afirma existir o dualismo entre dois princípios opostos, normalmente, o bem (URSS/PCCh) e o mal (Alemanha do nazismo/EUA do liberalismo).

Jabbour critica meu “senso comum” referente à minha crítica ao determinismo histórico do marxismo vulgar. Defende: “a URSS foi a primeira experiência moderna e humana de planificação bem-sucedida da economia”. Suas glórias: “construir toda uma base material em menos de 20 anos pronta de derrotar a, desde então, maior máquina de guerra da história, ser pioneira em lançar seres vivos ao espaço e atingir os maiores patamares de produção cientifica até então vistas”.

Jabbour justifica o desrespeito soviético aos direitos humanos pela escassez de bens de consumo. Para ele, “a democracia, longe de ser um ‘valor universal’ (o único valor universal é o direito à vida [?!]), deve estar baseada na abundância. Nunca na escassez e em relações sociais de produção (barbárie) correspondentes a este estágio de desenvolvimento”.

Daí concluo ele também possuir um defeito comum à nossa corporação profissional: o defeito dos economistas é eles serem apenas economistas. Quando é marxista ortodoxo torna-se um crente com fé inabalável no postulado marxista: “o comunismo seria a fase final do desenvolvimento da sociedade humana alcançada através de uma revolução proletária, isto é, uma revolução encabeçada pelos trabalhadores das cidades e do campo”. Os operários estão sendo substituídos por robôs administrados por engenheiros, assim como os camponeses foram expelidos pela mecanização do campo… e o comunista não refaz sua crença.

O determinismo histórico dessa “fase final”, de fato, não se conjuga com meus estudos de dinâmica da evolução sistêmica. Muito menos com meu pacifismo gradualista em lugar da ideia de uma súbita “revolução etapista”, através de armas ou violência de uma “vanguarda dita burguesa ou proletária”, logo transformada em uma nomenclatura. Não aceito a narrativa de um Estado totalitário e vigilante, excludente de todos os direitos humanos, exceto à vida dos “escravos”, como uma necessidade histórica para se alcançar a pressuposta “abundância comunista”.

Nesta tréplica, evitei qualquer argumento “ad hominem”. A carência do hábito de um debate civilizado muitas vezes leva à desqualificação do interlocutor supostamente por ele não ser especialista de tanto mérito (quanto à autoimagem do próprio crítico) ou por juízo negativo de suas intenções. Atacar à pessoa, em vez da opinião dela, tem a intenção de desviar a discussão e desacreditar a proposta desse oponente intelectual. Infelizmente, é comum, seja à esquerda, seja à direita.

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