Publicado em Outras Palavras em 11-3-2016
Congresso Nacional impõe sua agenda regressiva ao país. Foto: Agência Brasil
A condução coercitiva do ex-presidente Lula em 4 de março foi, até o momento, o episódio mais grave da atual crise econômica e política no Brasil. A crise nos coloca diante de uma ameaça, diretamente ligada à correlação de forças existente na sociedade: os interesses do grande capital financeiro, há muito questionados, podem retomar completamente o controle do jogo.
Diante do espetáculo criado pela imprensa na chamada “luta contra a corrupção”, os interesses dominantes amplamente representados no Congresso aproveitam-se da cortina de fumaça para impor sua agenda regressiva ao país.
Ao invés de discutir com seriedade e aprovar uma reforma política que pusesse fim ao financiamento empresarial de campanhas eleitorais, que é a base da estrutura do sistema político brasileiro criado no fim da ditadura militar e que está na raiz do escândalo atual, oportunisticamente resgata-se antigas e derrotadas ideias sob a forma de projetos de lei (PL), propostas de emendas constitucionais (PEC) e projetos de resolução do Senado (PRS) à aprovação sob regime de urgência. O rápido exame de alguns deles evidencia como atentam contra a soberania nacional, a democracia e os direitos humanos no Brasil.
Começando pela economia, o PRS 84/2007, apresentado pelo senador José Serra (PSDB/SP), estabelece um teto para a dívida pública líquida e bruta da União, reduzindo a autonomia de política macroeconômica do Estado (na sua capacidade de atuação anticíclica).
Isso significa, no curto prazo, aprofundar o ajuste fiscal em curso desde 2015 e comprometer as possibilidades de saída da crise pois, também no médio e longo prazo, o estímulo tributário e de gastos públicos é fundamental para acender a dinâmica de investimentos doméstica.
Duas das questões mais sensíveis e que afeta diretamente os gastos públicos são a reforma da previdência e a política de valorização do salário mínimo. Ambas estão sendo transformadas em prejuízo dos trabalhadores (como ficou claro no começo de 2015 com a imediata investida, naquele momento mal sucedida, para alterar a regra da valorização do mínimo e na Medida Provisória 680/2015, no sentido da flexibilização das leis trabalhistas), dos aposentados e da própria autonomia de política econômica e social.
A Lei de Responsabilidade das Estatais (PLS 555/2015), cujo relator é o senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), é mais uma proposta em curso que fere o princípio da autonomia, ao criar um marco regulatório que enquadra as empresas estatais na lógica do mercado financeiro. Além de impedir filiados a partidos e sindicalistas de participarem na composição dos conselhos e diretorias, prioriza quem tem experiência no mercado. Tal reforma possibilita, sob a imagem de um falso republicanismo, a captura por parte de grupos particulares privados, nacionais ou estrangeiros, dos bens públicos que impactam fortemente na atividade econômica nacional e na inserção geopolítica do país.
Aqui residem dois movimentos igualmente perniciosos. O primeiro é a ameaça aos direitos de militantes de partidos e sindicatos — algo que fortalece a ampla propaganda de criminalização da política atualmente em curso, subtraindo dos atores políticos seus instrumentos legítimos de representação. Na esteira de um suposto esforço de combate à corrupção, difunde-se uma ideologia elitista e tecnicista, que associa toda e qualquer atividade política à busca do auto-interesse, ao descaso com a coisa pública quando não à simples prevaricação, como se o mercado e as estruturas burocráticas do Estado não fossem, eles também, permeados de interesses e visões ideológicas.
O segundo movimento é o de recondução da política externa e da margem de manobra do Estado diante das grandes potências, especialmente dos Estados Unidos, já que o posicionamento geopolítico no campo energético é crucial para a soberania brasileira e latino-americana. Ao contrário, o movimento de curso é de privatização dos recursos naturais e um benefício da maior participação dos grupos financeiros internacionais, representando uma subtração da soberania nacional e o fortalecimento deles.
É exatamente a soberania nacional que está em jogo com a aprovação pelo Senado Federal do PLS 131/ 2015, também de autoria do senador José Serra e atualmente tramitando na Câmara como PL 4567/2016. O projeto estabelece que a Petrobrás terá a prerrogativa de escolher se quer ser operadora do campo do Pré-Sal ou se prefere se abster da exploração mínima de 30% obrigada pela lei. Portanto, abre possibilidade para o capital privado, nacional e estrangeiro, se apropriar ainda mais de um recurso estratégico.
Além disso, limita o poder fiscalizador que a estatal brasileira exerceria sobre a exploração do campo. Ou seja, não somente não garante que as operações passem a ser feitas maximizando lucratividade e eficiência, como desconsidera as implicações mais abrangentes de sua operação sobre a estrutura produtiva doméstica e suas consequências distributivas – em prejuízo, novamente, dos interesses da maioria dos brasileiros.
Falando na possibilidade de maior participação estrangeira na propriedade de ativos brasileiros, está em trâmite um texto substitutivo ao PL 4059/12 para flexibilizar o processo de compra de terras brasileiras por estrangeiros. O texto contraria parecer publicado pela Advocacia Geral da União — que veda, por exemplo, empresas estrangeiras adquirirem imóvel rural com mais de 50 módulos de exploração indefinida.
