O debate sobre os papéis relativos do Estado e do mercado em economias capitalistas tende a oscilar ao longo do tempo nas mentes e nos corações da opinião pública e dos decisores de políticas públicas: os períodos em que o Estado é defendido por seu papel no desenvolvimento econômico são sempre substituídos por um ataque à sua intervenção no “bom funcionamento” de mercados.
Foi assim ao longo do século 20 (ver REINERT, 2009, para uma análise de como as oscilações deste pêndulo estão ligadas a mudanças na agenda de investigação predominante da economia). E é isso o que aconteceu desde a mais recente crise financeira global e da recessão econômica: um breve período logo após a sua erupção, quando era quase um consenso que o Estado tinha um papel fundamental a desempenhar na promoção do desenvolvimento e do crescimento por meio da política industrial, foi rapidamente apreendido por aqueles que diziam o contrário. A austeridade tornou-se o prato do dia, enquanto as políticas industriais ativas transformaram-se no modismo da última estação.
O Brasil, que foi um retardatário na adoção de políticas neoliberais na década de 1990, chegou novamente atrasado no baile: a austeridade só agora é a principal agenda econômica do país. E com ela vem o ataque usual às instituições do Estado – agências, empresas, bancos – que, no Brasil, foram responsáveis por permitir que as poucas áreas de competitividade internacional surgissem (incluindo a “conquista do Cerrado” pelo agronegócio, a área aeroespacial, a exploração de petróleo em alto mar, dentre outros).
De fato, em todas as economias capitalistas, o Estado fez e continua a fazer o que os mercados não fazem (MAZZUCATO, 2014). Tome-se o setor financeiro, por exemplo. Um sistema financeiro que funcione bem deve financiar o consumo e a produção, promovendo o crescimento econômico e, assim, um aumento do nível de vida (bem-estar) da população.
No entanto, já há alguns anos o setor não tem financiado investimentos em inovação ou a economia real, mas sim financiado ativos financeiros. Desde os anos 1970, inovações financeiras juntamente com desregulamentação de mercados tornaram mais fácil obter lucros de investimentos especulativos em ativos financeiros (EPSTEIN, 2005; KRIPPNER, 2005; DORE, 2008; LAZONICK, 2013).
No Brasil, a questão assume uma forma idiossincrática: devido ao alto rendimento, à curta maturidade e ao baixo risco relativo de títulos do Tesouro, bancos comerciais e de investimento preferem comprar dívida governamental a financiar investimentos de longo prazo na indústria, em infraestrutura, ou em inovação – que são ou capital-intensivos ou altamente incertos (ou ambos).
Investimentos produtivos exigem ‘paciência’ na forma do que chamamos em outro lugar de “capital paciente e comprometido com o longo prazo” (MAZZUCATO, 2013; MAZZUCATO e PENNA, 2015). Nos EUA, capital paciente é fornecido através da atividade de diferentes instituições públicas como Defense Advanced Research Projects Agency (Darpa), National Institutes of Health (NIH), National Science Foundation (NSF), National Aeronauticsand Space Administration (NASA), os programas de Small Business Innovation Research (SBIR), a iniciativa nacional de nanotecnologia, dentre muitos outros.
Um papel ativo do Estado é também encontrado em países como Alemanha, Finlândia, Israel, e, claro, a China, mas em cada país os tipos de instituições públicas responsáveis pelo fornecimento de financiamento paciente assumem diferentes formas. No Brasil, ele vem de bancos públicos, nomeadamente, BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal (ver MAZZUCATO e PENNA, 2014, para uma análise dos papéis desempenhados pelos bancos de desenvolvimento estatais), mas também de empresas estatais. Sim, suas operações podem e devem ser melhoradas. Mas atacar e diminuir a importância destas instituições estatais é ser desonesto com a história.
O exemplo da Embraer (BERNARDES, 2000; CASSIOLATO et al, 2002; FORJAZ, 2005) ilustra a importância do Estado como agente de liderança na promoção da mudança técnica, industrialização e desenvolvimento, bem como o seu papel de principal “financista paciente.”
A Embraer foi fundada em 1969 a partir de uma visão concebida pelo Estado brasileiro para criar uma indústria aeroespacial a partir do zero. O sucesso da Embraer após a sua privatização, em 1994, é frequentemente reconhecido como um exemplo paradigmático da superioridade do setor privado sobre o Estado. É verdade, as finanças da empresa estavam em condições terminais no início da década de 1990 (muito por conta de como as empresas estatais brasileiras foram usadas na década de crise de 1980).
