O tempo é cruel. Não apenas quando olhamos nossa imagem no espelho ou nas fotos de juventude. Contudo, paradoxalmente, esse exercício faz bem para a saúde. Exemplo claro dessa regra é uma brochura publicada pelo departamento de “pesquisa” da consultoria Merrill Lynch em abril de 1999. The Book of Knowledge. Título bíblico, mas o conteúdo não faz questão de sê-lo. Faz questão de selo, o da ML, que na época valia alguma coisa. O subtítulo esclarecia a quais crentes se dirigia: Investing in the Growing Educationand Training Industry.
Em suma, era um panfleto promocional travestido de “estudo”. Mas era revelador como pseudo-estudo. Não vou comentar os numerosos detalhes instigantes do texto. Selecionarei dois ou três, quem sabe volte a ele no futuro. Para os interessados, o book está disponível na web: http://www.nyu.edu/classes/jepsen/BookofKnowledge.pdf.
Leia com cuidado, tendo sempre na mente duas coisas: quem escreve e quando. Olhando para quem escreve você tem uma ideia de onde eles querem chegar. E olhando para a data, você tem como ver onde é que eles chegaram (ou onde nos fizeram chegar).
A finalidade da coisa era vender um novo filão de “investimentos” a clientes da ML – ricaços, claro, mas também os administradores sedentos de fundos de pensão ou de finanças municipais em busca de investimentos dourados para suas reservas de caixa. Gente que é paga para administrar o dinheiro dos outros.
O volumoso panfleto deixava claro o que pretendia. Enumerava os “avanços” que se registravam na privatização dos serviços de saúde e mostrava como era preciso “avançar” na área da educação, uma “indústria” que, nos Estados Unidos da época, movimentava quase 800 milhões de dólares em vários sub-ramos – educação elementar e média, vocacional, superior, materiais didáticos e sistemas, equipamentos, softwares e assim por diante.
São reveladores os “obstáculos” que o estudo menciona no sistema de escola elementar e média (o chamado nível K-12 – do kindergarten até a high school). Dizem os merrill-lynchianos que é a fatia mais gorda do mercado. Só que é preciso vencer a resistência dos professores e seus sindicatos, a desconfiança das famílias, o “corporativismo” dos administradores públicos. Curioso é que os camelôs da ML vendem corporações a corporações, de cujo “corporativismo” nem ouvimos falar.
Em suma, o pseudo-estudo não apenas disseca o mercado potencial, ele sugere quais as iniciativas necessárias para torná-lo “natural”, isto é, desregulado. Entre outras coisas, mexer no famoso Título IV da lei federal de educação, que impõe limites a repasses e subsídios para instituições educativas com fins lucrativos.
Algum sucesso houve na receita. O sistema de educação “for profit” cresceu em todos os níveis, alterando, sim, a lei, de modo a injetar recursos públicos em instituições privadas visando ao lucro. Algumas delas chegaram a ter 80% ou 90% de sua receita vinda desses fundos públicos. No nível superior, as empresas lucrativas acolhiam apenas uns 2% do estudantado na época da publicação (1999). Dez anos depois, tinham chegado aos 15%. Nisso foram eficientes. No que diz respeito à conclusão de cursos, porém, patinavam tremendamente. Matriculavam muito, graduavam pouco. E, sobretudo, penhoravam os estudantes. O resultado disso foi uma multidão de ex-estudantes endividados e sem perspectiva de emprego para pagar o débito.
Mas isso, afinal, faz parte do risk-taking, não é mesmo? Quem mandou? Fora todas essas promessas radiosas com final triste, um outro traço bem curioso do panfleto, outro que o tempo maldosamente deforma, é a lista de profetas que os “pesquisadores” cortejam.
Entre as celebridades do sucesso está, por exemplo, Michael Milken, louvado e incensado. Na época, era o Midas americano, transformava em ouro tudo o que tocava. Ou assim parecia. Dez anos depois foi preso por fraude e extorsão. Pagou multa de 600 milhões de dólares para comprar a liberdade. Não muito, o suficiente para seguir velejando em ilhas do mediterrâneo e acendendo charutos com notas de cem dólares.
Um outro profeta era o presidente da Chrysler Corporation, recitando as virtudes do livre mercado. Em 2009, a corporação faliu e foi estatizada por Obama, que nela despejou o dinheiro do contribuinte. Os dirigentes, claro, foram premiados pelo insucesso.
Mas a cereja do bolo cabe à própria Merrill Lynch, autora do “estudo” e vendedora dos papéis de investimento podre. Faliu, mas o governo Obama mexeu os pauzinhos para que fosse comprada a preço simbólico pelo Bank of America. Seus dirigentes? Receberam os maiores bônus e prêmios de sua vida, uma remuneração adequada por terem destruído a firma e deixado no sufoco os pensionistas e contribuintes que tinham comprado a papelada sem valor.
A estória é divertida, vista de longe, não é? Mas é bom colocar as barbas de molho. As mesmas promessas mirabolantes são vendidas, agora, por merril-lynchianos repaginados, aqui no país tropical. Transformar saúde e educação em cupões e vouchers, em escolas charter, administradas por empresários “criativos”, substituir o “antiquado” SUS por modernos planos privados “baratinhos” e feitos na medida do freguês. É assim que começa, como as guerras norte-americanas. Como termina? Como as guerras deles.
Crédito da foto da página inicial: EBC
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