“Não sou escravo de nenhum senhor”
(Claudio Russo, Moacyr Luz, Dona Zezé, Jurandir e Aníbal)
Com razão a população espera resultado, mas na sua angústia não se pergunta muito como fazer e com quais meios. Por vezes se resume a aceitar que: “é nossa única esperança”. Contudo, isso não é factível. Escolheu-se uma alternativa que faz sentido dentro da narrativa oficial que foi dada até agora para a crise no RJ. Não é possível dissociar essa intervenção (militar) na segurança do Regime de Recuperação Fiscal, os dois são imposições do governo federal travestidas de “acordo”. Afinal, não tivemos poder de barganha praticamente nenhum nos dois casos, apenas cumpre-se ordens passando por cima de nossa autonomia federativa.
Em ambos, prevalece a tese de crise moral e ineficiência administrativa. Por essa razão, após o apelo a “choque de austeridade” se apela agora a segunda fase do “choque de ordem”. As duas faces de uma mesma moeda. O “choque de ordem” não começou agora, já existia desde que criou-se uma prioridade de desembolsos para a pasta de segurança a despeito dos atrasos para as demais funções de Estado. Na ocasião, argumentei diversas vezes que o risco era do Rio se tornar um “Estado policial” onde poderia parar tudo menos a segurança.
Essa tática não deu certo porque o choque de austeridade foi tão duro que mesmo sendo priorizada a pasta de segurança sofreu um enfraquecimento considerável do ponto de vista de recursos para um planejamento e visão estratégica. Passou a prevalecer a lógica curto prazista que dá razão ao uso mais indiscriminado do poder bélico. Tática cruel pôs reduz o espaço de mediação com lideranças sociais no território e expõe o policial a maior risco (em particular, de vida) em operações improvisadas e que se exige resultados midiáticos.
O grande equívoco que temos que evitar é separar as coisas, como se a crise na segurança não tivesse relação com a crise financeira do governo estadual. Se acreditarmos nisso, a lógica de “choque de ordem” se impõe fazendo crer que precisamos agora de uma força externa moralizadora. Se ao invés disso associarmos as coisas, surge como contradição fundamental o “choque de austeridade” associado que levou diversas áreas do Estado a situação crônica de quase inoperância.
Portanto, incomoda-me muito quando vemos maioria dos grandes veículos e opinião pública discutir intervenção sem discutir o aspecto financeiro. De repente, parece que tudo se resume a especialistas em segurança e nenhuma relação com economistas e especialistas em gestão fazendária. Sendo mais explícito, tocar essa intervenção dissociada do problema das finanças públicas estaduais e sem buscar uma saída para ele (ao contrário, mantendo o regime de recuperação fiscal) é um embuste. Repito, o problema fundamental é financeiro!
Diante disso, duas vias poderiam ser cogitadas. Primeira via, aprofundar essa lógica belicista de “território em guerra”, o que guarda contradição com a política de ajuste fiscal, mas de forma só aparente. Isso porque aceita-se financiamento por déficit mesmo que, para o mais importante para recuperar o desenvolvimento socioeconômico, continuem a impor a moral do orçamento equilibrado e austeridade máxima. Deixa claro que não falta dinheiro para gastos armamentistas. Segunda via, socorrer financeiramente o governo estadual junto a planejamento estruturado de políticas numa lógica desenvolvimentista de “territórios produtivos”. Na segunda via, ao invés de intervenção militar, se teria uma solução federativa via o fortalecimento de um fundo nacional de segurança pública junto de políticas indutoras sobre a economia estadual.
A opção pela primeira via, aquela da lógica belicista de “território em guerra”, revela bem a natureza de valorização patrimonialista associado a produção urbana na base do modelo econômico e logo de proteção patrimonial de uma elite que sustenta o metro quadrado mais caro do país. Da mesma forma, ela se adequa bem a interpretação resumida à crise moral e ineficiência administrativa, dado que é um governo estadual que se aceita fraco e inoperante e que renuncia a função que foi escolhida como a principal.
Parte da opinião pública que acredita em soluções de força salvacionista vão idealizar os desdobramentos diante das demonstrações ostensivas das armas do poder público. Porém, isso oferece resultado a questão central que é a financeira? Mantendo-se o governo estadual na lona, servo dos interesses de credores de dívida e pulando de receita extraordinária em receita extraordinária sem capacidade orçamentária para qualquer ação estratégica. Diante disso, não idealizo que se fortalecerá nem mesmo a pasta de segurança pública sem uma solução que garanta o fortalecimento financeiro do governo estadual para restabelecer suas políticas.
O que o governo federal faz agora é mais um ataque ao princípio federativo para dobrar a aposta no choque de austeridade que ele nos impôs. Um governo estadual que já serviu para articular isso nos últimos anos agora cumpre seu último papel, após condenar a economia agora entrega o controle do território. Após o saque e expropriação, legitima-se um território que visto como em estado de guerra é fadado a ser improdutivo.
E pior, o modelo de ocupação militar sugerido é dos grandes eventos, ou seja, pensa-se em usar um conceito “fora do tempo”. Tenta se ocultar que um modelo dessa natureza só serve para uma excepcionalidade momentânea e para isolar em “bunker” alguns pontos da cidade com visibilidade internacional e as vias de acesso aos mesmos. Isso está longe de servir para uma tática corrente de dia-a-dia de patrulhamento e para atender a totalidade do território. Provavelmente, insistindo nisso vai se escolher pontos focais de vitrine e reproduzir a lógica de cerco ao resto do espaço.
O objetivo de usar o Rio de Janeiro de “vitrine” continua. Primeiro como anti-exemplo de desajuste fiscal para estimular as reformas conservadoras nacionais, agora também como anti-exemplo de desordem social para experimentar medidas de exceção num espaço militar sitiado. Fora esse efeito “vitrine”, só oferecem a promessa de remissão com a ideologia da austeridade.
Portanto, ou superamos as limitações da tese de crise moral e ineficiência administrativa para uma olhar mais profundo para os problemas econômicos ou não entenderemos que, ao invés de tanque e fuzil, o escudo do povo sofrido é sua carteira de trabalho. Inclusive para fortalecer a pasta de segurança esse olhar é preciso para ela se enxergar como composta de classe trabalhadora, e as políticas sejam voltadas para valorizar o trabalhador ao trazer para o centro do debate como custear adequadamente a respectiva pasta. Da mesma forma, as demais classes de servidores estaduais devem focar nessa questão financeira. Isso porque garantiria que uma gestão de folha com maior possibilidade de ser normalizada e restabelecimento do orçamento para ações estratégicas. Senão governo federal poderá gastar até muito no Rio, mas gastará mal e sem isso permitir a recuperação econômica estadual junto de um governo estadual refortalecido.
Só assim voltaremos a ser todos sujeitos de nossa própria história como população fluminense, e não vacilaremos em servir ainda mais a um governo federal que nos tira poder de gasto e recuperação socioeconômica.
Conclusão:
O tema de segurança vai se tornar o principal tema do processo eleitoral estadual. Cabe decidir se os candidatos vão escolher combinar com: austeridade fiscal máxima somada à lógica belicista de um território em guerra (logo, improdutivo), ou então solução federativa que fortaleça de recursos as funções da administração estadual somada à carteira de trabalho como escudo do povo (ou seja, políticas de emprego e da renda sob um território produtivo). A diferença entre as duas propostas é se vão reafirmar a vigilância e o controle sobre o “cativeiro social” ou buscar sua libertação.
Crédito da foto da página inicial: EBC
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