Não há consensos em crises. Enquanto alguns buscam formas de tapar as fissuras do sistema, outros aproveitam para colocar em evidência essas rachaduras e provocar com isso verdadeiras rupturas na forma de pensar o que ainda mantém esse sistema em pé.
O início dessa crise de 2020, que possui inúmeras dimensões, deixa claro que ainda há espaço para disputas de como conduzir da forma mais acertada os efeitos da Pandemia COVID-19, uma vez que o impacto da doença é profundamente moldado por decisões tomadas por governos individuais.
Uma das disputas que se abre na agenda pública nesse momento é em torno de um embate, que não é novo, principalmente em situações de crise: o confronto clássico entre keynesianos e liberais. Logo, nos dois polos do embate, verifica-se um mesmo propósito: salvar a economia de mercado. A linha liberal defende que o próprio mecanismo de mercado encaminha uma saída para a crise quando é livre de regulações, já a linha keynesiana defende o oposto, de que nesse momento o sistema precisa de intervenção estatal, para coordenar as decisões de produção e gastos nesse momento de grandes incertezas, para que o mercado volte a funcionar na sua normalidade.
Entretanto, essas distintas estratégias das escolas econômicas camuflam um consenso, pois ambas desejam apenas tapar as fissuras do sistema. Um grande autor que nesses momentos nos ajuda a colocar em evidências as rachaduras do sistema é Karl Polanyi, economista que defendia a necessidade de se romper com o modo de pensar, arraigado desde o desenvolvimento institucional do mercado, que provoca falácias economicistas na mentalidade da sociedade. Fomos instruídos a acreditar que é natural pensar que o que nos move em nossa vida cotidiana são motivações materiais.
A falácia economicista que equipara a forma específica de mercado com a economia humana, como se fossem sinônimos, é um erro lógico, um mal-entendido, resultante da definição de economia como uma finalidade de maximizar os ganhos minimizando os meios, através das melhores escolhas. Essa definição de economia, tão influente em diversas escolas de pensamento econômico e social parte de premissas falsas, tanto porque reduz o problema econômico a um problema de escassez – que passa a valer “racionalmente” para todas as relações meios-fins – como também por naturalizar e universalizar as motivações materiais.
Essas ideias nascem historicamente da subordinação do sistema econômico à lógica do mercado formador de preço, engendrada pelo Estado através da instituição dos mercados de terra, trabalho e dinheiro, fazendo com que tomemos como “naturais” instituições que foram criadas apenas no século 19.
É por essa razão que a nossa economia, que pensamos ser a única possível, subordinou a sociedade, na medida em que o mercado enquanto instituição foi se tornando cada vez mais autônomo, com mecanismos “invisíveis” e “naturais” de controle do corpo social.
As forças fisiológicas e psicológicas não são movidas pelo anseio de proporcionar um excedente econômico para si mesmas. Os excedentes não são produzidos visando a uma preocupação com a própria existência, são produzidos apenas para a continuidade do próprio mecanismo de mercado. Tudo que nos move enquanto homens e mulheres, tanto o ódio, orgulho, amor, fome, ganhos, nunca são razões econômicas em si mesmas.
Essa contribuição de Karl Polanyi é pertinente no momento atual, pois o problema central que nos desafia é que não estamos apenas diante de uma crise econômica/social resultante de uma pandemia nunca vista nas últimas décadas.
Nosso problema não é apenas que tanto a oferta agregada como a demanda agregada são insuficientes para gerar emprego e renda para os agentes econômicos. Nosso problema é ainda maior, pois a civilização industrial tem aniquilado a humanidade com a mercantilização das nossas crenças, ideais, desejos, objetivos de vida e tudo que caracteriza a essência e potência do que é o sujeito humano.
Imagino que alguns economistas poderiam interromper minhas palavras para dizer que o importante agora é minimizar o prejuízo da crise e que devemos concentrar os esforços para salvar o maior número de vidas nesse contexto caótico. Tendo a concordar que conjunturalmente devemos reivindicar Keynes para “salvar” a economia de mercado, já que entendo que isso evitaria de fato uma maior tragédia para um número significativo de pessoas no presente momento.
Entretanto, gostaria de interromper esse argumento convincente para afirmar que a finalidade de nossa economia atual não é salvar vidas, é salvar o próprio sistema de mercado, que não deve ser visto como uma instituição inevitavelmente infalível.
É acessível identificar no discurso dos principais líderes políticos mundiais a presença de que a nossa maior preocupação nesse momento de crise deve ser não medir esforços para salvar o maior número vidas e que para isso devemos salvar o próprio mercado de um verdadeiro colapso. Inúmeros governos já estão em processo de aprovação de valores monetários sem precedentes para enfrentar o impacto da pandemia do novo coronavírus.
