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Foto do escritorBrasil Debate

De calvários e ressurreições

Como não tenho religião, sempre que escuto algum discurso religioso acabo aprendendo alguma coisa. São temas novos, pontos de vista que não costumo ouvir. Obrigam-me a pensar. Nem sempre concordo, nem sempre têm algo mais rico, mas em geral pelo menos intrigam a mente.

Outro dia destes ouvi o sermão de uma pregadora evangélica particularmente interessante. Muito eloquente e caprichado. Vou resumir a estória. O mote do sermão era este: Jesus foi perseguido e morto não por aquilo que ele era, mas por aquilo que não podia ser. Explicava: Jesus foi crucificado entre dois ladrões, mas não era ladrão. Os judeus ricos venderam aos romanos a versão de que Cristo era subversivo, queria derrubar o imperador. Cristo sempre disse que seu reino não era o da terra, a Deus o que é de Deus, a Cesar o que é de Cesar.

Mas Jesus foi morto por aquilo que não podia ser. Aí vem a parte mais complicada do sermão. Dizia ela: Jesus nasceu e cresceu dentro de uma sociedade judaica muito estratificada, muito hierárquica, dominada por famílias ricas. Os rabinos esperavam por um Messias, um redentor. Ora, Cristo era filho de um carpinteiro e uma mulher do povo. Imigrante, nasceu no meio de uma fuga, em um estábulo. Cristo não podia ser o Messias anunciado pelos profetas. Em suma: como queria demonstrar, Cristo não foi crucificado por aquilo que era, mas por aquilo que não podia ser. Não tinha esse “direito”, por nascença.

Assistimos a uma nova escalada do Calvário. Uma nova perseguição. Longe de mim querer fazer discurso religioso e comparar Cristo a personagens terrenos. A Cristo o que é de Cristo, a Lula o que é de Lula, a Dilma o que é de Dilma. Mas, com o perdão do exagero e da eventual heresia, a comparação faz algum sentido.

Faz anos, Lula e Dilma têm sua vida investigada e repassada. Não acham contas na Suíça, nem fazendas em Minas Gerais ou apartamentos em Paris, não estão na lista de Furnas nem construíram aeroportos na fazenda que não têm. Inocentados pela vã tentativa de incriminá-los, ele e ela serão agora julgados por ladrões – e talvez crucificados por eles.

Será que são culpados do segundo pecado, o de tentar destronar o império? Ora, os grandes capitalistas foram despojados ou prejudicados durante os governos petistas? Os tostões destinados aos pobres foram muito para muitos – afinal, essas políticas tiraram milhões de pessoas da desgraça da fome e melhoraram a vida de outros milhões de trabalhadores pobres. Mas… custaram quase nada aos bolsos dos ricos. Muito pouco.

Não, Dilma e Lula não estão sendo crucificados por aquilo que são, mas por aquilo que não podem ser. Ou que NÓS não podemos ser. Melhor: quem está sendo julgado e crucificado não são eles, são aqueles que, supostamente, não podem ser alguma coisa. A sociedade da Casa Grande, dos senhores de escravos, jamais admitiu que os habitantes da senzala fossem gente. Quando o senhor da Casa Grande via que um branco, talvez até seu próprio filho, se condoía dos negros e se colocava ao lado deles, condenava os dois: o negro e o branco abolicionista. O pai chicoteava o negro e mandava o garoto rebelde para a capital ou para Coimbra, para estudar e ficar longe. Às vezes os amigos do pai faziam o serviço mais pesado: liquidavam o rapaz amigo dos negros.

O que os ricos não suportam, no Brasil, é ver os escravos saindo da senzala, pensando que são gente. Não apenas os ricos, também pensam assim os ajudantes dos ricos, aqueles que pensam que são mais brancos porque são serviçais dos brancos. Insuportável ver o filho do escravo entrando na mesma universidade do branco proprietário. Nos aeroportos. Até nos shopping centers agora eles inventam de fazer seus rolezinhos. Inventam de nos ‘impor’ uma presidenta que a gente não quer, que ofensa!

Aqueles que mataram Cristo não previram a ressurreição do cristianismo. Os carrascos de hoje pensam que podem nos matar. Pensam que arrancam flores, mas plantam sementes. A gente sempre volta. Primeiro, assombrando os pesadelos deles. Depois, à luz do dia, ocupando as praças. Aí, eles vão se arrepender de tentar nos matar. Mais ainda, vão se arrepender de não terem morrido.

Crédito da foto da página inicial: Reprodução/Revista Forum

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