Enfrentar a ‘dívida digital’ existente no campo brasileiro deve ser prioridade na luta contra a pobreza rural. Nas áreas rurais, a internet e as tecnologias da informação ainda são bens escassos
A agricultura familiar é uma forma de produção e trabalho bastante presente no campo brasileiro. Conforme o último Censo Agropecuário do IBGE, o segmento representa 77% dos estabelecimentos rurais do país, gera ocupações para mais de 10 milhões de pessoas e responde por parcela expressiva da oferta de alimentos básicos consumidos pela população.
Em termos espaciais, mais de 80% dos 3,9 milhões de estabelecimentos da categoria estão localizados em municípios com até 50 mil habitantes, desempenhando função destacada na sociedade e nas economias locais.
Apesar de sua relevância, a agricultura familiar só foi inserida na agenda governamental brasileira a partir de meados dos anos 1990, com a criação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). Mas a “década de ouro” das políticas para a categoria foi registrada ao longo dos primeiros 15 anos do século 21.
Especialmente no período de 2003 a 2014 foram criados ou ampliados vários programas importantes de transferência de renda, segurança alimentar, compras públicas governamentais, habitação rural, acesso a água, assistência técnica e extensão rural, apoio a agroecologia e ao desenvolvimento territorial, entre outros. Mesmo sem deixar de lado problemas de operação e falta de integração, é inegável que tais políticas foram fundamentais para fortalecer o segmento e ajudar o Brasil a sair do chamado Mapa da Fome.
A partir de 2016, no entanto, o cenário se inverteu e iniciou-se um processo de desmonte daquela geração de iniciativas. Hoje, movimentos sociais e diferentes correntes de pesquisadores têm procurado discutir alternativas para reverter o quadro apresentado e revigorar a ação do Estado nesse campo. Há aí um risco: não raro, tem se percebido uma espécie de apologia do passado, sugerindo que a simples retomada das “antigas” políticas seria o suficiente para recuperar os indicadores positivos observados àquela época. É algo compreensível diante da dramaticidade dos tempos atuais. Mas também é preciso considerar que o contexto de agora é muito mais duro, e que nem todos os problemas haviam sido resolvidos com a geração anterior de políticas.
Para ir além da reedição do passado e fazer frente aos desafios colocados no presente e no futuro, ao menos sete aspectos necessitam ser considerados para atualizar e remodelar as políticas públicas de apoio à agricultura familiar, visando a dotar o segmento de maior capacidade para ajudar o país a enfrentar as sequelas da crise econômica, social e ambiental que vivenciamos.
O primeiro aspecto refere-se à identificação do lugar estratégico que as políticas para a agricultura familiar ocuparão nos marcos mais gerais do que pode vir a ser a agenda política e econômica de um eventual novo governo, com orientação política bem distinta do atual. Parte da sociedade brasileira ainda não percebeu que é ruim para o país a trajetória recente de aprofundamento da dependência das exportações de commodities agropecuárias.
Não por acaso esse movimento vem acompanhado de crescente desindustrialização. E simplesmente não há exemplos de países que alcançaram o clube seleto das nações com maior renda e bem-estar apoiando-se exclusivamente ou predominantemente em exportações primárias. É certo que os segmentos familiar e patronal vão continuar existindo e serão necessárias políticas diferenciadas para cada um deles. Mas para ambos é preciso introduzir critérios sociais e ambientais na alocação do fundo público. Não é isso o que ocorreu nas últimas décadas, quando prevaleceu a coexistência de dois modelos antagônicos.
O segundo aspecto está relacionado ao fato de que boa parte dos movimentos sociais rurais e da intelectualidade tem sustentado uma narrativa na qual a organização de sistemas alimentares saudáveis e sustentáveis ocupa o centro do debate. Isso é um tremendo avanço, pois conecta agendas – da produção, do consumo, da saúde e do meio ambiente.
Basta lembrar que o sistema agroalimentar é um dos principais vetores de degradação da biodiversidade e de aceleração das mudanças climáticas. Porém, é necessário estar atento para a existência de outros temas fundamentais nas próximas décadas que não se encaixam diretamente nessa agenda alimentar e têm sido simplesmente ignorados.
Entre estes temas, para ficar em apenas três exemplos, vale a pena destacar: o lugar central da pluriatividade, que consiste na combinação de atividades agrícolas e não agrícolas como estratégia de reprodução social das famílias do campo; o pagamento por serviços ambientais que pode não envolver produção e sim conservação pura e simples da natureza, com remuneração adequada para isso; e, ainda, nos marcos da discussão mundial sobre descarbonização, novas narrativas como Green New Deal, Big Push Ambiental ou bioeconomia alcançam cada vez mais espaço e envolvem, muitas vezes, cadeias produtivas não alimentares, abrindo oportunidades promissoras que precisam ser consideradas no planejamento de uma nova geração de políticas para a agricultura familiar, sobretudo na Amazônia.
O terceiro aspecto abrange especificamente as políticas produtivas para a agricultura familiar. A emergência do padrão produtivista atual foi resultado de pesados investimentos governamentais em crédito (com o sistema nacional de crédito rural), pesquisa (cujo maior símbolo é a criação da Embrapa), difusão de tecnologias (basta lembrar a rede pública de assistência técnica e extensão rural).
O moderno agro brasileiro é, ao contrário do que dizem seus líderes, uma invenção do Estado. Uma transição para outra agricultura (ambientalmente mais sustentável e inclusiva) também precisará de um sistema integrado de produção de conhecimentos e apoio público diferenciado na área de crédito e difusão do conhecimento.
