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Desmistificando mitos neoliberais

O mito exerce “uma inegável influência sobre a mente dos homens que se empenham em compreender a realidade social”, escreveu Celso Furtado. Tratemos de desmistificar alguns dos principais mitos da corrente neoclássica que dá sustentação teórica e política ao neoliberalismo.

Em particular, as profecias dos neoliberais foram consagradas pelo Consenso de Washington. Tomadas como verdades absolutas e incontestáveis, tais medidas têm governado a economia política.

Operando como faróis de milha que iluminam caminhos obscuros, a doutrina neoliberal, valendo-se dos princípios da economia clássica de Adam Smith, David Ricardo e John Stuart Mill e da neoclássica de William Stanley Jevons, Alfred Marshall, Léon Walras, Carl Menger – que centraram sua análise no indivíduo isento de relações sociais, que busca atender ao seu próprio interesse e que se orienta por suas preferências subjetivas – sustentam os seguintes mitos: i) equilíbrio geral (oferta = demanda); ii) concorrência perfeita (mercado atomístico, homogeneidade do produto, livre entrada e saída e não-rivalidade); iii) mão invisível; iv) agentes racionais (que preveem o futuro para antecipar riscos); v) aumento do salário significa queda nos lucros; e, vi) laissez-faire. Em princípio, estas são “camisas de força” da abordagem neoliberal (1).

Por meio do desenvolvimento da produtividade social do trabalho, do progresso técnico e do desdobramento do sistema financeiro, a estrutura econômica e social foi revolucionada, deixando para trás todas as épocas anteriores.

Percorrendo uma sequência de transformações correntes e condicionadas umas pelas outras, em perspectiva histórica, haja vista que o capital é uma estrutura em movimento, podemos identificar alguns traços gerais da evolução do capitalismo ao longo de suas etapas, tais como: i) crescente concentração e centralização do capital; ii) socialização das esferas industrial e financeira; iii) égide do capital financeiro; iv) constituição das sociedades anônimas; v) aumento da diversificação e internacionalização das empresas; vi) progresso técnico (inovação tecnológica); vii) propensão à mobilidade do capital; viii) crescimento da produtividade social do trabalho; e, ix) constituição do mercado mundial. Para tanto, um dos traços mais marcantes do capitalismo contemporâneo são a crescente complexidade e diversidade de situações no âmbito das empresas (indústria e bancos), dos mercados (real e fictício) e das relações de trabalho (abstrata e concreta).

Na forma que acabamos de tratar, o afã do arcabouço teórico neoclássico apresentava incapacidade de lidar com a rivalidade existente nos mercados (concorrência), com o processo de inovação técnica (destruição criativa) e com as crises perturbadoras (ex. 1929 e 2007).

Dito de outra maneira, qualquer um destes três fatores (concorrência, inovação e crise) desmorona o arcabouço teórico neoliberal como um castelo de cartas. O capital é “uma contradição viva”, é uma “contradição em processo” que tem um duplo caráter; um “progressivo” e outro “antagônico” (2).

Isto equivale dizer que a modelagem neoclássica ao tratar “contradições” enquanto “falhas pontuais no equilíbrio geral” divorcia-se do mundo real e concreto, permanecendo em níveis de abstração. Por ser um “organismo vivo” e “contraditório”, a economia, que é política, não se enquadra dentro de uma modelagem econométrica perfeita e estática. Destarte, na atualidade, o mito mais lapidado resume-se à argumentação de que um aumento nos salários automaticamente significa queda na taxa de lucro, isto é, há uma equivalência entre baixos salários e taxa lucro.

É certo que o capital tende a negar constantemente trabalho pelo seu constante progresso técnico e pela socialização das forças produtivas promovidos pela grande indústria monopolizada. O trabalho tende a “aparecer como uma base miserável” (3), mas em hipótese alguma significa uma equivalência entre baixos salários e taxa de lucro.

Mas duas observações requerem atenção para desconstruir este mito: i) dentro do ciclo do capital-dinheiro [D-M (FT, MP) … P … M`-D`], do ciclo do capital-produtivo [P … M`-D`. D-M (MP, FT) … P] e do ciclo do capital-mercadoria [M`- D-M (MP, FT) … P … M`] o valor do capital não se valoriza porque o capitalismo é uma permanente “contradição em processo” (lei de valorização do capital produz inexoravelmente a destruição a desconexão da metamorfose do valor em valorização, mais-valor) (4); e, ii) que por hipótese alguma não é por causa do aumento dos salários que os lucros despencam, até porque um aumento nos salários faz aumentar a massa de consumo do trabalhador, que, consequentemente, ampliará a margem de lucro do capital.

