A história fazemos todos, juntos ou não, por meio do complexo processo de construção social tecido por incontáveis mãos, a maioria, de gente anônima, e costurada, em grande parte, por fios invisíveis. Há “interruptores” históricos que, acionados, podem liberar ou travar o fluxo de processos sociais.
No ano de 1955, houve uma onda de frio muito severa. Entretanto, na política, o clima era quente, com muitas mudanças desde o suicídio de Vargas, ocorrido no ano anterior. Café Filho assumira a presidência e o país enfrentava problemas com a inflação e o déficit na balança comercial. Juscelino Kubitschek (JK) lançara-se candidato à presidência pelo PSD. A UDN e os militares articulavam chapa com Juarez Távora, ex-tenentista. O PTB, partido de Getúlio, constrói naquele ano uma aliança com o PSD e lança a chapa JK/Jango para concorrer às eleições presidenciais. Com apoio do eleitorado paulista, Ademar de Barros corre por fora.
Em outubro, JK vence as eleições com diferença de 6% dos votos em uma campanha baseada no desenvolvimentismo e na modernização da indústria nacional. Carlos Lacerda, apoiado por militares e parte da grande imprensa, tenta desqualificar e desarticular a vitória de JK com uma falsa carta que, segundo ele, provaria a intenção de Jango de estabelecer um regime sindicalista, inclusive oferecendo armas aos operários.
Em novembro, após as eleições, o presidente Café Filho se afasta por problemas cardíacos. Carlos Luz, presidente da Câmara, assume e indica novo ministro da Guerra, no lugar do marechal Lott. Prenúncio de golpe. Lott e militares legalistas denunciam manobra e afirmam resistir. Café Filho tem súbita recuperação! Lott desconfia e articula a entrega da presidência em 11 de novembro a Nereu Ramos, catarinense e presidente do Senado. Este, em 31 de janeiro de 1956, transmite o cargo a JK.
Esse era o clima político no Brasil em dezembro de 1955: fervente, com emaranhadas manobras e movimentos nos bastidores da arena política da capital federal, Rio de Janeiro. Os operários se movimentaram agitados. O país estava em estado de sítio.
Em São Paulo, o Pacto de Unidade Intersindical (PUI) ganhava cada vez mais corpo e se ampliava, fortalecendo a unidade das categorias e formando a base de grandes mobilizações, lutas e greves históricas. O movimento ganhou densidade a partir da grande “Greve dos 300 mil”, ocorrida em 1953, que fez ressurgir o encanto da luta sindical. O movimento começou na fábrica de tecidos Matarazzo, em São Paulo, e se alastrou entre outras categorias, na luta contra o aumento do custo de vida e o baixo reajuste do salário mínimo.
Dá para imaginar como os fatos podem ter ocorrido naquele dia, uma quinta-feira, 22 de dezembro de 1955: “Tenorinho do Laticínio”, como era conhecido esse pernambucano nascido em 1923, acorda cedo e, depois do gole de café, sai a caminho do Sindicato, dizendo que chegaria tarde, pois teria uma assembleia à noite. Pede à esposa para entregar um envelope ao padrinho de casamento dos dois, Carlos Prestes. Desce do bonde e compra do jornaleiro a Folha da Manhã. Vibra, o Corinthians tinha vencido o Linense por 2 X 1. Na primeira página, dois destaques chamam a atenção: “O estado de sítio é debatido na Câmara dos Deputados” e “Adenauer declara serem vãs as esperanças soviéticas de conquista do mundo inteiro”.
Folheia o jornal e bate o olho: “A recente declaração do prefeito municipal, Ademar de Barros, de que autoriza a colocação de mais bancos na Praça da República traz à baila velho problema: São Paulo é uma cidade com poucos bancos nas praças e avenidas”. Dobra o jornal e acelera o passo. Sente que o dia seria longo.
Já na sede do Sindicato, assina alguns documentos e avisa que vai se encontrar com Salvador Lossaco, presidente do Sindicato dos Bancários, para verificarem os últimos detalhes para a assembleia, que seria realizada às 20h30, na rua São Bento, 405. À noite, Lossaco preside a assembleia e Tenorinho faz a secretaria.
Mais de 50 anos depois, em depoimento, Tenorinho lembraria:
“O DIEESE passou por todo um sistema de preparação. Ele não surgiu de um estalo, não, ele foi fruto de todo um acúmulo de aprendizagem. Então, nós fizemos o Pacto de Unidade Intersindical, que começou com cinco sindicatos: gráficos, metalúrgicos, marceneiros, têxteis e vidreiros. Ali na Rua dos Cerealistas. Então, naquela rua era uma casa baixa de um sócio, onde funcionava o sindicato, que se transformou em sede e dali nós começamos a “mandar brasa” em tudo. E todas as nossas lutas sindicais durante esse período, as lutas reivindicatórias, elas encontravam a barreira de como provar que era aquela percentagem que os trabalhadores reivindicavam, não tinha como, não tinha um aferidor. O único em que a Justiça se baseava – aí vamos chegar no DIEESE – era uma comissão do Ministério do Trabalho, a qual não tinha a nossa presença, nem participação, e a Secretaria de Abastecimento de São Paulo, comandada por Ademar de Barros e o Secretário era o João Acioli, até um advogado do Sindicato dos Têxteis.
