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Crise de hegemonia e de confiança

Pelo menos desde o fatídico junho de 2013, evidenciou-se, no Brasil, uma crise de hegemonia no sentido gramsciano, na qual as classes sociais encontram-se dissociadas dos partidos que as representam, de forma que não se sentem mais representadas por seus representantes.

Gramsci nos lembrava que nestas situações a classe dominante perdia seu consenso, ou seja, não sendo ‘dirigente’, mas apenas ‘dominante’, exercendo apenas a força coercitiva. Segundo ele, isto significaria uma separação das grandes massas de suas ideologias tradicionais e o abandono de suas crenças anteriores. “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”.

Nas últimas eleições presidenciais, mais que em outras, foi estabelecido um forte debate sobre a condução da política econômica, quando manifestos foram lançados por economistas de distintas visões, cada qual apoiando uma candidatura.

Um grupo mais liberal, apoiador da candidatura de Aécio Neves no segundo turno, criticava a condução da política econômica e defendia soluções baseadas no que Paul Krugman denominou de fada da confiança. Um grupo formado pelo que Kalecki chamou de “proeminentes e autointitulados ‘especialistas econômicos’ estreitamente ligados à banca e à indústria”, que acredita que o problema do emprego deriva da falta de confiança dos agentes.

Ainda que a tal fadinha não tenha mais a mesma reputação acadêmica de antes, principalmente depois dos impactos da austeridade na Europa, ela continua em voga entre muitos economistas brasileiros.

Por outro lado, economistas da vertente de pensamento mais desenvolvimentista defenderam a reeleição da presidente Dilma contra o “retorno às políticas econômicas do passado, que se voltavam apenas para uma parcela da população e, diante dos problemas, impunham à maioria o preço da recessão, do desemprego, do arrocho salarial e do corte dos investimentos sociais”.

Alguns meses depois do início do segundo mandato da petista é sintomático que muitos economistas tenham trocado de lado, os que antes criticavam a condução da política econômica do governo agora a aplaudem e aqueles que se postaram a favor da presidente adotam um posicionamento crítico à gestão da economia.

O ajuste fiscal do governo representa justamente a agenda derrotada nas urnas, o que provoca uma confusão em grande parte da população brasileira.

Não é só o governo que parece esquizofrênico, também a oposição de direita. Aqueles que diziam que o trabalhador não seria impactado com as medidas de rearranjo na economia adotam uma estratégia para economia que passa pela retirada de direitos. Em contrapartida, aqueles que defendiam exatamente este programa nas eleições agora criticam o governo por fazer o que disseram que fariam.

Os únicos que mantêm alguma coerência são os absolutamente minoritários representantes da oposição de esquerda (embora contem com um apoio, predominantemente retórico, de alguns deputados da base governista). Enfim, como ninguém adota um discurso que represente aqueles que os escolheram como representantes, reforça-se a crise de representação.

Setores governistas se alarmam com o 9% de popularidade da presidente Dilma e a atribuem a campanha diuturna da mídia contra o governo e aos escândalos de corrupção. Assustam-se com a possível ascensão de setores fascistas que historicamente saem do armário em toda crise econômica.

Ignoram o óbvio, o povo não está satisfeito com os rumos do país. Engana-se quem acredita que a falta de popularidade decorre dos escândalos de corrupção. Sua causa reside quase que exclusivamente na implementação da agenda rejeitada nas urnas.

Este quadro fomenta o golpismo de todas as naturezas. E quem mais se assanha são aqueles que sistematicamente sabotam o desenvolvimento brasileiro, as elites paulistas. Assim o fizeram na revolta de 1932, que insistem em chamar de revolução constitucionalista, mas, na prática, uma contrarrevolução malsucedida. O suicídio de Vargas atrasou seu sucesso na segunda tentativa, nos anos 1950. Foram exitosos no golpe de 1964 com o fundamental apoio do governo de São Paulo à derrubada de João Goulart.

Quando Fernando Henrique Cardoso assumiu a Presidência e prometeu encerrar a Era Vargas, foi a ascensão destes setores ao poder pela via democrática. Isto permitiu uma desestruturação sem precedentes do Estado Brasileiro associado ao velho projeto derrotado em 1932. Um projeto que preconizava uma inserção subalterna do país na divisão internacional do trabalho sob hegemonia das elites primário-exportadoras e financeiras de São Paulo.

A ascensão de Lula e do PT construiu uma conciliação entre os interesses de entreguistas de São Paulo e uma estratégia mínima de desenvolvimento com inclusão social. Entretanto, José Luís Fiori nos lembra que a matriz teórico-ideológica originária do PT e do PSDB é mais ou menos a mesma: “paulista e democrática, mas, ao mesmo tempo, antiestatista, antinacionalista, antipopulista, e em última instância, também, antidesenvolvimentista”.

A tentativa malsucedida do governo Dilma de introduzir uma trajetória alternativa de desenvolvimento em seu primeiro mandato rompeu o pacto, acirrou os anseios golpistas desta elite e fez o governo se ajoelhar ao ajuste fiscal na ânsia de uma reconciliação que não veio. Ao contrário, acirrou-se a crise de hegemonia.

Neste ponto, Carlos Nelson Coutinho apontava que as crises de hegemonia poderiam apresentar diferentes desenlaces. Num curto prazo, a classe dominante manteria o seu status quo por meio da coerção e em médio prazo poderia ocorrer uma recomposição de sua hegemonia. Entretanto, caso as classes dominadas consigam ampliar a aliança, evitando o sectarismo, elas poderiam subverter a ordem e assumir como nova classe dominante.

Entretanto, com Estado e sociedade civil bastante organizados de nada adianta a guerra de movimento das estratégias revolucionárias clássicas, é preciso resgatar a guerra de posição de forma a cercar e sitiar o Estado burguês com uma contra-hegemonia para construção de um novo Brasil.

Esta estratégia passa necessariamente pela compreensão de uma sinalização pelo governo de uma inflexão na política econômica e ruptura com a agenda única do ajuste fiscal. Resgata-se, assim, a confiança do povo (e não dos mercados) e evita a trajetória, que parece iminente, de derrubada do governo.

Crédito da foto da página inicial: EBC

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