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  • Foto do escritorHelder Lara Ferreira Filho e José Luis Oreiro

Entre narrativas e fatos sobre a questão fiscal: por um novo teto de gastos – parte 1

Atualizado: 12 de ago.


Com algum impulso fiscal, há queda do desemprego e aumento da renda, e, também, aumento de receitas provenientes da aceleração da atividade econômica, o que contribui para uma dinâmica mais saudável da dívida pública

Nos últimos meses, mesmo antes da pandemia com o novo “coronavírus”, tem ocorrido grande discussão sobre como deveria ser conduzida a política fiscal brasileira nos próximos anos e, mais especificamente, sobre temas como a sustentabilidade da dívida, a composição do ajuste fiscal (se apenas pelo lado das despesas públicas ou por um conjunto de medidas, tanto no lado das despesas como no lado das receitas) e se haveria espaço – ou se seria necessário – para realizar algum estímulo fiscal para impulsionar a atividade econômica.

Em primeiro lugar, é importante ressaltar que passamos por uma grande recessão entre 2015 e 2016, com quedas do PIB de 3,55% e 3,28%, respectivamente. Nesse período, como havia crescimento negativo do PIB e os juros subiram para controlar a inflação, a dívida bruta como proporção do PIB aumentou fortemente (de cerca de 50% em 2013 para pouco mais de 70% do PIB em 2016).


Neste contexto, a trajetória da dívida pública foi considerada insustentável por grande parte dos agentes e dos analistas econômicos.


Para eles, seria necessário o controle das despesas públicas, que cresciam sistematicamente a taxas superiores ao PIB. Naquele momento, foi aprovado um teto de gastos que estabelecia que as despesas primárias da União não poderiam crescer acima da inflação por um período de 10 anos (prorrogáveis por mais 10 anos).


Defensores do teto afirmam, desde sua implementação, que ele explicitaria as disputas pelo orçamento, tornando possíveis reformas em gastos obrigatórios (tal qual a reforma da previdência) para assim preservar os gastos discricionários (entre eles, os investimentos públicos). Ademais, com o controle das contas públicas, a confiança dos agentes econômicos seria restaurada, abrindo espaço para que o investimento e o consumo privados liderassem a retomada do crescimento econômico. Trata-se da tese da contração fiscal expansionista.


Mas essas expectativas não foram confirmadas. Como antecipado por Ferreira Filho e Fraga (2016), baseado na experiência de outros países emergentes com limites para a expansão de despesas, os investimentos foram cortados drasticamente (com uma previsão, antes da pandemia, de um volume de apenas 19 bilhões de reais em 2020, o menor valor da série histórica), enquanto o restante do orçamento tem sido penalizado (como ciência, tecnologia e inovação, por exemplo).


Além disso, ao contrário do esperado, a recuperação tem sido, no mínimo, tímida, uma vez que entre 2017-2019 ocorreram taxas de crescimento da ordem, basicamente, de 1% ao ano (1,32%, 1,32% e 1,14%, na sequência). Ainda, nos primeiros meses de 2020, os dados de atividade econômica do Banco Central (IBC-Br) para os últimos 12 meses apontavam para uma desaceleração do crescimento do produto.


De fato, ao final de 2019, o Brasil sequer tinha alcançado o nível do PIB de 2013. Somente isso já apontaria para a lentidão da recuperação econômica – o que é confirmado pelo fato de a inflação observada ter ficado abaixo da meta definida pelo COPOM nesses três anos (2017-2019), não obstante a queda acentuada na taxa de juros Selic, a expressiva desvalorização cambial, a persistência de déficits primários e os diversos choques de adversos de oferta ocorridos.


Diante desse quadro, mesmo antes da pandemia, já se fazia necessário um impulso fiscal para acelerar o crescimento econômico. Porém, isto não é algo consensual entre os economistas, pois há aqueles que acreditam não ser necessário o impulso fiscal, ao passo que outros pensam ser imprescindível algum tipo de estímulo fiscal. O primeiro grupo cita não haver espaço fiscal para qualquer expansão das despesas e que o teto precisa ser respeitado.


O curioso nessa narrativa é que, para defender seu ponto de vista, citam que a taxa de juros estaria baixa por conta da melhor política fiscal e da melhora das condições fiscais no país nos últimos anos – e não pela falta absoluta de demanda ou pela pequena inflação salarial. Ao mesmo tempo, afirmam que as condições fiscais do país estariam a tal ponto deterioradas que tornaria impossível uma expansão fiscal.


