Christian Laval, professor emérito de sociologia na Universidade de Paris-Nanterre, é um dos sociólogos mais importantes da atualidade. Há alguns anos se dedica a refletir sobre a sociedade atual como no livro a “Nova Razão do Mundo” e sobre práticas alternativas ao neoliberalismo, descritas no livro “Comum”, ambos publicados no Brasil pela editora Boitempo. Nessa entrevista para Mayra Juruá e Pedro Rossi, para o Brasil Debate, Laval interpreta o fenômeno Bolsonaro como parte de um processo que ocorre em escala global.
Leia, a seguir, a entrevista:
Brasil Debate – O professor tem se dedicado ao estudo do neoliberalismo e sua relação com as chamadas “democracias liberais”, como essa perspectiva pode ajudar na leitura da realidade brasileira?
Christian Laval – Nós vivemos uma crise geral da democracia liberal em todo o mundo. A eleição de Trump é um dos sinais mais importantes, mas está longe de ser isolado. Décadas de políticas neoliberais têm enfraquecido os fundamentos da legitimidade das instituições representativas e os partidos políticos que detinham o poder desde a Segunda Guerra Mundial. Isto pode ser visto na Europa, por exemplo.
Esse fenômeno mundial merece ser explicado. A legitimidade da democracia liberal repousa paradoxalmente sobre a sua capacidade de integrar uma lógica de proteção social e redistribuição o que permite às classes populares sustentar, mesmo que de forma conflituosa, o sistema político. Mas o neoliberalismo bloqueou essas possibilidades e grande parte das forças políticas de esquerda, em especial a tradição socialdemocrata, ao se alinhar com essa lógica neoliberal perde as suas bases sociais. É o que explica o sucesso dos partidos hiperautoritários, como o Lega na Itália, que operam em duas frentes: com a promessa segurança policial e militar da sociedade e com políticas muito favoráveis às empresas e aos mais ricos.
Penso que essa perigosa fase que nós atravessamos está marcada por um novo neoliberalismo que canaliza e explora os ressentimentos, as frustrações, o ódio, o medo de diferentes frações da população, dos pobres e dos ricos, para direcioná-los contra bodes expiatórios. Esses últimos podem ser imigrantes, pessoas consideradas preguiçosas, vagabundas, parasitárias, as minorias sexuais ou étnicas, partidos ou líderes políticos de esquerda, pouco importa. O neoliberalismo, para evitar seu questionamento, sobrevive do ódio e mobiliza paixões violentas como fez o fascismo e o nazismo.
Parece-me bastante óbvio que os países periféricos, como o Brasil, que há muito conhecem regimes ditatoriais, cujas instituições representativas são mais recentes ou mais disfuncionais, estão ainda mais expostos às mudanças hiperautoritárias neoliberais. A fase de “democratização”, muito relativa, muitas vezes muito hipócrita, que marcou os anos 90, não está mais na agenda, porque não é mais impulsionada pelos países do centro, Estados Unidos ou União Europeia.
BD – De fato, no Brasil a ultradireita é uma negação da redemocratização e traz de volta a participação dos militares no debate político e o seu candidato prega o “livre mercado” e um plano de privatizações radical. De que forma o conservadorismo e o autoritarismo podem ser compatíveis com o neoliberalismo?
Laval – O Brasil é um caso especial, uma vez que as forças armadas cumpriram por diversas vezes na história um papel político e visivelmente não se submeteu inteiramente ao poder civil, fenômeno que é dificilmente concebível em um país democrático. Mas o país testemunha um processo que ocorre em escala mundial com o advento de um neoliberalismo hiperautoritário, nacionalista e racista, que viola abertamente os princípios da democracia liberal.
Tínhamos visto os primeiros sinais com a evolução do direito americano e europeu na década de 2000, especialmente com o aumento da xenofobia, o culto da identidade nacional e religiosa, e medidas de segurança restringindo liberdades civis dentro da “Guerra Mundial contra o Terrorismo”. Vimos também que o neoliberalismo pode combinar ideologias muito diferentes, como o islamismo na Turquia. Hoje, chegamos a uma nova fase em que várias lógicas podem parecer contraditórias, mas que o novo neoliberalismo busca conciliar: a intensificação das políticas neoliberais, o desejo de restaurar a ordem moral mais tradicional e a “segurança nacional”. O que torna tal mistura possível é o antidemocratismo fundamentalista do neoliberalismo como doutrina e modo de governo, e é sobretudo a sua lógica de guerra que o anima: trata-se de transformar à força a sociedade, sem se preocupar com a resistência e as objeções que se manifestam.
