Já houve tempos em que a política tinha clara capacidade de união, pois lutar pela transformação de algo que se acredita requer a união de um coletivo que pensa e age de uma forma estratégica e que ambiciona construir um amanhã melhor.
Acompanhando debates de política em rodas de conversa ou por meios virtuais (whatsapp, facebook), vejo que tem crescido a capacidade justamente do contrário, da desunião proporcionada pela política. Isso não ocorre apenas pela desesperança de dias melhores no futuro, ou pela descrença na política, nem tampouco decorre da falta de altruísmo de nosso tempo ou do conhecimento superficial da história. Ocorre, também, pelo desamor.
Vivemos em um país que exige uma reflexão sobre a questão que Guimarães Rosa apontou certa vez: “Se todo animal inspira ternura, o que houve, então, com os homens?”
Construímos uma sociedade que não aceita o diferente. Na verdade, é estimulado justamente o inverso, pois cada um reafirma sua identidade não aceitando o pensamento, o sexo, o gênero, a cor, o gosto e a escolha dos outros. É o desamor e a intolerância que permeiam os laços que constroem nossa sociabilidade! Que triste! Isso gera reflexos em todas as esferas da vida social, inclusive na política, corroendo os valores culturais da democracia.
Não se constrói democracia sem valores democráticos, pois o mais importante da democracia não são seus aspectos jurídico-formais – na realidade é o contrário, pois o alicerce de todo o ordenamento jurídico de um país democrático é formado em decorrência valores democráticos da sociedade, mesmo que incipientes. E possui a importante finalidade de preservar esses valores em momentos de crise social.
Nossa experiência atual tem mostrado que só isso não basta, pois a interpretação e aplicação das normas jurídicas só são efetivas se tais valores democráticos são cultivados em todas as esferas da vida em sociedade. Esse cultivo tem que ser cotidiano, tem que se ter paciência e cuidado diário, para que a semente germine e ganhe força para abalar as estruturas de poder da sociedade.
São essas estruturas de poder que criam todo um sistema de privilégios na sociedade e toda vez que elas são ameaçadas se instala uma crise onde se amplia, ou talvez apenas se escancare, a luta de certos grupos sociais na manutenção de seus próprios privilégios, não tolerando o novo, não tolerando o diferente.
Por esta razão, lutar pelo fortalecimento da democracia é lutar com veemência contra a intolerância ao diferente. Não se tolera a intolerância, assim como não se aceita golpear a democracia. Devemos aprender e ensinar a cultivar a democracia em todos os micros espaços de poder. Talvez assim o debate volte a ser valorizado como espaço de construção de conhecimento coletivo e não como espaço de disputa de egos.
Isso não significa que os debates não tenham embates, pois escancarar as estruturas de manutenção dos privilégios gera tensões e é esse o germe da transformação. Brecht pensava que a finalidade da arte era falar bem alto o que pensamos bem baixo. Ele pretendia mais que revelar, ele queria era gritar para todo mundo ouvir o que buscamos esconder ou falar baixo, mas o grito, o embate, não pode nunca ser permeado com desamor, que apenas ensurdece ainda mais e não contribui para o que se pretende desconstruir.
Cada um tem sua posição política, que podemos buscar compreender, discordar, analisar, criticar, mas se preocupar muito quando o que determina esse posicionamento é o ódio. É isso o que vejo hoje, por esta razão às vezes não é viável debater, pois não há razão, não há ternura, não há disposição para ouvir e aprender com o diferente.
Pode parecer fantasioso, mas a luta contra o golpe não pode ser permeada com ódio, pois só com desenvolvimento de nossas sensibilidades, somente com ternura, pode-se mudar o jogo. Golpe e desamor estão lado a lado e prefiro estar de outro, bem distante.
Crédito da imagem da página inicial: El País
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