Em um de seus últimos livros, a educadora americana Diane Ravitch conta uma estória instrutiva. A secretaria de educação do estado americano de Iowa convidou um bem-sucedido empresário para uma palestra a professores e administradores da rede pública. Ele fora premiado por produzir “o melhor sorvete de morango do país”.
Durante mais de uma hora, o homem de negócios relatou entusiasmado os métodos pelos quais sua empresa alcançara o sucesso: estritos controles de qualidade e prêmios e bônus para os empregados que atingiam metas. E recomendou que esses fossem os mandamentos na administração da rede escolar.
Terminada a conversa – com farta distribuição de sorvetes, claro – uma professora pediu a palavra. Pediu a ele que respondesse, direta e brevemente, o que fazia com os morangos “menos bons” que chegassem a sua fábrica.
Ele vacilou, mas não tinha outra resposta: disse que eram rejeitados. Ele só trabalhava com o melhor. A professora retomou a palavra e disse: essa é uma das razões pelas quais nossas escolas não devem imitar seus métodos de administração. Nós não podemos refugar nossos morangos menos bons.
O leitor (e eleitor) brasileiro deve ter lido ou ouvido arengas como a desse empresário a todo o momento. Nos últimos 20 anos, sobretudo, banqueiros, industriais e donos de redes de comunicação criaram dezenas e dezenas de ONGs para “melhorar” a educação e disseminar o que chamam de “boas práticas”.
São todos muito bem-intencionados. Quando saem de suas fábricas, lojas e bancos, até empresários selvagens viram anjos de ternura. Por alguma coincidência, essas ONGs e OSs floresceram mais quando o Estado privatizou serviços, inclusive de educação – e terceirizou muitas atividades.
Elas viraram prestadoras de serviços e comedoras de verbas. O setor público não pode contratar pessoal, por conta da lei de responsabilidade fiscal, então… repassa tarefas a uma dessas organizações, com contrato de serviços e nota fiscal.
Já ouvimos muitas estórias de empresários mundo afora criando programas de bolsas para estudantes carentes. Nossos empresários não são bem assim.
Uma famosa banqueira, por exemplo, criou uma dessas ONGs. Ela não distribui doações: ela caça. Caça dinheiro de secretarias estaduais e municipais de cultura e de educação, de agências federais ou estaduais de apoio à pesquisa, à cultura e à educação. Ela é uma caçadora incansável.
Sempre em busca do bem comum e do avanço da educação, claro. Enquanto isso, seu banco é processado por sonegação – a bagatela de 18 bilhões de reais. Ela tem advogados para eternizar a cobrança.
Nossos empresários bondosos de ONGs educativas costumam usar o discurso do sorveteiro americano: controle de qualidade, bônus e prêmios de desempenho para as “boas práticas” e “avaliação por resultados”.
O problema deles é saber o que fazer com os morangos menos bons que uma sociedade desigual como a brasileira produz. Os mesmos bondosos empresários que rezam pela educação são em geral aqueles que ladram contra os programas de redução da pobreza. Será por acaso?
Não, não é acaso. Talvez não haja lugar mais confortável para os conservadores do que o “evangelho da educação”, isto é a crença subliminar que difundem, segundo a qual as pessoas são pobres ou estão pobres porque não são educadas adequadamente.
Daí, a educação vira santo redentor e, ao mesmo tempo, culpada do fracasso. O mercado de trabalho e as relações de exploração nas empresas são detalhe. Assim como a desigualdade provocada pelo sistema tributário regressivo – pobres pagam mais imposto do que ricos, trabalhadores pagam mais do que empresários.
E muitas empresas que sonegam solenemente são também empresas patrocinadoras dessa filantropia (ou pilantropia) educativa: Natura, Itaú, Globo. Tudo gente boa.
O que quer dizer isso? Que não devemos investir na melhora de nossas escolas e sistemas educativos? Que isso não tem importância para reduzir a desigualdade e criar um país mais justo, desenvolvido e soberano? Não, nada disso.
Mas devemos ficar alertas com esses profetas perfumados do “evangelho pedagógico”. A crença na reforma da escola e pela escola pode se transformar em um novo “ópio do povo”, ou como dizia o conhecido texto no qual surgiu tal expressão: um grito do espírito em um mundo sem espírito, mas, ao mesmo tempo, um instrumento de consolo geral que torna suportável o vale de lágrimas.
Como a condição para abandonar as ilusões sobre sua condição é abandonar uma condição que necessita de ilusões, o círculo parece fechado, sem possibilidade de ruptura. Mas não é assim.
Para começar, nossos empresários fariam melhor se pagassem seus impostos ao invés de mobilizar seus advogados. E se deixassem de mobilizar seus capangas legisladores para impedir reformas tributárias progressivas.
E se deixassem de tentar retirar a política econômica do controle do povo – com essas propostas indecentes de “banco central independente” e ‘comissão de bons’ para reger a política fiscal.
Tudo isso está no programa que a banqueira do Itaú e o banqueiro do Citibank redigiram para a candidata verde. Nada surpreendente para gente tão bem-intencionada.
Crédito da foto da página inicial: Jornal GGN
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