Já advertia Marx, o “capital é o limite de si mesmo”. Assim, a acumulação capitalista que caminha na frente dos lucros esbarra na sua própria “anarquia”, isto é, pela força ou fraqueza da concorrência, pelo descompasso do investimento, pela incerteza quanto ao futuro, pela acumulação de capacidade ociosa não planejada e pela ausência de crédito (5).

Neste sentido, a produção de “mais-valia” é o objeto imediato e o motivo determinante da produção capitalista. Portanto, se a “mais-valia” não for consumada na venda da mercadoria, seja qual for o motivo, terá o trabalhador sido explorado, porém sua realização nula (6). A acumulação e a formação da taxa de lucro não se esbarram nos salários, esbarram em si mesma e no seu movimento “progressivo” e “antagônico”.

A essa altura do século, o homo oeconomicus, dotado de pleno conhecimento e saber notório, calculista e ao mesmo tempo egoísta, insiste em negar a presença do Estado na economia, confunde desenvolvimento com intervencionismo e cultiva o mito dos mitos de que a circulação de mercadorias condiciona um equilíbrio entre as vendas e compras (porque cada venda é compra e vice-versa).

Em verdade, se isso significa que o número das vendas de mercadorias efetivamente realizadas é igual ao mesmo número de compras, tal postura é equivocada, porque estamos falando de uma economia capitalista sofisticada de instituições monetárias, financeiras e de uma elevada complexidade industrial que por sua natureza é uma “contradição viva em processo”.

Como já advertiu a professora Maria da Conceição Tavares, o equilíbrio no capitalismo é cada vez mais “regulável” por relações de poder, e não pela tautologia da oferta = demanda.

Se os agentes “que povoam os mercados sabem exatamente qual é a estrutura da economia e, usando a informação disponível, são capazes de antecipar sua evolução provável” (7) são racionais, por que não previram a crise de 2007? Por que quando a rainha Elizabeth II ousou perguntar aos acadêmicos e professores da London School of Economics por que não se anteciparam da crise eles se calaram? (8) Embora simples, estas perguntas expõem as fraturas dos mitos.

Pois bem, os neoclássicos “vêem árvores mas não vêem florestas” e ignoram que a desvalorização do capital diz respeito a sua própria natureza. Em todo o caso, o futuro é incerto, o que por si só desmistifica por terra seus mitos, o que prova que o capitalismo é uma “contradição em processo” e ao mesmo tempo regado de “incerteza”. Para tanto, dada a incapacidade de lidar com o tempo e a incerteza, é uma blasfêmia afirmar que o futuro já está determinado.

Do mesmo modo, o Estado não serve apenas para garantir ações corretivas, como defendem. É impossível pensar o capitalismo sem a coerção estatal. Aqui somos obrigados a fazer outra pergunta aos devotos da ideologia neoclássica: como o capitalismo por si só, isto é, sem a intervenção do Estado, teria se reestruturado da crise e do trauma de 1929 e 2007 – dentre outras? Como nos ensinou Braudel, “O capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado, quando ele é o Estado” (9). Desse modo, fica resolvida a questão de que sem a presença estatal seria praticamente impossível o desenvolvimento do capitalismo.

Dado o avanço do processo de desenvolvimento contraditório do regime do capital, deve ser cômico se não trágico estar fora da realidade. A economia, por se uma estrutura em permanente movimento, não se prende a “camisa de força” nem muito menos se reduz a mitos que estão desconectados do plano material.

Notas:

(1)Austeridade fiscal (isto é, superávit primário – corte de gastos), desregulamentação dos mercados (comercial e financeira), privatizações, flexibilização das relações trabalhistas (terceirização) também compõem o conjunto dos mitos neoliberais.

(2)Frederico Mazzucchelli, A contradição em processo (1985). Sempre que mencionarmos “contradição em processo”, “progressivo” e “antagônico” estamos nos referindo ao professor Mazzucchelli.

(3)Karl Marx, Grundrisse (2011).

(4)Karl Marx, O Capital – livro II (2014).

(5)Maria da Conceição Tavares, Ciclo e Crise (1998).

(6)Karl Marx, O capital – livro III (1989).

(7)Luiz Gonzaga Belluzzo, O capital e suas metamorfoses (2013).

(8)David Harvey, O enigma do capital (2011).

(9)Fernand Braudel, A dinâmica do capitalismo (1987).


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