Então esses dois dados nunca conferiam com aquilo que a gente achava que era o custo de vida e nós nos batíamos, e só levávamos alguma vantagem quando fazíamos greves enfrentando polícia, enfrentando todas as dificuldades para fazer uma greve como fizemos em 1953, a chamada “Greve de 700 mil trabalhadores”. Então surgiu a ideia de a gente criar o nosso próprio organismo de levantamento de custo de vida. Aí eu, como secretário do Pacto; Salvador Romano Lossaco, presidente do Sindicato dos Bancários – aqui eu rendo a minha homenagem, porque sem ele não “tinha” existido o DIEESE; Remo Forli, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos – eram os dois maiores sindicatos na época, os mais combativos eram esses dois; nós, do Laticínio, que não era numericamente tão expressivo, mas politicamente era peso-pesado; enfim, nós somamos cinco sindicatos e começamos a trabalhar dia e noite. Mas era até meia-noite, uma hora, duas horas da manhã, elaborando, pesquisando, estudando, e um dos homens-chave nisso aí se chama – foi este que já falei – Salvador Romano Lossaco, que não era do Partido Comunista, era um anarquista nato, mas de uma fidelidade de classe e de uma competência para ficar do nosso lado, que era impressionante.
Nós fundamos o DIEESE. Fundamos o DIEESE e pusemos: Departamento Intersindical de Estudos de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Antes era só Departamento Intersindical de Estatística. Aí um jornalista chamado Xavier Toledo – que era um jornalista do Correio Paulistano que trabalhava na Câmara e que acompanhava a gente, era um simpatizante – disse: “Olha, vocês têm que acrescentar, à ‘Estatística’, ‘Estatística e Estudos Socioeconômicos’, porque vocês abrem a perspectiva de se tornarem um instituto.” E nós incorporamos essa sugestão, ficou DI-E-ESE. Foi um negócio muito bonito, uma vitória grande.” A íntegra desse depoimento e muitos outros estão em http://memoria.dieese.org.br/ .
O tempo passou. As notícias do momento trazem novamente manchetes do passado. Hoje, como antes, sintonizados com o presente e antenados sobre os desafios do futuro, no aniversário de 64 anos do DIEESE, homenageamos os muitos Tenorinhos, Leninas, Salvadores e Mônicas, que construíram, com trabalho militante e sério compromisso, uma instituição a serviço da classe trabalhadora.
Em mais de seis décadas, a missão do DIEESE nunca se alterou. A entidade produz e aporta conhecimento para a intervenção social dos trabalhadores, para promover, por meio da organização e luta sindical, desde o local de trabalho e em múltiplos espaços, transformações orientadas pelos princípios da justiça, igualdade, solidariedade, bem-estar, qualidade de vida e equilíbrio ambiental.
O olhar no futuro enxerga intensas transformações patrimoniais e tecnológicas no sistema produtivo capitalista, no Estado, na democracia e na divisão internacional do trabalho, provocando mudanças disruptivas no mundo laboral. O amanhã antecipa hoje, no cotidiano, novos e inéditos paradigmas sobre o trabalho, os trabalhadores, os direitos e a proteção social. As disputas sobre as formas de distribuição social da produção econômica do trabalho vão ganhando outras conformações políticas e culturais.
Os trabalhadores do futuro produzirão essas mudanças e tudo estará em disputa, aliás, como sempre esteve. Mobilizar o protagonismo da classe trabalhadora é essencial para disputar as transformações e ter novas possibilidades de futuro. O sindicato, como sujeito coletivo, também terá que mudar para se reconstituir na resposta às mudanças em andamento.
O DIEESE do futuro terá que prospectar sobre o trabalho do futuro e essas grandes reconfigurações, lançando-se como fermento criativo para a invenção e intervenção sindical.
O DIEESE do futuro terá que mobilizar seu ativo de credibilidade para aportar insumos para a racionalidade e ofertas de instrumentos para o diálogo em um mundo de insensatez atroz.
O DIEESE do futuro deverá reinventar sua forma de organização e de financiamento.
O DIEESE continuará sua caminhada, passo a passo, enfrentando as enormes dificuldades e agruras, determinado a mudar e a se renovar, para responder ao contexto, animado por esses 64 anos nos quais travou a boa luta.
Foto: Reprodução site CNTU/ Greve dos bancários de SP contra o arrocho e a ditadura em 1978
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