Por Leonardo Avritzer*
Publicado originalmente em A Terra é Redonda
Existe um debate em curso no Brasil sobre os limites legais à liberdade de expressão, com repercussão sobre a possibilidade de responsabilização jurídica – penal, inclusive – daqueles que professam discursos de ódio. Em recente entrevista publicada na Folha de S. Paulo, a professora da Fundação Getulio Vargas de São Paulo Clarissa Gross fez uma afirmação que reacendeu a polêmica no meio acadêmico.
Segundo a pesquisadora, para que uma fala seja criminalmente imputável “é preciso que a linguagem usada seja uma que no contexto signifique incentivo ou instigação para prática de crime e que haja contexto de probabilidade de que a fala irá levar à prática de crime”. Essa afirmação que poderia de forma genérica expressar as principais variáveis envolvidas no problema parece estar baseada em uma decisão de 1969 da Suprema Corte dos Estados Unidos, conhecida como Brandenburg v. Ohio. A pesquisadora, no entanto, ignora amplamente as discussões mais recentes sobre a mesma decisão; e parece ser incapaz de se posicionar sobre as questões concretas que envolvem as discussões sobre o discurso de ódio no Brasil hoje.
Vale a pena retomar o debate sobre liberdade de expressão e discurso de ódio nos Estados Unidos, em atenção à referência à Suprema Corte dos EUA. Desde os anos 1920 até 1960 as decisões da Suprema Corte expressam uma concepção de fundo segundo a qual toda e qualquer ideia poderia ganhar forma de incitação ao crime/violência. A jurisprudência do começo do século 20, tal como Debs v. United States ou Schemck v. United States, assumia que não havia conteúdo que não pudesse se configurar discurso de ódio, sinalizando a clara intenção de punir discursos políticos heterodoxos/alternativos, tanto de extrema direita quanto de esquerda.
Essa tendência irá se modificar nos anos 1960 quando surge o caso Brandenburg, que deve ser explicado devido à sua importância na jurisprudência sobre crimes de ódio. O caso envolve um membro da seita de extrema direita Ku Klux Klan que convenceu um repórter televiso a filmar uma reunião da Ku Klux Klan na qual uma das falas aventou a possibilidade de que o discurso de Clarence Brandenburg incentivava revanches contra negros e judeus. Com base nessa fala, Clarence Brandenburg foi condenado por violar a lei criminal sindical do Estado de Ohio, por supostamente advogar mudanças políticas e econômicas radicais por meios criminosos ou violentos. O estatuto legal, de 1919, foi promulgado à época do chamado “first red scare” – mobilizações de esquerda nos EUA do começo do século XX0 – em um contexto de repressão das opiniões divergentes às do governo.
A Suprema Corte foi acionada e reverteu a condenação, afirmando o seguinte: “a garantia constitucional de liberdade de expressão e da imprensa livre não permite ao Estado proibir ou proscrever a advocacia do uso da força ou da violação da lei com exceção das situações nas quais essa advocacia está dirigida a incitar ou produzir uma ação ilegal iminente ou gera a probabilidade de um incitamento que produza tal ação”.
Em seu cerne, a decisão da Suprema Corte – que é extremamente relevante ainda hoje no que concerne às discussões brasileiras – gerou o que é conhecido na literatura como os três testes, o da advocacia, o da iminência de um ato ilegal e o da probabilidade de um ato ilegal. Sabemos que o centro da decisão da Suprema Corte no caso Brandenburg foi a crítica de que o estatuto do estado de Ohio não distinguia entre a advocacia e a iminência de um ato ilegal.
Naquela oportunidade, a Suprema Corte dos EUA colocou duas importantes questões posteriormente revistas em decisões supervenientes: a da proximidade (do crime de ódio em relação à incitação) e a do grau de risco (de que, de fato, o crime de ódio venha a ocorrer). Daí concluíram os ministros que “ações ilegais a serem efetivadas em algum futuro indefinido não justificam uma condenação, [ou seja], o perigo tem que ser iminente” (vide Wilson and Kiper, Incitement in the era of populism).
Para que se possa fazer útil a referência ao debate na Suprema Corte dos EUA, estabelecendo-se algum diálogo com as recentes decisões que têm sido proferidas sobre o tema pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e, em especial, pelo ministro Alexandre de Moraes, convém uma reflexão mais detida sobre os parâmetros contidos nos conceitos de perigo iminente, proximidade e probabilidade da ocorrência dos crimes de ódio.
Em primeiro lugar, é preciso colocar em perspectiva o argumento da Suprema Corte dos EUA sobre proximidade, que foi construído em uma era analógica, em que a transmissão televisiva (de nível local, pois se tratava de uma rede de TV do estado de Ohio, nos anos 1960) tinha alcance incomparável ao que pode ser estimado sob o domínio da web e das redes sociais. Ou seja, existe uma concepção de espaço e de tempo que mudou ao longo desses mais de 50 anos nos quais a decisão foi tomada – e isso não é desprezível.
