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Da economia do endividamento à de mercado de capitais: risco de dolarização

O sonho dos Chicago’s Oldies é Terrae Brasilis deixar de ser uma economia de endividamento e se tornar uma colônia norte-americana com uma economia de mercado de capitais. O risco nessa transição à marcha forçada (e ordem unida militar) é se tornar uma economia dolarizada à la Argentina.

Explico a razão de ser dessa hipótese. Historicamente, depois de deixar de ser predominantemente de base imobiliária (terras rurais e imóveis urbanos), com a modernização conservadora do regime militar aliado à casta dos reformistas neoliberais à la Roberto Campos (avô), a riqueza brasileira passou a deter um portfólio lastreado principalmente em títulos de dívida pública de elevadíssima liquidez.

Isso permitiu a plantação de “jabuticaba”: uma moeda indexada, isto é, corrigida por índice de preços, capaz de se tornar uma reserva de valor mesmo em regime de alta inflação. Constituiu uma barreira à fuga de capitais para o dólar. Essa fuga ocorreu na Argentina, uma economia fundamentalmente primário-exportadora e recebedora de dólares tal como o agronegócio brasileiro. Este pesa 1/5 do PIB do Brasil ao integrar sua cadeia produtiva na indústria e em serviços. A indústria geral brasileira produz 21,5% do PIB, sendo composta de extrativa mineral (1,5%), transformação (11,8%), produção e distribuição de eletricidade, gás, água e esgoto (2,7%) e construção (5,2%).

A indústria é igualmente o maior setor produtivo na economia da Argentina: 19% do PIB. Também está integrado à agricultura, sendo a metade das exportações industriais do país de natureza agrícola. Os principais setores em termos de valor de produção são: processamento de alimentos e bebidas (um dos cinco maiores produtores de vinho do mundo), veículos automóveis e autopeças, produtos de refinaria, biodiesel, produtos químicos e farmacêuticos, aço e alumínio, máquinas agrícolas e industriais, e aparelhos eletrônicos. Em 2011, a indústria automotiva produziu 829.000 veículos e exportou 507 mil, principalmente para o Brasil. O país, em contrapartida, exportou um número um pouco maior para a Argentina. O Mercosul une o mercado automobilístico.

O país vizinho possui o 8º maior território no mundo, mas sua população alcança 44 milhões de pessoas, pouco mais de 1/5 do tamanho da brasileira. Seu PIB nominal atinge US$ 585 bilhões enquanto o brasileiro chega a US$ 1.772 bilhões (FMI). Em PPC, o do Brasil (US$ 3.246 bilhões) é o oitavo e o da Argentina (US$ 922 bilhões) o 28º.

Qual é a diferença marcante entre as riquezas pessoais na Argentina e no Brasil? Lá o comportamento coletivo típico é guardar dólares como reserva de valor. Essa atitude defensivo-especulativa contamina os “contratos de gaveta” no mercado imobiliário. São compromissados em dólares.

E qual é o problema com a existência de um sistema bi-monetário? As três funções clássicas do dinheiro se dividem: a reserva de valor em dólar, por causa da preferência da população pela moeda estrangeira, a leva a fazer contas nessa moeda. Ela passa também a ser unidade de conta. Porém, como o governo usa a moeda nacional como meio de pagamentos a seus fornecedores, funcionários e aposentados, a apreciação daquela e a consequente depreciação desta leva a um ritmo avassalador na elevação dos preços nominais em peso, quando os converte de seus valores em dólar. A inflação dispara. Na Argentina, a taxa de inflação está em 45,5% e a taxa de juro em 60,75% aa.

No Plano Cavallo, o Congresso da Argentina aprovou uma lei, em 22 de março de 1991, proposta pelo Poder Executivo, cujo efeito era o de fixar a taxa de câmbio da moeda do país, o austral, em relação ao dólar, à razão de 1:1. A lei também determinava o país adotar o peso conversível no ano seguinte, com uma taxa de conversão de dez mil austrais para cada peso. Essas medidas efetivamente promoveram a dolarização da economia.

Com a taxa de câmbio fixa, quaisquer aumentos de preços dos produtos nacionais poderiam levar à perda de mercado para concorrentes importados. Além disso, o próprio dólar americano era aceito como moeda no país, paralelamente, e com o mesmo valor do peso. O peso conversível começou a circular em 1 de janeiro de 1992. Com a crise econômica da Argentina, após uma década, o peso conversível perdeu a paridade fixa para o dólar em 2002, além de passar a ser chamado somente de peso.

Na dolarização plena (full dolarization), a moeda doméstica é substituída pela norte-americana tradicionalmente estável. Como deixa de haver a cotação da moeda nacional em moeda estrangeira, a dolarização plena representa a ausência de política monetária e de política cambial. O país abre mão da soberania nacional na emissão monopólica da moeda nacional. O outro símbolo dessa soberania é o monopólio do controle das armas pelas Forças Armadas e Polícias Militares e Civis. O crime organizado o coloca em xeque.

