Ao tratar da inserção brasileira no comércio internacional nas últimas duas décadas, é impossível não observar a expansão de produtos com base em recursos naturais e/ou com baixa intensidade tecnológica na pauta exportadora brasileira configurando assim uma inserção baseada em commodities. Aqui trataremos esse fenômeno como um processo reprimarização dessa pauta, agudizado a partir de fins dos anos 1990, como resultante do papel do Brasil na divisão internacional do trabalho[1], Ciclo das Commodities[2], efeito-China e política macroeconômica[3].
De forma mais clara, das exportações[4] brasileiras realizadas em 2014, o complexo da soja teve participação de 14% dessas exportações; minérios de 12%, petróleo e combustíveis de 11,2%; material de transportes de 9,1%; carnes de 7,5%; químicos de 6,7%; produtos metalúrgicos de 6,4%; açúcar e etanol de 4,6%; máquinas e equipamentos de 3,9%; papel e celulose de 3,2%; café de 2,9%; calçados e couros de 1,9%; equipamentos elétricos de 1,8%; metais e pedras preciosas de 1,3%; e têxteis de 1,1% (MDIC, 2015).
Esses dados não refletem uma realidade pontual do ano em destaque, mas, como é visto na Figura 2, um processo contínuo da expansão de commodities na composição das exportações brasileiras a partir de fins dos anos 1990.
Esse ensaio apresenta uma crítica aos principais argumentos que se colocam das externalidades positivas desse fenômeno para o contexto macroeconômico brasileiro, pautando-se na discussão ampla que vem sendo realizada para compreender as mudanças estruturais da economia brasileira pós anos 1980, realçada, principalmente, nas construções teóricas que tratam da desindustrialização e especialização da estrutura produtiva brasileira[5]. Antes de cumprir esse objetivo, vamos qualificar melhor o fenômeno que caracterizamos como reprimarização das exportações brasileiras.
A participação brasileira no mercado internacional oscilou aproximadamente entre 0,9% a 1,3% no período, com destaque da expansão brasileira na participação internacional nos setores de produtos alimentícios e animais vivos (em especial os sub-setores de carnes e preparações de carnes; açúcar, preparações de açúcar e mel e preparações totais) e o setor de materiais em bruto, não comestíveis, exceto combustíveis (com destaque para os sub-setores sementes e frutos oleaginosos; minérios metálicos e sucata; ferro e aço; celulose e resíduos de papel).
Em 1997, o total das exportações brasileiras foram de US$ 52.985.810,94, com maiores participações: produtos alimentícios e animais vivos, 21,58%; materiais em bruto, não comestíveis, exceto combustíveis, 14,53%; artigos manufaturados, classificados pelo material, 21,17% e; máquinas e equipamentos de transportes, 21,48%. Em 2014, o total das exportações brasileiras foram de US$ 225.098.405,23, com participação de 22,79% dos produtos alimentícios e animais vivos; 28,64% dos materiais em bruto, não comestíveis, exceto combustíveis; 11,81% dos artigos manufaturados, classificados pelo material e; 14,49% de máquinas e equipamentos.
Os países com forte especialização da pauta exportadora em commodities, independentemente da estrutura tecnológica que envolve essa produção, ainda são países subdesenvolvidos. Ao contrário, os países desenvolvidos, mesmo que apresentem a mesma estrutura tecnológica na produção de commodities, não apresentam na sua pauta exportadora uma especialização de bens primários e sim de produtos com alta intensidade tecnológica.
Alguns autores utilizam a exemplificação de “casos de sucesso” em que a especialização na produção de commodities intensiva em recursos naturais foi capaz de promover o desenvolvimento industrial – ou seja, essa especialização por si só não é capaz de caracterizar o desenvolvimento, mesmo para a maioria dos defensores desse fenômeno.