Por certo o momento corrente difere daquele de alavancagem da modernização conservadora. Mas o fundamental é reconhecer que, para uma transição a uma nova agricultura, é absolutamente insuficiente o que se teve, mesmo nos momentos áureos, em termos de apoio produtivo para a agricultura familiar.
Apenas como exemplo, quanto ao crédito, é sabido que o PRONAF apresenta forte tendência de concentração no Sul-Sudeste e entre os segmentos mais capitalizados. É preciso discutir se o melhor caminho será reformar o programa e sua execução, ou se é o caso de, também, combiná-lo com outra política de crédito, mais adaptada às necessidades dos segmentos mais pobres e vulneráveis, tendo como centro estratégias de transição para a sustentabilidade dessas famílias, e não só o financiamento de alguns produtos ou práticas agropecuárias.
Quarto aspecto: digitalização. A pandemia da COVID-19 acelerou o uso de tecnologias digitais. Mas esse movimento já vinha acontecendo desde antes e, na agricultura, tem várias faces. Muitos países latino-americanos já avançaram mais do que o Brasil na produção de aplicativos para disseminação de conhecimentos, tecnologias e mesmo para assistência técnica. Houve uma multiplicação de plataformas online para comercialização.
Tudo isso pode representar uma oportunidade ímpar para a agricultura familiar. O problema é que nas áreas rurais a internet e as tecnologias da informação ainda são bens escassos. Enfrentar a “dívida digital” existente no campo brasileiro deve ser prioridade na luta contra a pobreza rural. Hoje este é tema ausente das políticas públicas.
O quinto aspecto diz respeito a mercados. Sobre esse tema, em geral se menciona o avanço representado pelos programas de compras públicas. De fato, iniciativas como o PAA e o PNAE representaram enorme oportunidade para agricultores familiares alcançarem um mercado com garantia de estabilidade de demanda e preços razoáveis.
Mas isso é um meio. Não pode ser um fim. De um lado, é preciso reconhecer que, no seu auge, as compras públicas chegaram a 5% dos agricultores familiares. É pouco. Há muito o que se fazer para ampliar essa cobertura melhorando a regulação, com simplificação de procedimentos ou construindo capacidades, sobretudo nos pequenos municípios para operar os programas.
E mesmo com significativa ampliação, esse não pode ser o horizonte. É ruim para os agricultores dependerem de um único mercado, mesmo que o parceiro comercial seja o poder público. É preciso ampliar arranjos envolvendo o setor privado. Aqui se trata de criar condições que protejam os agricultores familiares na negociação de contratos e que incentivem as empresas a comprar deste segmento.
O sexto aspecto refere-se à coordenação dos programas governamentais. Apesar do interessante mix de políticas e programas da década passada, o grau de fragmentação e pulverização de investimentos foi muito elevado. Poucos agricultores conseguiram acessar uma combinação dos vários programas. Isto é, embora eles fossem complementares no desenho, isso não se concretizou na fase da implementação.
Criou-se a ilusão de que “na ponta” (para usar um jargão dos gestores), as pessoas acessariam o que melhor coubesse à sua realidade prática. Ocorre que quando políticas não são geridas para serem complementares, é muito difícil que os beneficiários consigam fazer isso sozinhos, porque prazos não coincidem, procedimentos tornam-se conflituosos. Sendo assim, melhores resultados poderão ser alcançados simplesmente criando arranjos de coordenação mais robustos. E isso será fundamental em um contexto de maior rigidez orçamentária.
O sétimo aspecto, por fim, é a necessidade de uma política e de uma estratégia de desenvolvimento territorial. Porque importa também o “lado de fora da porteira” das unidades familiares, o contexto regional onde as famílias estão inseridas. É sabido que muitos filhos de agricultores deixam sua região de origem por razões que não têm a ver com melhorar a produção agrícola, e sim porque não há, no entorno dos seus estabelecimentos, equipamentos sociais decentes, opções de lazer, infraestrutura adequada, outras oportunidades de trabalho para quem quer seguir outra profissão ou diversificar suas fontes de renda.
É fundamental criar mecanismos capazes de dinamizar a vida social e econômica das regiões interioranas do Brasil dando forma a um pacto pela paridade entre as áreas rurais e urbanas quanto a certas condições de bem-estar de seus habitantes.
O Brasil do século 21 permite isso. Hoje há uma extensa rede de cidades médias que podem ser a base para projetos regionais inovadores. Existe também uma rede descentralizada de universidades e institutos federais. Tudo isso precisa ser aproveitado por meio de estratégias de transformação territorial. Mas, para isso, é necessário mais do que criar fóruns e pedir que organizações locais indiquem ao governo federal quais políticas são mais importantes ali, como se fez com o extinto Programa Territórios da Cidadania.
Em síntese, a mensagem principal a partir de tudo o que foi dito é: valorizar os bons resultados do passado é necessário, mas isso não deve ser impedimento para renovar uma agenda para o futuro. E nunca é demais lembrar que novas gerações de políticas não se fazem com um mero elenco de temas, como se fez acima. Trata-se, sobretudo, de construções sociais e de um projeto político de mudanças.
O mais importante é criar um ambiente favorável para se debater ideias-chave na perspectiva dessa construção do futuro e, mais do que tudo, mobilizar as forças sociais que podem sustentar essa agenda. O que foi exposto aqui sinteticamente nada mais é do que um insumo, mais um, para esse tipo de esforço de que o Brasil tanto necessita em um momento dramático como o atual.
Arilson Favareto é professor da Universidade Federal do ABC e coordenador do CEBRAP Sustentabilidade.
Joacir Rufino de Aquino é economista, é professor da UERN, membro do Instituto Fome Zero e sócio do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.
Crédito da foto da página inicial: Contag
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