O Plano Real no Brasil, implantado em 1994 até a adoção do real, ofereceu um simulacro do dólar: a URV (Unidade Reajustável de Valor). A taxa de câmbio nominal era reajustada diariamente segundo a inflação interna. O objetivo era manter a taxa real de câmbio em níveis constantes, mantendo a competitividade externa da produção doméstica e dando a sensação para os brasileiros com acesso a depósitos em bancos, indexados pela URV, de proteção do poder aquisitivo de seu dinheiro. Passados seis meses, quando não se via inflação levando à perda de valor em URV, trocou-se o nome dessa unidade de conta para o real e o adotou oficialmente como meio de pagamentos. Só.

Entre 1995 e 1998, o Banco Central do Brasil adotou uma banda cambial (target zone) deslizante (sliding band): não apresentava uma regra pré-estabelecida, mas era determinada pelo não comprometimento em se manter irreajustáveis o ponto central e a amplitude da banda. O Banco Central podia alterar sua determinação em magnitudes e unidade temporais indefinidas. Desde 1999, permite uma flutuação suja (dirty-floating). Nesse sistema, a Autoridade Monetária realiza intervenções esporádicas no mercado cambial. Na prática, a taxa continua sendo determinada pelo mercado, porém, o BC pode atuar com objetivo de garantir uma boa formação da cotação, inclusive na relação entre o mercado futuro e o mercado à vista, conveniente para a política cambial.

O maior banco privado brasileiro, o Itaú, tem 75 agências na Argentina e atende 500 mil clientes. Lá tem foco em clientes pessoas físicas de alta renda e institucionais, além de estrangeiros com negócios no país. Especula com a possibilidade de o mercado de capitais na Argentina crescer.

O mercado de capitais argentino é pequeno comparado ao brasileiro. A capitalização das empresas do principal índice de ações da Argentina soma atualmente cerca de US$ 47,3 bilhões. No Brasil, 341 SAs valem R$ 3,5 trilhões ou 47,6% do PIB brasileiro.

O investidor argentino aplica muito em produtos atrelados ao dólar, como os contratos de derivativos negociados no mercado de futuros argentino (ROFEX), e também em renda fixa, principalmente títulos soberanos do governo argentino em dólar, e também papéis de curto prazo do governo em peso. A maior demanda é por bônus em dólar. Há também os CEDEARS (Certificados de Depósito Argentinos): papéis lastreados em ações de empresas estrangeiras negociados no mercado local.

Os investidores argentinos podem aplicar até 100% em fundos carregadores de ativos do Mercosul e até 25% em carteiras investidoras em ativos dos demais países. Há potencial de crescimento do mercado argentino com o retorno dos investimentos mantidos no exterior. Representam 22% do PIB do país. A Argentina anunciou, em 2016, um programa de anistia de recursos não declarados mantidos no exterior. Segundo a organização Tax Justice Network (TJN), os argentinos tinham aproximadamente US$ 400 bilhões no exterior, embora cálculos mais enxutos apontem a metade desse valor.

Após o acordo da Argentina com o Fundo Monetário Internacional (FMI), com a repatriação desses recursos há possibilidade de dobrar o tamanho do sistema financeiro argentino. Ele soma hoje US$ 56,6 bilhões em ativos, enquanto o M4 (total de Haveres Financeiros) no Brasil somou R$ 6,6 trilhões em outubro de 2018 ou 96% do PIB (R$ 6, 839 trilhões). Estima-se em US$ 1,667 trilhão, ou seja, é trinta vezes maior!

A dolarização da economia argentina foi uma forma encontrada pelos investidores para se proteger da inflação. A taxa de juros de referência no país está em 60% ao ano e o Itaú estima uma inflação de 48% no fim deste ano. O problema não é só fiscal, mas também a vulnerabilidade externa, para ter uma moeda nacional mais apreciada.

Qual é o risco prenunciado pela futura equipe econômica do governo eleito no Brasil? Os chicagões sonham tornar o Brasil de hoje os Estados Unidos de quando lá cursavam a Escola de Chicago. Foram doutrinados na cartilha norte-americana, onde o “sonho americano” é o melhor para todo o mundo, indiferentemente das culturas e instituições locais. Curto e grosso, imaginam privatizar tudo aqui privatizável e pagar toda a dívida pública! É um disparate: a DBGG (compreende o Governo Federal, o INSS e os governos estaduais e municipais) alcançou R$ 5,231 trilhões ou 76,5% do PIB em outubro de 2018.

Obviamente, aquela lavagem cerebral não levará a bom termo experimental. Em uma transição mal conduzida, os títulos de dívida pública de risco soberano, desprotegidos por disparatada taxa de juro real, podem deixar de lastrear a riqueza financeira brasileira. Em vez de os capitais se dirigirem para o mercado de capitais, investindo em ações e debêntures de empresas brasileiras improdutivas e não-confiáveis, podem optar por se protegerem em dólares, copiando o mau exemplo dos vizinhos.

Crédito da foto da página inicial: Arquivo Agência Brasil

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