Exemplificam, portanto, como os Estados Unidos a partir do desenvolvimento da mineração, a qual teria impulsionado a indústria de transformação, a partir de fins do século XIX; com o papel do conhecimento na formação da indústria sueca, a partir do setor de papel e celulose, também em fins do século XIX; o caso da Nokia, na Finlândia a partir do desenvolvimento da indústria madeireira de 1869; e a mineração australiana, a partir de 1970.
Apesar da grande divergência que há sobre o desenvolvimento desses países ter ocorrido realmente com base na especialização de bens primários, tornando-se essa especialização um motor de transição para a condição de país desenvolvido, não deveríamos pensar que o Brasil já teve sua fase de especialização, o chamado primário-exportador, o qual, por si só não foi capaz de possibilitar essa transição?
Em relação ao papel das inovações tecnológicas na produção de commodities brasileiras, os autores procuram apresentar a capacidade de estimular inovações tecnológicas que, por exemplo, a agricultura assumiu, tornando-a cada vez mais produtiva e competitiva internacionalmente.
No entanto, os autores pecam ao não compreender a distinção que deve ser ainda feita e entendida entre agricultura versus indústria, distinto do desenvolvimento de um setor de transformação industrial que está integrado a agricultura. Ainda em relação a essas inovações, quando se olha o caso brasileiro, deve-se compreender o predomínio que os grandes grupos econômicos de capital externo exercem sobre essa tecnologia (desenvolvimento de tecnologias para aumento de produtividade e produção de maquinários pesados), portanto, não gerando estímulos para a indústria brasileira, já que esse desenvolvimento tecnológico se processa fora do país e aqui acabamos por incorporar tecnologias cada vez mais avançadas e, pela lógica, poupadoras de mão de obra.
Para além da problemática de o setor produtor de commodities ser ou não intensivo em tecnologia e competitivo internacionalmente, é necessário entender o papel desse setor na economia subdesenvolvida que é a brasileira, ainda. A especialização é algo característico de uma estrutura subdesenvolvida e, no caso do Brasil, mesmo que a estruturas produtiva e de mercado consumidor interno sejam distintas da observada na fase primário-exportadora, isso não exime a economia brasileira das contradições que se originam dessa especialização, a qual ainda tem o caráter de dependência da demanda externa.
Notas
[1] Como destaca Carneiro (2012) nos trinta anos que correspondem ao período da nova ordem mundial, entre 1980 e 2010, os países em desenvolvido da Ásia cresceram a uma taxa cerca de três vezes superior aos países da América Latina e este diferencial se mantém nos anos 2000 a despeito do boom de preços das commodities. A nova ordem representou uma nova divisão internacional do trabalho e colocou o Brasil, e demais países da América Latina novamente na “caixa” dos países especializados na oferta de commodities intensivas em recursos naturais para exportação.
[2]Ver Fishlow (2012).
[3] O período pós anos 1990 é marcado por um desmantelamento do Estado Produtor que se construiu entre 1930-79, como determinante para expansão industrial no Brasil. Havia uma política coordenada para industrialização, uma política coordenada para um tipo de desenvolvimento nacional, mesmo que com suas respectivas falhas. Esse desmantelamento implicou em um tipo de desenvolvimento nacional não-coordenado, pautado em uma política de estabilização, que resultou em um processo de desindustrialização e com aprofundamento da participação do Brasil no mercado mundial com a oferta de bens primários intensivos em recursos naturais.
[4]Esses dados levam em consideração os agregados “Grupos de produtos” do Mdic (2015), diferente dos dados que são apresentados com base na Classificação Internacional (CUCI) adotada pelo Mdic (2016), o que permitiu a compatibilização de dados de comércio internacional e nacional da Unctad (2016), conforme apresentado nas Figuras desse artigo.
[5] Ver Feijó, Carvalho e Almeida (2005); Cano (2008); Cano (2014); Macedo (2010a); Macedo (2010b); Sampaio (2015).
Referências
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Crédito da foto: EBC
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