Basta que se considere, por exemplo, que depois de ler uma informação online sobre o dono de uma pizzaria na Carolina do Norte que mantinha trabalhadores em condição análoga à escravidão um indivíduo dirigiu até lá e abriu fogo contra a loja. A notícia era falsa. (New York Times, 5/12/2016). Inúmeros elementos de conectividade, tais como a propagação dos smartphones, a redução do custo da telefonia e a ampliação da qualidade da conexão à internet, associados ao surgimento e expansão das redes sociais promovem uma ruptura com o monopólio da imprensa tradicional sobre a produção de conteúdo, o que é disruptivo. Todo e qualquer usuário, em todo lugar e a qualquer tempo se torna um agente político em potencial – essa é a medida do impacto dos discursos que protagoniza.
Particularmente, essa novidade induz uma série de atualizações da literatura, questionando, justamente, o conceito de perigo iminente mobilizado pela decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos. Recoloca-se o problema da espacialidade e da temporalidade. Na era das redes sociais, o que acontece em Ohio não fica em Ohio e o que acontece no Acre não fica no Acre.
Clarissa Gross reclama o elemento contextual na caracterização do discurso de ódio, mas despreza a atualização da dimensão espaço-temporal que a web impôs às relações sociais. O presidente Jair Bolsonaro, em um evento de campanha ainda em 2018 – mais precisamente no dia 3 de setembro –, falou em fuzilar a petralhada. Bastou para que um conjunto de atos de violência política se somassem ao longo dos últimos anos.
Recentemente, a invasão de uma festa de aniversário de um militante do Partido dos Trabalhadores por um apoiador do presidente em Foz do Iguaçu (PR) resultou em um episódio emblemático de violência política, mas, se considerarmos a ortodoxia da jurisprudência da Suprema Corte dos EUA não encontraremos base sólida para estabelecer relação entre o discurso de ódio como incitação à violência de natureza política e o homicídio “de um guarda municipal”, tal como o presidente argumentou.
A violência política não está restrita a pessoas – eleitores ou lideranças políticas – senão que pode também ser dirigida a instituições – sedes de partidos políticos, eventos de campanha, órgãos eleitorais. A violência eleitoral é um tipo de violência política, que é um fenômeno enraizado e disseminado na política brasileira, mais intenso no nível local, de natureza econômica, envolvendo disputa pelo controle dos espaços de poder.
No nível nacional, contudo, tem crescido impulsionada em boa medida pelas reiteradas manifestações do ainda presidente Jair Bolsonaro, que trata os adversários políticos como inimigos e prega, em muitas oportunidades, seu extermínio físico. A sobreposição do discurso de ódio e intolerância ao de fraude eleitoral pode vir a desenhar um cenário de violência pós-eleitoral com ares de caos social. Daí porque não apenas há crime, como também crime de responsabilidade.
Clarissa Gross não é capaz de avançar, pela sua via de argumentação, na compreensão das dimensões da violência política e eleitoral. Se não por outras razões, pelo fato de que ignorou solenemente que o emissor do discurso é ninguém menos que o presidente do Brasil. Observemos novamente os Estados Unidos, onde há dados sobre o aumento exponencial dos chamados crimes de ódio ao longo do primeiro ano do governo Donald Trump. Apesar de os demais índices de criminalidade naquele país terem sido reduzidos no mesmo período, em 2017 os EUA reportaram 7.509 crimes de ódio – um aumento de 17% em relação ao ano anterior.
Há, portanto, pelo menos duas questões que Gross ou não responde ou responde mal: a primeira diz respeito à relação entre discurso de ódio propagado por macroatores ou pessoas de centralidade política e a questão da iminência de um crime; a segunda é se é adequado pensar a probabilidade de que um crime seja cometido a partir de um discurso deixando de lado marcos temporais ou espaciais que com a internet e as redes sociais deixaram de fazer sentido. Essas não são questões abstratas: o fato de um discurso de campanha no Acre gerar mais de 17 mil entradas no Google mostra que o discurso tem continuidade temporal e deixa de estar ligado à referência espacial no qual ele se colocou.
Brandenburg v. Ohio assumiu corretamente que apenas a prática de advocacia de uma ideia pode não ser suficiente para uma condenação criminal e, para tanto, estabeleceu testes espaciais e temporais: advocacia, iminência e probabilidade de um ato ilegal. No entanto, na era do Twitter e dos discursos de ódio sendo promovidos pelo mainstream do sistema político, o teste espacial e temporal tem que mudar.
O que interessa saber é se um discurso realizado por um macroator político com milhões de seguidores nas redes sociais e reproduzido em dezenas ou centenas de perfis deve, de fato, ter a correlata responsabilização limitada ao espaço e ao tempo da sua produção. A se julgar pelos dados que temos de crimes de ódio e escalada da violência política, a resposta é não.
*Leonardo Avritzer é professor titular do departamento de Ciência Política da UFMG. Autor, entre outros livros, de Impasses da democracia no Brasil (Civilização Brasileira).
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