Um dos graves vícios da atividade política nas democracias liberais e, sobretudo, na democracia brasileira, é reputar a transformação social como resultado do número de leis aprovadas. Deputados e senadores atribuem sucesso de suas carreiras políticas ao número de projetos que conseguem aprovar na legislatura para que foram eleitos.
Por mais que se insista na complexidade e tamanho (territorial e populacional) do Brasil, é no mínimo insuficiente atribuir à produção de normas a solução mágica de problemas estruturais, os quais dificilmente prescrições legais serão capazes de resolver.
Já são mais de 13.000 leis aprovadas, com diferentes conteúdos e teores, desde a proclamação da República, em 1889. Numa apressada conta, considerados os 126 anos de período republicano (e desconsiderados os anos em que o Congresso Nacional esteve fechado em razão de pressões autoritárias), o Brasil viu sancionadas mais de 106 leis por ano.
É claro que aqui há diferentes fenômenos que se interpõem: conversão de decretos-lei em leis após 1988, leis que alteram ou atualizam parcelas de texto, leis com conteúdos meramente simbólicos (como a inscrição do nome de pessoas no livro de heróis da pátria ou batismo de pontes e viadutos). Mas chama a atenção o fato do quanto se produziu até aqui.
No entanto, é preciso questionarmos mais a fundo as razões dessa produção massiva de leis e banalização da atividade legislativa. Ela representa uma crise de valores constitutivos de nossa sociedade, que reputa soluções (seja por seus representantes, seja pela sociedade civil organizada) de problemas à aprovação de novas e mais novas leis, que supostamente produzem resultados traduzíveis como benéficos.
O excesso na produção de leis parece também querer substituir valores pessoais, como diligência, responsabilidade individual e coletiva, ação ética: no momento em que aprovar leis parece ocupar o lugar desses valores, a produção legislativa reforça o – generalista e acintoso – argumento da frouxidão moral da sociedade brasileira.
Seguindo essa linha, toda ação seria isenta de reprovação, até que a lei considerasse reprovável determinada conduta.
Esse caminho é evidentemente temerário. Trilharmos os rumos de nossa cidadania, de nossa democracia, numa espécie de pacto tácito entre legisladores e cidadãos, à espera de boas leis que beneficiem a todos, é amparar-se em muletas frágeis, rachadas, com risco de forte queda em nosso caminhar.
Boas leis são resultado de mecanismos eficientes de produção legislativa, que tentam antever os impactos e grau de adesão, na fase em que ainda são projetos de lei.
A ignorância de membros do poder legislativo quanto a aspectos técnicos de determinada proposta, quando não convidam especialistas para ouvir e entender os meandros dela, quando ignoram ou não realizam audiências públicas e debates enriquecedores com a sociedade civil, com a academia e com os demais poderes e, ainda, quando desconsideram as condições objetivas, materiais, de recursos mobilizáveis e disponíveis para cumprir determinada previsão legal que esperam aprovar são razões importantes para as chamadas “leis que não pegam” ou “leis para inglês ver”.
Precisamos romper com esse ciclo inercial, de uma produção legislativa de larga escala, como se fosse um produto feito na esteira de uma fábrica. Romper com esse fordismo legiferante, um racionalismo legalista que acredita – de maneira dogmática – que problemas de nossa sociedade serão resolvidos com novas e mais novas leis.
Legislaturas esbaforidas por votar e aprovar (seja em razão dos limites temporais de mandatos, seja em razão de crises políticas institucionais), podem por em risco a qualidade da produção legislativa. “Vamos fazer uma lei para resolver esse problema”…Quem nunca ouviu tais palavras saindo da boca de algum político?
Inutilia truncat. Essa era a expressão que descrevia a poesia arcadista. Os poetas árcades do século 18 escreviam seus poemas com o objetivo de suprimir toda a inutilidade da métrica e da estética literária antiga. Produzir leis inúteis, como forma de escape da realidade, é o mal-estar que enfrentamos em nossos dias: leis que jamais serão cumpridas, que apenas parecem justificar a existência da autoridade legislativa, do poder de fazer emanar leis que, de fato, pouco ou nenhum resultado produzem.
Romper esse ciclo deve começar com a própria qualificação da atividade legislativa. Com a revisão e compilação do que já se produziu até aqui. Não basta propor, a partir de uma mente racional e individual, como alguns parlamentares fazem. Tomar como ponto de partida a mirabolice individual.
Mas submeter ao crivo da qualidade coletiva as propostas. Ouvir, acima de tudo. Já é antigo o ditado que afirma que temos dois olhos, dois ouvidos e apenas uma boca: para que observemos e ouçamos mais que falamos.
Seria um bom começo…
Crédito da foto da página inicial: EBC
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