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Escola sem Partido: Doutrinação revestida de neutralidade

É sedutor o apelo do movimento Escola sem Partido. Quem se oporia a ele, os defensores de uma escola partidária? Quem se opõe a uma escola livre? Os que desejam subtrair a liberdade aos alunos? Nesses termos, o debate só pode conduzir à conclusão de que são justos os clamores por uma escola sem interferência política e partidária, em que o ensino seja neutro e respeite a pluralidade de pensamento. Há, porém, pouca justiça e muitos equívocos nesses clamores.

As próprias definições que balizam o debate são equivocadas. A primeira delas é a confusão entre partido e ideologia, como se fossem conceitos correlatos. A ideologia, enquanto visão de mundo, está contida em diversas esferas da vida social, inclusive escolas e partidos. Ao vincular ideologia e partido, como um par indissociável, o movimento tenta caracterizar a escola como um espaço de neutralidade, retomando conceitos de uma pedagogia tradicional, na qual o papel da escola é transmitir saber aos alunos, restando a eles assimilar os conhecimentos transmitidos. Aos alunos, reserva-se o direito de reproduzir o conhecimento, afastado de toda crítica social, política e ideológica envolvida em sua formulação e aprendizado.

Essa polêmica não é nova. Frente ao clima de abertura democrática do país, o embate entre a competência técnica e o compromisso político ganhou espaço nas discussões pedagógicas da década de 1980. De um lado, estavam os que avaliavam a competência técnica como acima das divisões de classe e, portanto, servindo a diferentes classes em seu processo político; de outro, aqueles que afirmavam a necessidade de questionar o saber escolar estabelecido, buscando o compromisso político por meio de uma nova competência técnica apoiada em bases populares. Nessa disputa, ambas as partes concordavam quanto à importância da competência política para a identificação dos fins do processo educacional, mediante competência técnica. Era um debate progressista.

Na retórica, os defensores do Escola sem Partido se assemelham aos da competência técnica, dos anos 1980. Contra a educação que chamam de doutrinadora, eles opõem propostas que consideram ideologicamente neutras. Essa neutralidade se caracteriza pela insistência em uma escola plural, que não promova um ponto de vista em detrimento de outros. É, segundo eles, o objetivo dos projetos de lei que apoiam. De início, isso pode parecer justo. Mas as dúvidas começam quando notamos que a defesa da pluralidade não é nova – ela consta das Leis de Diretrizes e Bases desde 1996. Afirmar a pluralidade já afirmada há vinte anos é inócuo. Então, por que gastar energia na aprovação desses projetos? O que muda se eles forem aprovados?

No nível federal, esses projetos são os PL 7180, 7181, 867 e 1859. Os três primeiros estão afixados um ao outro e fazem, com palavras diferentes, uma única alteração significativa na legislação atual: a prevalência dos valores da família do aluno sobre os da escola, no que diz respeito a questões morais, religiosas e sexuais. O último limita debates sobre gênero e orientação sexual. Como dizer que isso é favorável ao pluralismo? Proibir discussões ou abrir espaço para os pais dos alunos as proibirem é defender o debate plural? Ora, isso é o inverso do pluralismo. É censura.

Alguém pode imaginar que, embora esses projetos não sejam bons, podemos estar de acordo, pelo menos, com a necessidade de combater a doutrinação. Mas essa doutrinação existe? A julgar pelo que os defensores da Escola sem Partido publicam no site do movimento, doutrinar é usar os conceitos que eles consideram marxistas. Dizemos “que eles consideram”, pois os projetos de lei defendidos por eles restringem debates sobre sexualidade e gênero, e seus textos mencionam, como exemplos de doutrinação, a crítica à colonização, à hegemonia dos EUA e à igreja, assuntos que não dizem respeito, necessariamente, ao marxismo.

Parece incoerente só ver doutrinação no marxismo, e não, por exemplo, no liberalismo. Mas, de todo modo, se existe essa doutrinação “marxista”, deve haver doutrinados – o que é, afinal, o motivo de toda essa discussão. Mas onde estão eles, se, nas últimas eleições presidenciais, os partidos de esquerda (PSOL, PSTU, PCO e PCB) somaram apenas 1,7% dos votos válidos? Se, nos últimos tempos, o candidato que mais cresceu foi Jair Bolsonaro, com aumento de 100% de intenções de voto? Se, no Brasil, a direita é maioria, e vem crescendo? Se até o PT, que em nada se identifica com o marxismo e é tido por muitos esquerdistas como adversário, enfrenta índices crescentes de rejeição?

Não só os doutrinados parecem não existir, mas também os doutrinadores. Na academia, o marxismo tem cada vez menos espaço e desempenha um papel pequeno na formação de professores. Contrariam a tese da doutrinação, ainda, os dados colhidos em diversas pesquisas sobre materiais didáticos, que revelam uma tendência deles a reproduzir a homofobia, estereotipar papéis de gênero, reforçar o eurocentrismo e associar os conteúdos por eles ensinados ao mundo do trabalho (de modo a estimular os alunos a ajustarem-se ao sistema vigente, e não a contestá-lo). Materiais assim concebidos não parecem doutrinar para o “marxismo”.

Todas essas evidências em contrário à tese da doutrinação “marxista” nas escolas precisam enfrentar o que parece ser o único argumento do Escola sem Partido: 39 relatos de doutrinação – cuja autenticidade não há como garantir. Isso, num sistema educacional com 45 milhões de estudantes.

Ao bradar contra uma doutrinação que sequer parece existir, os partidários da Escola sem Partido, sob o disfarce de defender o pluralismo, assassinam-no em nome da censura de tudo o que identificam, grosseiramente, como “marxismo” ou “esquerda”. Eles parecem desencadear um debate progressista como o dos anos 1980. Não há, porém, progresso nenhum aqui: trata-se de uma investida autoritária, que tenta fazer passar como neutra a sua própria ideologia, para abafar as outras, opositoras suas. A isso, damos o nome de doutrinação.

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