Paralelamente, também se fortalecem os interesses ruralistas com a PEC 215/ 2000, que tem como objetivo retirar do Executivo o poder para demarcar terra indígena, transferindo a palavra final sobre demarcação das terras para o Congresso Nacional. Na prática, as terras ditas “tradicionais” passarão a ser interpretadas como qualquer outra propriedade rural. Ainda sobre esse tema, seguiu para a câmara dos Deputados a PEC 71/2011 (relatada pelo senador Blairo Maggi (PR/MT) e aprovada de forma unânime no Senado), que prevê a indenização a proprietários rurais com áreas incidentes em Terras Indígenas.
Há ainda a tentativa de flexibilização do estatuto do desarmamento. O texto substitutivo, do deputado Laudivio Carvalho (PMDB-MG), aprovado em uma comissão especial do Congresso, facilita a obtenção do porte de armas por mudar os requisitos necessários para o cidadão comum receber autorização para circular nas ruas portando armas de calibre permitido. Trocando em miúdos, será facilitado o acesso às armas por particulares, possibilitando, no limite, que novas milícias possam atuar concorrentemente às forças do Estado – aumentando, ao invés de retrair a violência.
Também no campo dos direitos civis, o PL 5069/ 2013 do deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ) aprovado pela Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) da Câmara, altera regras sobre o aborto, criminalizando quem preste qualquer auxílio ou orientação. No caso de estupro, o texto prevê que o aborto seja permitido somente com exame de corpo delito.
Já o Estatuto da Família, PL 6583/2013, de autoria do deputado Anderson Ferreira (PR/ PE), sedimenta uma definição excludente de entidade familiar (“o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”), o que tem como consequência a exclusão do casamento homossexual e também da adoção por famílias formadas por homossexuais marcando um retrocesso enorme nos poucos direitos conquistados pela comunidade LGBT.
Ainda aguarda apreciação do Senado Federal a PEC 171, proposta originalmente em 1993, sobre a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Além de especialistas concordarem de modo quase unânime que a medida não afasta efetivamente adolescentes do crime, seu efeito político imediato é isentar o Estado do compromisso com políticas de juventude, combatendo-se o efeito e não a causa da criminalidade, como o comprova a experiência de outros países. A medida é absurda dentre outros motivos porque já existem leis que responsabilizam menores infratores. Todos esses diferentes projetos simbolizam enormes retrocessos nos direitos civis, que prejudicam principal e diretamente as vidas das mulheres, jovens e LGBTs.
Enquanto emergem aparatos legais tão polêmicos, é assustadora a aprovação da lei anti-terrorismo pelo Plenário do Senado em 24 de fevereiro de 2016, que reformula o conceito de “organização terrorista”. Como alardeiam os críticos, e também a Organização das Nações Unidas (ONU), o projeto agride os direitos humanos porque a tipificação para o crime de terrorismo está ampla e abre margem para a repressão de movimentos sociais e manifestações populares.
Em nota, a ONU reforçou que definições imprecisas não são compatíveis com a perspectiva das normas internacionais de Direitos Humanos. Ou seja, no atual contexto em que os diversos atores políticos deveriam se fortalecer para fazer escutar suas vozes e disputar o poder, reprime-se seu direito fundamental de se organizar, movimentar e manifestar.
Mesmo que se seja a favor de um ou mais dos projetos aqui tomados apresentados, há de concordar que a premissa elementar, de que o que não pode ser limitado é a garantia da preservação das instituições democráticas. Ou seja, não é hora para decisões tão importantes serem tomadas sem amplo debate na esfera pública, com espaço para crítica e reflexão.
A prioridade é, também, zelar pelos direitos humanos e pelas conquistas sociais que efetivamente melhoraram as condições de vida da maioria da sociedade brasileira. É preciso pensar também se essa ofensiva contra empresas brasileiras e contra o atual governo é genuinamente uma tentativa de combater a corrupção e moralizar a política nacional, ou se é uma investida seletiva a favor dos interesses financeiros e internacionais, contra a alteração da correlação de forças da sociedade brasileira dos últimos anos – em que se fortaleceu a posição do Brasil na geopolítica mundial ao mesmo tempo em que se retirou milhões de pessoas da miséria, aumentou-se a remuneração real média dos trabalhadores e atingiu-se a menor taxa de desemprego observada desde o fim da ditadura militar.
Cristina Fróes de Borja Reis, Doutora em Economia pela UFRJ, Professora de Economia e Relações Internacionais na UFABC, autora da monografia premiada pelo Tesouro Nacional Os efeitos do investimento publico sobre o desenvolvimento econômico: análise aplicada para a economia brasileira entre 1950 e 2006 (2008).
Tatiana Berringer, Doutora em Ciência Política pela UNICAMP, Professora de Relações Internacionais na UFABC, autora do livro A burguesia brasileira e a política externa nos governos FHC e Lula .(2015).
Maria Caramez Carlotto, Doutora em Sociologia pela USP, Professora de Relações Internacionais na UFABC, autora do livro Veredas da mudança na ciência brasileira. Discurso, institucionalização e práticas no cenário contemporâneo (2013).
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