O que os fatos têm a nos dizer sobre essas narrativas? Primeiramente devemos destacar que as contrações fiscais são, em geral, contracionistas; como demonstra, dentre outros estudos, Alesina et al. (2019), onde se observa que o corte de despesas seriam menos contracionistas do que elevação de tributos (apesar de alguns estudos sobre emergentes, como o Brasil, indicarem não haver tanta diferença), mas ainda assim contracionistas.


Isso não significa, obviamente, que não se deva fazer uma contração fiscal em determinadas situações e circunstâncias, apesar dos efeitos adversos sobre o nível de atividade econômica.


O mais importante nesse debate é a questão dos multiplicadores fiscais. Para o grupo que não vê necessidade/utilidade de um impulso fiscal, o multiplicador seria menor do que 1 para as despesas do governo. Esse argumento se baseia, principalmente, em estudos que indicam que o multiplicador seria reduzido numa situação em que há uma percepção geral por parte dos agentes econômicos de não sustentabilidade da dívida pública e também em momentos do ciclo econômico em que o país já se encontra operando com um nível de produção acima do potencial.

Ocorre que, antes da pandemia: (i) a dívida não estava em trajetória insustentável (Pires, 2019), uma vez que a dinâmica da dívida depende, basicamente, da taxa real de juros, do crescimento econômico e do superávit primário (além da receita de senhoriagem), sendo que essas variáveis estavam apontando para a estabilização e a redução da dívida pública, inclusive no cenário projetado pela Secretaria do Tesouro Nacional; (ii) tampouco havia uma percepção de descontrole fiscal – dados os comportamentos do Credit Default Swap (CDS) e das taxas de juros implícitas nos títulos do governo que mostravam que ambas se reduziam de forma sistemática; (iii) e, por fim o hiato do produto estava estimado entre -4% e -7% do PIB, ou seja, a economia estava operando com uma grande ociosidade dos fatores de produção.


Segue-se que não estávamos, antes da pandemia, na situação descrita pelos economistas contrários ao impulso fiscal. Portanto, há determinadas despesas que podem ter multiplicadores maiores do que 1, como é o caso dos investimentos públicos, ou despesas com programas sociais, tal como o Bolsa Família, dentre outras. Inclusive, há estudos que apontam para multiplicadores significativamente superiores a 1 quando o país se encontra com um hiato do produto negativo, tal como era o caso da economia brasileira à época.

Sendo assim, manter a política fiscal restritiva (teto de gastos com variação nula, em termos reais, e meta de superávit primário sem considerar o ciclo econômico) se mostra um contrassenso. Ao contrário, com algum impulso fiscal, não só o bem-estar das pessoas seria aumentado (com a queda do desemprego e o aumento da renda), mas o próprio resultado primário seria incrementado, com o aumento de receitas provenientes da aceleração da atividade econômica, estes dois fatores contribuindo para uma dinâmica mais saudável da dívida pública.


Já com a pandemia, o cenário mudou em alguns aspectos, mas nenhum deles altera a necessidade de um impulso fiscal para que a economia acelere seu crescimento. De fato, com uma queda do PIB estimada por volta de 5,5% em 2020, o hiato do produto – anteriormente entre -4% a -7% do PIB – vai se ampliar fortemente. Além disso, embora a dívida bruta vá aumentar sensivelmente por conta das medidas adotadas para mitigar efeitos econômicos adversos advindos do novo “coronavírus”, isto também vai acontecer com a maioria dos países do mundo, o que não muda a posição relativa do Brasil nessa matéria e, portanto, a percepção de risco dos agentes econômicos.


Ademais, dado o choque econômico provocado pela pandemia, as taxas de juros de curto e de longo-prazo em todas as economias caíram ainda mais, o que também ocorreu no Brasil, o que contribuirá para uma dinâmica da dívida bruta menos explosiva. Já a dívida líquida, com a desvalorização do real frente ao dólar, tem até se reduzido.


