Faz algumas décadas, difundiu-se uma fábula conformista dirigida aos “irracionais” países latino-americanos: as “lições da Ásia” mostravam o caminho para a salvação.
Segundo essa fábula, os “tigres” daquela região haviam se desenvolvido com um modelo virtuoso, o “crescimento para fora” – eram países espertos, exportadores, “abertos” ao capital estrangeiro, economias liberais, não protecionistas. Nenhum asiático sadio acreditava nisso. Os economistas do FM e do BM, assim como seus sabujos latino-americanos difundiam a lenda. Mas é provável que nem mesmo eles acreditassem nela. Convinha. Faz de conta.
Segundo esse relato moralista, os latino-americanos, além de meio inferiores no cérebro e chegados a uma preguiça atávica, tinham sido levados a um modelo perverso, o “crescimento para dentro”– era um caminho desenhado pelo desenvolvimentismo latino-americano, cepalino, protecionista, estatista, fechado.
Bom, nada disso era exatamente o que se dizia. Os países “protecionistas” e “fechados” da América Latina eram economias baseadas na exportação (de commodities, brutas ou pouco processadas) e seu aparato produtivo interno era dominado por filiais de empresas estrangeiras. Os países “abertos” da Ásia eram tudo menos “abertos” – suas empresas, nacionais, eram fortemente protegidas pelo Estado e por ele detalhadamente monitoradas.
No começo dos anos 1990, Osvaldo Sunkel retomou umas ideias de Raul Prebisch e Fernando Fajnzylber para tentar escapar dessa dicotomia enganosa – crescer para dentro, crescer para fora. O artigo “Del Desarrollo hacia adentro ao desarrollo desde dentro” teve sua primeira aparição na revista mexicana Trimestre Economico, em 1991. A novidade do artigo, além da revisão em perspectiva da trajetória dos países da região, estava no esboço de modelo baseado na ideia de “crescer a partir de dentro”. Era apenas um esboço, mas muito sugestivo.
Em especial, neste momento da experiência brasileira, é preciso repensar essas questões – que remetem ao longo prazo, mas são essenciais para as decisões de curtíssimo prazo, sobretudo se temos em vista o quadro internacional assustador que temos pela frente.
Curiosamente, em janeiro de 2016 foi um banqueiro que alertou para essa necessidade de repensar o rumo. Trabuco, o chefão do Bradesco usou essa imagem: o Brasil precisa se libertar da dependência do petróleo ou da China, precisa ser locomotiva de si mesmo, o que exige muito esforço (e engenho, complementamos).
Apesar de algumas declarações eufóricas e disparatadas, o Brasil NÃO esboçou qualquer “novo modelo” de desenvolvimento nos últimos 12 anos de governo popular. É bom que se diga que isso também não ocorreu em países como Argentina e Venezuela, para citar casos que foram frequentemente apresentados como “exemplos” mais avançados da esquerda latino-americana. Os eventos recentes mostram o quão exagerados eram os aplausos à politica econômica do “bolivarianismo” e do “kirtchnerismo”, por mais que admiremos seus avanços políticos.
Nos últimos tempos, o Brasil cresceu mantendo, em essência, a receita de sempre. Com significativa mudança, no que diz respeito a crescer com um pouco menos de pobreza, exclusão, desigualdade. Ora, a pobreza, a exclusão e a desigualdade eram e são tão extremas, aqui, que mesmo uma redução “barata” nesses campos aparece como uma verdadeira revolução – e, em certa medida é mesmo uma pequena revolução.
Custando muito pouco, significa quase um insulto para as castas mais privilegiadas de nossa sociedade. Chamam o Bolsa Família de esmola e berram que essa esmola arruína o país. De outro lado, esse muito pouco, para 40 milhões de brasileiros, significou a pequena revolução de comer três vezes ao dia – com impacto já visível, acreditem, no desempenho escolar das crianças pobres.
Mas o país continuou com crescimento que dependia, basicamente, da exportação de commodities – dependendo de locomotivas do exterior. E seguiu ampliando a internacionalização de seu aparato produtivo interno. Se antes sua indústria era capitaneada pelas filiais de empresas estrangeiras, esse traço foi aprofundado desde 1994, com a soma de desindustrialização e desnacionalização. E mais: isso se ampliou a uma série de serviços, selvagemente privatizados e internacionalizados. A única coisa que esse setor “exporta” é o lucro que remete para as matrizes.
Ora, a nossa exportação de commodities já era um negócio da China – para a China… Mas, para nós, era um convite ao retrocesso. Não contribuíam, ou contribuíam muito pouco para a formação de “capacidades nacionais de inovação”. Agora, os mercados de tais commodities nos lançam um balde de água fria – a China e a Europa compram menos, o petróleo cai de preço e quase esteriliza o que se extrai de águas profundas, um problema atrás do outro. Repensar o crescimento a partir de dentro é indispensável. Talvez o debate sobre o “velho” texto de Sunkel seja útil.
O crescimento a partir de dentro é um programa político exigente. Não apenas exige repensar toda a macroeconomia – as políticas de tributação, de câmbio, moeda, crédito e assim por diante. Implica rever toda a política de infraestrutura para o desenvolvimento. Incluindo, fundamentalmente, as políticas de “infraestrutura de conhecimento”. A infraestrutura de conhecimento – objeto da política de ensino superior, de pesquisa e de difusão científica e tecnológica, de formação de força de trabalho qualificada – é algo decisivo.
Não necessariamente para produzir “inovação de ponta” em indústria high-tech. Mas para produzir a indispensável e mais relevante inovação incremental e inovação reversa, estratégicas para a “internalização” da dinâmica de crescimento. Voltaremos a esses desdobramentos futuramente. Há muito que descobrir e discutir nesse campo.
Crédito da foto da página inicial: Portal Brasil
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