Os resultados das recentes eleições parlamentares no Reino Unido contrariaram todas as pesquisas de opinião e a maior parte dos analistas. Apressados em celebrar a morte dos trabalhistas e, mais generalizadamente, das políticas reformistas, essas vozes da razão de repente foram contraditadas por mais uma patada da massa ignara, aquela que resiste à modernidade e vota “contra seus interesses”.
Não é a primeira vez que algo semelhante acontece. Em junho de 2016, realizou-se no Reino Unido um plebiscito para decidir se a Grã-Bretanha permanecia na União Europeia. Venceu a opção do Brexit – o “Br” de “britain” e o “exit”, de “saída”. Um total de 52% dos votantes escolheu esse caminho. A permanência (remain) fora defendida pelo Partido Trabalhista (Labour) e também pela liderança do Partido Conservador, que chefiava o governo.
A saída (exit) era defendida pela ultradireita e por alguns grupos à esquerda, os euro céticos. Ainda mais chocante parece ter sido o corte entre os eleitores. Tradicionais redutos trabalhistas votaram na tese defendida pela ultradireita. Esse aspecto do resultado torna-se mais relevante quando o comparamos com o que ocorreu em duas outras votações – as eleições presidenciais nos Estados Unidos e na França. Ou quando vemos o ressurgimento de agrupamentos de ultradireita na Europa central e na Itália.
A partir desses casos, uma espécie de lenda urbana tem aparecido com frequência na mídia e mesmo em textos acadêmicos. Diz essa estória que, nas últimas décadas, a classe trabalhadora estaria se movendo para a direita, isto é, abandonando seus tradicionais alinhamentos com sindicatos e partidos de esquerda e votando em programas de direita, até mesmo de ultradireita. Com todas as evidências de alguma verdade, o argumento parece, pelo menos, um tanto exagerado. Em vários sentidos. Primeiro: não é certo que a classe trabalhadora tivesse feito opção tão definida e massiva pela esquerda, em um idealizado momento anterior. O passado não era tão massivamente vermelho. Segundo: também não é certo que ela tenha feito a segunda escolha (ir para a direita) de modo claro e massivo. Mais seguro parece dizer que, na maioria dos casos nacionais que conhecemos, houve, sim, uma inclinação claramente maior pelo “alheiamento” (abstenção + voto nulo ou branco). E, dentre aqueles trabalhadores que seguiram votando, aí, sim, alguma inclinação para a direita, embora menor do que se costuma alardear.
Agora, no novo pleito, pesquisas e analistas davam como certa uma vantagem folgada para os conservadores, sobre os trabalhistas (20%). Na véspera e na boca de urna admitiam uma diferença menor (8%). Nos resultados apurados, a diferença é de meros 2,4%. O líder trabalhista, Jeremy Corbin, foi tratado como um esquerdista defasado, fora do tempo, incapaz de compreender a “modernização” da sociedade britânica. Em resposta, ele dizia: a esquerda cresce quando defende o seu programa, não quando o esquece, renega ou trai.
Alguns dos analistas depressivos do Brexit repetiram algo que também se ouvia entre socialistas franceses e democratas americanos: lamentavam que a classe trabalhadora tivesse votado “contra seus interesses”, apoiando plataformas claramente reacionárias. O que se esquece, nessa lenda confortável, é que as vozes que diziam representar os “interesses dos trabalhadores” propunham e executavam políticas que dilapidavam tais interesses.
O Labour inglês, o Partido Democrata americano, o PS francês, todos queriam aparecer como herdeiros “por definição “ do voto dos trabalhadores, ao mesmo que tempo que renunciavam à herança ideológica, tida como antiquada. Trump, Le Pen e o UKIP (os ultraconservadores britânicos, um simulacro de partido) de fato dirigiram a esse segmento eleitoral um apelo a seus interesses. Os trabalhadores foram enganados? É possível, pois não? Mas… teriam votado “conforme seus interesses” elegendo alguém como Blair, Benoit Hamon, Hillary?