BD- De que forma o candidato Bolsonaro encarna esse nova fase do neoliberalismo?
Laval – O golpe de 2016 no Brasil abriu caminho para prolongar e mesmo radicalizar a política neoliberal conduzida pelo presidente Temer. É um candidato « outsider », Bolsonaro, que com sua demagogia, sua violência verbal, suas mentiras, conseguiu chegar à frente dos outros candidatos da direita “clássica”.
Sua campanha, sustentada pelas oligarquias rurais, industriais, midiáticas, religiosas e financeiras, já sugere o que seria uma ditadura neoliberal aberta. Para ganhar as eleições com tal programa neoliberal, recusado pela maioria da população brasileira, como mostram pesquisas, foi preciso inicialmente mobilizar o eleitorado das camadas superiores e média com o tema da segurança e da corrupção. Foi preciso também explorar todas as fontes de ódio contra as mulheres, negros, índios, homossexuais.
Ouvindo Bolsonaro e sua família, ele reprimirá e criminalizará qualquer atividade social e política que possa opor-se a ele para alcançar a unidade nacional em torno de seu programa. A arma da polícia e militar será o meio para aplicar a sua lógica e com todas as suas consequências, um neoliberalismo generalizado. Todos os democratas do mundo estão avisados: Bolsonaro é um fascista fanático que arrisca chegar ao poder no Brasil.
BD – No seu livro “Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI” o senhor apresenta princípios e práticas para um futuro não capitalista. Em que consiste o Comum? Como difundir essa ideia? Como a crise do neoliberalismo pode abrir espaço para um futuro não capitalista?
Laval – O neoliberalismo deu origem a reações muito diferentes. Por um lado, havia essa raiva, esse sentimento de abandono, esses pânicos identitários, explorados pela extrema-direita por seu discurso de ódio. Por outro lado, apareceu uma resposta muito diferente, que é uma demanda por mais democracia, democracia real, radical e direta. Nós entramos nos anos 90 em uma fase de inventividade democrática, minoritária sem dúvida, mas com alternativas para o longo prazo. Essa demanda democrática foi particularmente vista nas principais mobilizações dos anos 2011-2016, em todo o mundo. Adicionado a este requisito está o questionamento da lógica da propriedade, que continuou a crescer com capitalismo cada vez mais predatório, procurando explorar todas as possíveis fontes de lucro, particularmente no campo do conhecimento, mas também aproveitando recursos naturais, espaços urbanos, serviços públicos etc. O sucesso global do tema “comum”, sustentado em especial pelo movimento social “altermundialista”, apontou para a existência de uma racionalidade alternativa ao neoliberalismo.
Com Pierre Dardot, nomeamos a “racionalidade do comum” porque a noção rica e antiga dos “comuns” estava de volta à realidade. Queríamos recuperar essa história em nosso livro, mas também propondo uma nova teoria que seja politicamente operacional. Em outras palavras, os experimentos no campo da internet, como os movimentos cooperativos, bem como a defesa e reativação das comunidades indígenas, nos parecem todos um princípio político básico, que chamamos de “princípio político do comum”.
Este princípio visa a estabelecer uma organização democrática do uso coletivo dos recursos produzidos por uma comunidade, grande ou pequena. Ele associa, como podemos ver em muitos casos concretos, a busca por uma democracia genuína e a implementação de um direito coletivo de uso. Submetemos este princípio aos atores sociais como um ponto de referência teórico ou apoio para a sua própria reflexão sobre suas práticas. Deste ponto de vista, o livro funcionou bem. Este livro também abre, como seu subtítulo sugere, uma reflexão mais ampla sobre a necessidade de uma nova ideia da revolução que articule práticas institucionais básicas – a capacidade de criar instituições sociais autogovernadas – e a transformação em um sentido democrático das grandes estruturas políticas e econômicas da sociedade. O importante, em tempos tão sombrios, é garantir que a esperança sempre conduza a ação e ao pensamento. E, para isso, nada supera o exercício da imaginação política coletiva.
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