Todavia, uma das variáveis fundamentais para a dinâmica da dívida pública é o crescimento econômico, de forma que é premente fechar o hiato do produto rapidamente por conta de possíveis efeitos de histerese. Com efeito, Cerra e Saxena (2017) apontam, em recente estudo, que, na média, as recessões provocam perdas permanentes do nível de produto, contrariamente ao pensamento que se tratam apenas de reduções temporárias em que o PIB retomaria sua tendência de longo prazo com alguma defasagem. No Brasil, particularmente, a situação parece ainda pior, conforme se vê no Gráfico 1, abaixo.

No Brasil, não somente o nível do produto se reduz em crises, como sua taxa de crescimento também. Por exemplo, entre 1961 e 1980, o crescimento o médio foi de 7,3% a.a.; após um período recessivo, entre 1983 e 1989, passou a 4,5% a.a.; após novo período recessivo, a taxa cai para 3,2% a.a. entre 1992 e 2014; depois de outro período recessivo, cai para 1,2% a.a. entre 2017 e 2019.


Fora isso, considerando a estimativa de 2020 (-5,5%), a taxa de crescimento médio anual seria de -1,5% a.a. entre 2015 e 2020. Mantida a tendência entre 1980 e 2014, cerca de 2,58% a.a., em 2019, teríamos um PIB 17,3% maior do que o observado; e já levando em consideração a queda estimada de 2020, teríamos um PIB 28% maior do que o realizado se o crescimento fosse o da tendência 1980-2014, conforme se visualiza no Gráfico 1.


Logo, segue-se que uma resposta adequada a recessões se mostra ainda mais relevante no Brasil. Novamente, com a pandemia, teremos um grande choque no produto, retornando ao nível de PIB de 2010, com potenciais efeitos duradouros, se não forem tomadas as medidas necessárias.


Em resumo: mesmo no cenário pós-pandemia, o impulso fiscal continua extremamente necessário, talvez até mais do que antes. Para tal, entretanto, será imperativo alterar o teto de gastos tal qual ele foi idealizado.


Na verdade, como aponta a Instituição Fiscal Independente (IFI), a mudança do teto seria inevitável de qualquer maneira em 2022 (Couri, 2020), sendo que, em 2021, para o cumprimento do teto, seriam precisos novos cortes em investimentos públicos, por exemplo, e logo após um choque adverso fortíssimo, algo pouco aconselhável. Portanto, já que é dada a mudança no teto de gastos, é saudável que isto seja feito de forma organizada para que despesas de melhor qualidade sejam priorizadas, com maiores multiplicadores no curto prazo e que aumentam a produtividade no longo prazo.

E é exatamente sobre isso que vamos falar na segunda parte deste artigo, ao propor um novo arcabouço fiscal para o país considerando os argumentos até aqui explanados.



Referências

Alesina, A.; Favero, C.; Giavazzi, F. Austerity: when it works and when it doesn’t. Princeton University Press, 2019.

Cerra, V.; Saxena, S. Booms, crises, and recoveries: a new paradigm of the business cycle and its policy implications. IMF, WP/17/250, 2017.

Couri, D. Gradualmente e, então, de repente. Valor Econômico, 2020. Disponível em: < https://valor.globo.com/opiniao/coluna/gradualmente-e-entao-de-repente.ghtml>.

Ferreira Filho, H.; Fraga, J. A PEC 241/55: redenção ou condenação?. Brasil Debate, 2016. Disponível em: <http://brasildebate.com.br/a-pec-24155-redencao-ou-condenacao/>.

Giambiagi, F.; Tinoco, G. O teto do gasto público: mudar para preservar. BNDES, Texto para Discussão 144, 2019.

Krugman, P. The case for permanent stimulus. VoxEU, 2020. Disponível em: < https://voxeu.org/article/case-permanent-stimulus>.

Oreiro, J. Pós-pandemia: Como retomar o crescimento mantendo a dívida pública sustentável?. Brasil Debate, 2020. Disponível em: < http://brasildebate.com.br/pos-pandemia-como-retomar-o-crescimento-mantendo-a-divida-publica-sustentavel/>.

Oreiro, J.; Silva, K. A estagnação brasileira e a agenda de Paulo Guedes em tempos de coronavírus. Revista Brasileira de Planejamento e Orçamento, vol. 10, n.1, 2020.

Pires, M. A macroeconomia da política fiscal. Valor Econômico, 2019. Disponível em: < https://valor.globo.com/opiniao/coluna/a-macroeconomia-da-politica-fiscal.ghtml>.


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