No apagar do século XX, Tony Blair, o politico que personificou a “modernização” do Labour, dando-lhe uma cara mais “classe media”, disse, sentencioso que “a Guerra de classes acabou”. Não era uma constatação, era uma declaração unilateral de cessar-fogo. Do outro lado, o megaempresário americano Warren Buffett foi mais realista: existe, sim, luta de classes, e a minha está ganhando.
Se o Labor abandonava assim seus “filhos”, a orfandade não iria durar. No referendo do Brexit, os abandonados adotaram pais provisórios. Apenas para uma pequena viagem, ao que parece – o ultraconservador UKIP, paladino do Brexit, praticamente desapareceu nestas eleições. Seu líder pediu para sair.
De fato, a atitude mais frequente e mais durável não foi uma clara viragem para direita: cada vez mais, a classe trabalhadora escolhe não votar. E só é deslocada dessa indiferença se desponta algo de urgente e que valha a pena. Agora aconteceu algo parecido. Primeiro, um Labour com outra cara, a de Corbin. Segundo, um partido conservador que deu vários tiros no próprio pé, com propostas “modernizantes” danosas para os debaixo, para variar. A abstenção foi a menor dos últimos 20 anos – e, ao que tudo indica, os trabalhadores não saíram de casa para votar na direita, pelo contrário.
Em 2011, registrou-se um aumento extraordinário da abstenção, em nível nunca antes visto. Em termos absolutos, milhões de trabalhadores, antes fiéis ao Labour, resolveram ficar em casa ao invés de votar. Por quê? Em algumas pesquisas qualitativas reportadas na mídia, trabalhadores respondiam: “não há muita diferença entre o Labour e os Conservadores”. Manifestava-se assim aquele que talvez seja o partido majoritário nas classes populares, o “Tanto Faz”.
Um outro aspecto do descontentamento também era vinculado a políticas do Labour: a imigração. Blair e sua equipe não viam nenhum problema ou conflito na política de ajudar os bombardeios americanos em diversos países e, por outro lado, receber e promover a vinda de imigrantes desses países. Ou a dilapidar a economia desses países, produzindo miséria a céu aberto.Como os democratas nos Estados Unidos, os trabalhistas ingleses dizimavam famílias mundo afora e afagavam seus parentes na Inglaterra, muitas vezes contratando-os como serviçais. Olhando para cenário similar nos EUA, o reacionário Trump captou bem esse cinismo: democratas como Hilary querem os latinos como curral eleitoral e como empregados baratos.
Há pouco tempo, confrontando esses dois casos – o americano e o inglês- Justin Gest publicou instigante estudo- The New Minority: White Working Class Politics in an Age of Immigration and Inequality (Oxford University Press, 2016). Depois de analisar as duas situações, o autor pergunta: Como falar para esse enorme contingente de trabalhadores deslocados e desiludidos pelo deslocamento das indústrias, a devastação das cidades, a degradação dos serviços públicos? Adianta algumas possibilidades ou “recomendações” para aqueles que querem disputar esses trabalhadores e reduzir a influência conservadora:
1. Apresentem candidatos fora das elites, candidatos extraídos do meio popular.
2. Empreguem narrativas da classe trabalhadora, com sua linguagem, seu estilo e seu ponto de vista.
3. Não confundam classe trabalhadora com os indefesos ou derrotados. Trabalhadores querem ser vistos como independentes, autossuficientes, batalhadores.
4. Não partam da ideia de que sindicatos são sinônimo de classe trabalhadora. Os tempos mudaram, a maior parte dos trabalhadores não é sindicalizada e por vezes nem sindicalizável.
5. Desafiem a visão da nostalgia confrontando-a com a visão da esperança.
Aparentemente, algo desse tipo aconteceu com o Labour de Jeremy Corbin. Conseguirá manter esse rumo? A Inglaterra está mais próxima de um partido conservador no governo “por falta de opção”, como na Espanha? Ou surgirá alguma “geringonça” como a de Portugal, em que as diferentes esquerdas conseguiram costurar um acordo mínimo de superação das políticas de austeridade?
Crédito da foto da página inicial: BBC
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