O parlamento alemão já aprovou 1,1 trilhão de euros, já nos EUA o montante será de 2 trilhões de dólares. Apenas para efeito de comparação de ordem de grandeza, o PIB somado de toda a África Subsaariana, que engloba quase um bilhão de habitantes distribuídos em 48 países, é de 1,7 trilhão de dólares.
“Salvar vidas” e “salvar o mercado” têm sido usados como sinônimo para boa parte dos líderes políticos e “líderes” empresariais. Em certo sentido e circunstância possuem razão, pois uma crise do mercado afeta os seres humanos de modo avassalador, já que foram reduzidos em uma mercadoria que produz e consome outras mercadorias.
Dessa forma, pelas leis do mercado a que nossa sociedade está submetida, o melhor que temos que fazer é salvar o próprio mercado. Porém, é bom lembrar que podemos construir outras leis, já que estas, por mais que busquem nos convencer do contrário, não são naturais. Entretanto, é importante não nos deixarmos enganar que salvar vidas não é a finalidade central do sistema de mercado, mas é utilizada em demasia nos discursos, por uma espécie de estranho pacto no qual ninguém acredita, mas que ninguém nega.
Um presidente de um banco no Brasil furou essa associação tão convincente, dizendo recentemente, em argumento contrário à estratégia da quarentena, que as vidas não possuem valor infinito. Essa fala gerou mal-estar, claro, pois algumas coisas são condenadas mais no discurso do que na realidade prática.
Entretanto, a questão central é que é o próprio mercado que tem valor infinito e a particularidade dessa pandemia é que a necessidade do isolamento social interrompe de modo generalizado grande parcela da produção e consumo. Outras doenças, enfermidades, injustiças e mortes nunca são tradadas com vultosa atenção se não atrapalham o processo de acumulação do mercado. Muitas vezes ocorre até o contrário, uma vez que certas doenças, por exemplo, contribuem para o crescimento do PIB, pois criam novas ofertas/demandas no mercado da saúde.
Na verdade, é mais comum as vicissitudes ou tragédias humanas ou até mesmo a desigualdade estrutural contribuírem de alguma forma para o crescimento do mercado do que o inverso. Quanto maior a desigualdade, tanto no acesso à saúde, educação, renda e outros “direitos”, maiores serão os nichos ou novas segmentações de mercado, favorecendo a diferenciação e ampliação dos preços, potencializando os lucros.
O mercado autorregulável é dinâmico e está cada vez mais em todos os lugares. As políticas neoliberais pós anos 1980 contribuíram para que os países do globo abrissem seus mercados, comerciais, produtivos e financeiros, elevando a vulnerabilidade internacional e ampliando o poder dessa instituição frente a uma redução da soberania do Estado Democrático como ente capaz de decidir os rumos econômicos e sociais de cada nação, corroborando com as crises das democracias.
Mas o mercado está ainda em outros lugares: nas novas pautas políticas, na relação entre Igrejas e fiéis e na construção social dos gostos culturais. O mercado também adentrou no corpo e na mente, fazendo com que o modo de vida se emaranhasse em seus mecanismos de tal modo que todo o cotidiano da vida prática, além das próprias relações afetivas e relação com o próprio corpo se moldassem a partir da estrutura de maximização utilitária- minimização dos custos.
As rachaduras do sistema vão apresentando os seus sinais e corre-se o risco de serem vistas apenas como decorações com as quais as pessoas vão se ambientando lentamente. Nesse momento, é importante criarmos um consenso em questões conjunturais, pois seria inconsequente não criarmos políticas econômicas e redes de proteção social que garantissem a sobrevivência digna para toda a população e, nesse sentido, as políticas keynesianas são fundamentais.
Entretanto, é urgente a construção em nosso horizonte de um novo rumo para a civilização e para isso é fundamental descortinarmos a mentalidade de mercado para identificarmos os perigosos consensos que existem. Devemos criar uma economia que pense a subsistência humana de outra forma, que possibilite uma sociedade que não enxergue a terra e o trabalho como se tivessem surgido naturalmente para a compra e venda, que não seja submetida a uma ideia de que o preço justo ou “eficiente” é o que equilibra a oferta e demanda da natureza e do homem devidamente mercantilizados.
É hora de aproveitarmos as fissuras do sistema para revelar que alguns consensos escondem que o mercado ainda pode triturar ainda mais o tecido social da humanidade.
Crédito da foto da página inicial: Rovena Rosa/Agência Brasil
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