Uma das grandes expectativas advindas da ascensão do Partido dos Trabalhadores ao poder é que o Brasil avançasse na reforma agrária. Se no governo do Presidente Lula foram assentadas mais de 600 mil famílias num total de cerca de um milhão de famílias assentadas em toda a história do Brasil até então, os números se reduziram a uma média de aproximadamente 30 mil famílias anuais no governo Dilma.
De uma forma ou de outra, se olharmos pelos indicadores da concentração, nunca houve nenhuma mudança na estrutura fundiária do país. A reforma agrária perene é um carma da sociedade brasileira.
Uma das consequências mais nefastas da concentração da terra é a concentração do poder político. Se hoje temos uma bancada ruralista fortalecida que ousa propor o desmonte das políticas de regularização de territórios quilombolas e indígenas e busca ressignificar o trabalho escravo, isto decorre da não realização de uma profunda e radical reforma agrária.
Se ainda remanesce algum poder a estes setores atrasados da sociedade brasileira, ele se origina na velha história de muita terra com pouca gente e muita gente com pouca ou nenhuma terra.
De acordo com os dados do último Censo Agropecuário, tínhamos em 2006 mais de 800 produtores sem terra e cerca de um milhão de minifundiários. Nunca é demais lembrar que o Brasil possui 15% de população rural (ou 35% de acordo com os conceitos da nova ruralidade), a agricultura familiar ocupa 24,3% da área agricultável, produz 70% dos alimentos consumidos e emprega 74,4% dos trabalhadores rurais. Entretanto, são os ruralistas que possuem a maior bancada da Câmara dos Deputados, capazes, inclusive, de constituírem facilmente uma maioria parlamentar.
Mesmo um teórico do desenvolvimento do campo conservador como Rostow entendia como pré-condição para o arranco (uma das suas etapas do desenvolvimento) a ruptura com as elites tradicionais. Esse enfrentamento jamais foi feito e se manifesta na renitente influência que os setores atrasados do campo mantiveram e mantêm na política brasileira.
As propostas até agora apresentadas pelo governo federal para o corrente mandato da Presidenta Dilma são de assentamento das 129 mil famílias acampadas. Ainda que seja bem-sucedido, não resolverá este problema no campo. Os acampamentos são áreas de conflito aberto no campo e, apesar de alvissareiro, o assentamento de todas estas famílias não mexerá na estrutura fundiária e de poder do país.
Se hoje o governo não consegue avançar numa pauta minimamente progressista, um dos principais vetores de resistência decorre dos mecanismos estabelecidos de poder, sustentados na concentração da propriedade da terra, que garante a hegemonia no Congresso Nacional dos setores mais atrasados da sociedade.
Ademais, o Brasil vive uma crise de hegemonia no sentido gramsciano, na qual as classes sociais encontram-se dissociadas dos partidos que as representam, de forma que não se sentem mais representadas por seus representantes.
Neste quadro, “a classe dominante perdeu seu consenso, isto é, não é ‘dirigente’, mas apenas ‘dominante’, exercendo apenas a força coercitiva, isto significa exatamente que as grandes massas se separam de suas ideologias tradicionais e não mais creem no que costumavam crer anteriormente etc. A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer.”
Carlos Nelson Coutinho, em sua interpretação de Gramsci, aponta que as crises de hegemonia podem apresentar diferentes desenlaces. Num curto prazo, a classe dominante mantém o seu status quo por meio da coerção.
Em médio prazo, pode ocorrer uma recomposição de sua hegemonia. Ou, ainda, caso as classes dominadas consigam ampliar a aliança, evitando o sectarismo, elas poderiam subverter a ordem e assumir como nova classe dominante.
Entretanto, não custa lembrar que, para essa superação, de nada adianta a guerra de movimento das estratégias revolucionárias clássicas. Temos Estado e sociedade civil bastante organizados. Tornou-se necessário, portanto, resgatar a guerra de posição de forma a cercar e sitiar o Estado burguês com uma contra-hegemonia para construção de um novo Brasil.
É importante destacar que Caio Prado Júnior coloca que as manchas de solo de pior qualidade são aquelas que acabam ficando na mão dos pequenos e médios proprietários e que a desapropriação apenas das grandes propriedades improdutivas perpetua este cenário.
Neste sentido, é com bastante otimismo que vemos iniciativas do governo em destinar as terras de propriedade dos grandes devedores da união para assentamentos da reforma agrária, terras estas normalmente de melhor qualidade que as propriedades improdutivas.
Todavia, se há de fato a intenção de se encerrar o ciclo da reforma agrária perene no Brasil, é preciso pensar a reforma agrária dentro da estratégia de desenvolvimento do país, considerando seu potencial de geração de emprego e renda, combate à inflação e linha auxiliar para a política industrial.
Deve-se atentar aos arranjos produtivos existentes nas diversas regiões do país, fortalecendo os virtuosos e reestruturando os ineficientes. Destarte, é preciso romper de modo ainda mais profundo com a destinação apenas das terras improdutivas para a reforma agrária e, para tanto, faz-se necessário usar amplamente o rito previsto na lei 4.132/1962 desapropriando terras para reforma agrária pelo interesse social genérico.
Desta maneira, para além das inúmeras razões econômicas, o fortalecimento da democracia com o desempoderamento das elites tradicionais talvez seja um dos principais fatores pelos quais devemos apostar na reforma agrária. Muito se discute que o Brasil precisaria de uma profunda reforma política, mas não há discussão de reforma política possível sem que sua ponta de lança seja a reforma agrária.
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