Mas suas competências tecnológicas básicas, que foram a chave para o sucesso dos jatos regionais em mercados globalizados, foram adquiridas muito antes, no final da década de 1970, quando era controlada pelo Estado e foram firmados acordos de cooperação com outros países, como a Itália. Além disso, quando a Embraer assinou um de seus primeiros grandes contratos de venda, com a American Airlines (AA), a operação não foi financiada por bancos privados, que fugiam de seu perfil de risco e de longo prazo, mas pelo BNDES. Foi esse acordo com AA que colocou em evidência a Embraer, e a ajudou a se tornar um dos líderes mundiais no mercado de jatos regionais.
A importância das empresas estatais e das finanças públicas pacientes não é exclusiva de países em desenvolvimento. De fato, outro exemplo da indústria aeroespacial ilustra bem este ponto. Em um país onde, na imaginação do público, se pratica o liberalismo por excelência – a Grã-Bretanha – foi o apoio do Estado que salvou a Rolls-Royce (LAZONICK e PRENCIPE, 2005).
Custos crescentes oriundos de atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) para um novo motor de avião colocaram a icônica empresa em falência. Em vez de deixar a empresa morrer, o governo britânico fez o que a City londrina não fez: deu o seu apoio, através de uma nacionalização inicial (em 1971; logo em seguida o Estado britânico se desfez da divisão de automóveis para concentrar na área aeroespacial) e, em seguida, através de uma sequência de empréstimos pacientes. Em 1987, a empresa estava forte o suficiente para ser privatizada. A Rolls-Royce logo se tornaria uma das líderes no mercado global para motores aeroespaciais.
Conforme um de nós demonstra (MAZZUCATO, 2013), o próprio Vale do Silício na Califórnia (EUA) é em si o resultado de uma intervenção maciça do Estado. Cada tecnologia por trás do iPhone (e de celulares inteligentes em geral) foi financiada diretamente por diferentes organizações governamentais, principalmente no Departamento de Defesa dos Estados Unidos, cujo modelo foi copiado mais tarde também no Departamento de Saúde e no Departamento de Energia.
De fato, a atual revolução do gás de xisto através da técnica de fraturamento hidráulico é o resultado de décadas de investimentos pelo Departamento de Energia dos EUA, que também foi responsável por fornecer o financiamento paciente para Elon Musk (o novo herói do Vale do Silício) para o carro Tesla S.
Na verdade, as empresas de Musk – Tesla Motors, Solar City, e SpaceX – são muito competentes em surfar a onda de tecnologia desenvolvida e financiada pelo Estado e em obter a ajuda estatal. Juntos, esses empreendimentos de alta tecnologia beneficiaram-se de 4,9 bilhões de dólares de governos locais, estaduais e federal, incluindo subvenções, incentivos fiscais, investimentos na construção de fábricas, e empréstimos subsidiados.
O governo dos Estados Unidos também forja demanda – cria o mercado – para os seus produtos, através da concessão de créditos fiscais e descontos para os consumidores de painéis solares e veículos elétricos, e assinando com SpaceX 5,5 bilhões dólares em contratos com a NASA e a Força Aérea dos EUA.
Embora este apoio governamental tenha sido recentemente o foco de artigos e notícias (ver HIRSCH, 2015), o que passa relativamente despercebido é o fato de Tesla Motors, Solar City e SpaceX também se beneficiarem de investimentos diretos em tecnologias radicais pelo Departamento de Energia dos EUA, como no caso de tecnologias de bateria e painéis solares e, pela NASA, no caso de tecnologias de foguetes.
Nada disto deve ser visto como surpreendente ou injustificado. Pelo contrário, o Estado está por trás do desenvolvimento da maioria das tecnologias-chave que são posteriormente integrados pelo setor privado em inovações revolucionárias. Além disso, essas empresas estão ajudando a empurrar a fronteira da inovação através do desenvolvimento posterior de tecnologias concebidas e financiadas pelo Estado, e, crucialmente, contribuindo para uma transição para uma economia ambientalmente mais sustentável.
Mas como são investimentos públicos como estes – e de fato o papel do Estado na economia – justificados e analisados por economistas? Normalmente, eles afirmam que o papel do Estado na economia é o de corrigir falhas de mercado: casos em que os mercados competitivos falham na alocação eficiente de recursos (ARROW, 1962; STIGLITZ, 1989; MEDEMA, 2003; LEDYARD, 2008).
Por exemplo, no caso de bens públicos – aqueles que podem ser consumidos por todos, como o ar limpo ou grandes infraestruturas – os mercados não alocam recursos para sua produção. Nesses casos, seria justificável o Estado intervir na economia para garantir a sua produção. No entanto, ainda que convincente, este arcabouço das falhas de mercado está associado a muito limitadas análises de custo-benefício dos investimentos públicos, que buscam medir se os benefícios que se obtêm a partir deles cobrem eventuais custos (incluindo custos de oportunidade) (MAZZUCATO, 2015).
