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Faces da pobreza: apontamentos sobre o Bolsa Família

Nos últimos 12 anos, presenciamos no Brasil um conjunto de esforços para o combate e o enfrentamento da pobreza e da fome. Com a criação e implementação do Programa Bolsa Família (PBF), programa de transferência de renda condicionada, tivemos a possibilidade de localizar quem e onde estão os pobres e extremamente pobres no País.

Este programa é parte de um conjunto de ações de políticas públicas e sociais que objetivam transformar a dura realidade de milhares de pessoas. Segundo o relatório de informações sociais do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), 13.978.783 famílias beneficiárias do PBF receberam a transferência de renda em março último.

Ao longo de sua existência, o PBF passou por diversos aprimoramentos e ajustes e, no bojo desse processo, tivemos a abertura para análises e pesquisas sobre o programa e seus desdoramentos no campo social. Nesse sentido, a possibilidade de refletir sobre seus impactos também se faz presente no que tange às desigualdades de gênero, sendo que estas são entendidas como construções sociais dos comportamentos e atribuições relacionados ao feminino e ao masculino e que impactam diretamente nas relações sociais e na distribuição desigual de poder entre mulheres e homens.

A característica primeira do PBF é a transferência de renda condicionada e isso significa atrelar o repasse do dinheiro para as famílias abarcadas pelo programa mediante o cumprimento de determinadas condições nas áreas da saúde e da educação.

Essas condicionalidades são justificadas como maneiras de aproximar a população pobre dos serviços públicos e também de incentivar o acesso aos direitos sociais básicos. Atrelar o dinheiro a esses compromissos tem representado incipientes melhoras na condição de vida das famílias beneficiárias, principalmente em relação aos casos de nutrição das crianças e à diminuição da evasão escolar.

A segunda principal característica do PBF é a escolha da mulher como a responsável pela titularidade do cartão que dá acesso ao benefício: 93% dos benefícios repassados para as famílias estão nas mãos das mulheres e essa priorização consta inclusive na Lei que instituiu o PBF.

Por trás dessa recomendação podemos refletir sobre os limites e as potencialidades do repasse do dinheiro prioritariamente para as mulheres: o Estado recomendar as mulheres como beneficiárias para o recebimento do dinheiro e tê-las como aliadas do programa para que seu bom funcionamento e seus objetivos sejam melhor alcançados ancora-se em pressupostos atrelados à concepção social de que o cuidado dos filhos e as responsabilidades domésticas no uso do dinheiro do PBF são essencialmente obrigações femininas.

Tal questão nos permite refletir sobre o lugar social atribuído às mulheres, que, por serem mães, carregariam em si um conjunto de atributos tidos como “naturais”, de que emanaria sua vocação para o cuidado do lar e dos entes familiares. Assim, nesse sentido, o repasse do dinheiro e as condicionalidades do PBF podem representar uma sobrecarga das já muitas responsabilidades que são historicamente relacionadas às mulheres, contribuindo para um maior aprofundamento das desigualdades de gênero.

Por outro lado, é importante destacar a dimensão do dinheiro na sociedade capitalista: ao entrevistar as beneficiárias do PBF em Santo Antonio do Pinhal/SP, como parte do meu mestrado, foi inegável considerar que o ingresso de uma renda fixa coloca em suas mãos pequenos poderes.

Para muitas, o recebimento do PBF é a primeira experiência de uma renda própria e a possibilidade de não depender diretamente ou ter que barganhar algum trocado com o parceiro para realizar gastos com os filhos, com a família e com elas mesmas.

As entrevistadas relataram também sobre suas experiências em circular e socializar por locais além do espaço privado do lar, como o banco, o posto de saúde, a escola dos filhos, as atividades organizadas pelo Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), onde puderam fazer amizades e compartilhar seus problemas. Nesse sentido, podemos compreender que o benefício transferido para essas mulheres possibilita um incipiente empoderamento financeiro objetivo e um certo empoderamento subjetivo no que diz respeito ao sentimento de pertencimento social.

O desenho do PBF, então, nos leva a questionar em que medida o repasse do dinheiro contribui para uma real transformação das desigualdades sociais e de gênero? É importante considerarmos que a pobreza não é somente a ausência de renda, mas sim um conjunto de ausências compreendidas como injustiças econômicas, sociais, culturais e simbólicas.

E, para vislumbrarmos a saída das famílias pobres do PBF, é necessário incentivarmos um conjunto de ações que impulsionem esta parcela significativa da população para uma real transição em sua condição de classe e acesso à cidadania. Nesse sentido, é crucial a ampliação dos serviços públicos que incidam substancialmente na transformação da condição de vida das mulheres do Bolsa Família, para que possam romper com os estigmas da pobreza e se arriscarem a escrever suas próprias histórias de vida.

Outra ação necessária é a perspectiva de qualificação profissional dos beneficiários do programa, de modo que consigam ascender a postos de trabalho formais, com um ingresso de renda substantivo para deixarem o PBF. Esse último aspecto, desde 2011, tem sido em alguma medida abarcado pelo Plano Brasil Sem Miséria.

Por fim, refletir sobre as políticas sociais e as estratégias para superação da pobreza vai além da transferência de renda condicionada, mas compreende enfrentarmos a história de exclusão social no Brasil. Representa reconhecer e compreender as desigualdades para que possamos assim lutar por redistribuição das riquezas e da justiça social e criarmos espaços de participação política onde as pessoas excluídas tenham voz.

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