Há três problemas nessas análises: primeiro, é um exercício analítico estático do processo intrinsecamente dinâmico de desenvolvimento econômico e de mudança técnica, que é cumulativo e se desenrola em direções imprevisíveis (quem poderia dizer que as tecnologias desenvolvidas para o exército dos EUA acabariam nas mãos de milhões de usuários ao redor do mundo sob a forma de smartphones?).
Em segundo lugar, tais análises requerem estimar cada custo e benefício em valores monetários, o que não é fácil mesmo se for possível e desejável (o que é o valor monetário de ar limpo ou de empregos altamente qualificados?). Em terceiro lugar, análises de custo-benefício podem levar a um resultado semelhante ao que motivou os investimentos em primeiro lugar: a falta de investimento em projetos-chave, devido a elevados riscos e incertezas vis-à-vis outras oportunidades de investimento existentes.
Deveria o Estado agir como um investidor privado e aplicar os seus recursos na melhor oportunidade de investimento alternativo (no caso do Brasil, investindo em títulos do Tesouro de alto rendimento e baixo risco)? Bem, se fosse o caso, hoje não teríamos uma Embraer, uma Rolls-Royce e, possivelmente, uma Apple (uma vez que a maioria das tecnologias de informação e comunicação não existiria) – com todas as consequências em termos de perdas de emprego, capacidade tecnológica, e bem-estar.
O arcabouço das falhas de mercado não é adequado para justificar e analisar casos reais em que o Estado agiu empreendedoramente (MAZZUCATO, 2015). Quando o Estado concebeu, deu forma e criou novos mercados – e não “corrigiu” os já existentes. Ou quando investiu em áreas devido ao interesse público, sejam elas a industrialização e mudança técnica ou de segurança nacional e capacitação tecnológica.
Nenhum país jamais conseguiu desenvolver-se e industrializar-se baseando suas decisões de investimentos públicos na avaliação de “falhas de mercado”, o que levaria a investimentos minguados e concentrados no máximo em P&D à montante (e não em toda a cadeia de inovação – pesquisa básica, pesquisa aplicada, e ainda no financiamento de empresas de alto risco – como aconteceu no Vale do Silício, por exemplo).
Ignorar esta história significa usar o arcabouço das falhas de mercado e a associada dicotomia “Estado vs. mercados” para fins políticos, não econômicos. Sucesso nas economias capitalistas cada vez mais depende de parcerias sinérgicas entre os setores público e privado. Como os exemplos acima mostram, ambos têm papéis fundamentais a desempenhar no desenvolvimento econômico de um país: Embraer e Rolls-Royce desenvolveram as suas competências tecnológicas guiadas pela mão visível do Estado, mas alcançaram sucesso no mercado global sob gestão privada, depois de suas respectivas privatizações.
Apple, Tesla, SolarCity, SpaceX são exemplos-chave da capacidade para inovação das empresas privadas com acesso a tecnologias inovadoras financiadas publicamente e ao capital paciente estatal. Os países mais bem-sucedidos na economia global têm o que se poderia chamar de um ecossistema simbiótico de inovação e de produção, em que agentes públicos e privados se beneficiam e lucram de ações e interações mútuas. Nestes casos, a iniciativa privada não “captura” o Estado, nem o Estado se torna uma ferramenta para favores políticos.
A questão, portanto, não é quem deve liderar e guiar a economia, o Estado ou o mercado (setor privado). Ambos são cruciais. A questão é como promover essas parcerias sinérgicas. Ainda que não haja receita mágica, uma coisa é certa: quanto mais ousado for o Estado em sua iniciativa estratégica, menos provável que seja capturado pela iniciativa privada.
Isso significa definir as principais “missões” societais – desde “colocar um homem na lua”, passando por garantir a segurança nacional e energética, até combater e mitigar as mudanças climáticas, por exemplo – que irão guiar as políticas públicas e ações privadas em longo prazo (MAZZUCATO e PENNA, 2015).
Em vez de focar em muito duvidosos benefícios de curto prazo de um programa de austeridade – e esperar que um futuro aconteça – o Brasil estaria muito mais bem posicionado se definisse as suas missões fundamentais – e fizesse o seu próprio futuro acontecer.
Acesse a íntegra da 21ª Revista Política Social e Desenvolvimento AQUI
Mariana Mazzucato é professora de Economia da Inovação da Science PolicyResearch Unit (SPRU) da Universidade de Sussex e autora de O Estado Empreendedor: Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado (2014, Cia. das Letras).
Caetano C.R. Penna é professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador associadoda Science PolicyResearch Unit (SPRU) da Universidade de Sussex.
Crédito da foto da página inicial: EBC
Referências
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