Publicado originalmente no MmtBrasil
Desde 1974, o dia 05 de junho é celebrado como o dia mundial do meio ambiente. A data, estabelecida pela ONU, visa a criar conscientização acerca das emergências ambientais, para, de acordo com a organização, inspirar a mudança positiva, levando consumidores, empresas e governos a construírem um futuro mais verde[i]. Grande parte dessa esperança de mudança, senão toda ela está depositada na ideia de que a disseminação de informação resultará na nossa evolução moral individual, o que dará luz a novas preferências, refletidas em consumo, processos produtivos e produtos mais sustentáveis.
Certamente, essa é a visão mais difundida sobre um possível futuro sustentável, a que aguarda a mudança das consciências e da tecnologia, materializada em novas empresas e novos produtos. O senso comum não poderia estar formatado de outro modo, pois essa é precisamente a promessa capitalista para a resolução de todos os nossos problemas, desde o sexismo e o racismo até o aquecimento global: o consumo.
O consumidor, supostamente, teria o poder de escolher produtos ecologicamente corretos, rejeitar os demais, penalizar empresas com processos produtivos danosos, social e ambientalmente, e recompensar as que atuassem de forma ética e inclusiva. E também teria todo o poder de fazer o oposto, caso não valorasse positivamente tais coisas, já que na arena do mercado é onde o indivíduo exerceria a democracia real, revelando suas preferências pré-existentes e comandando o processo produtivo.
Essa definição, carregada de ideologia e distante da realidade, retrata o consumidor como o grande soberano da economia, capaz de praticar sua cidadania ativamente por meio de escolhas cotidianas triviais. Uma vez que é o mercado, com a mediação do sistema de preços, que conferiria esse poder democrático, tal estado de coisas seria atingido pela mínima interferência estatal no consumo e na produção, ou seja, pela ampliação da chamada liberdade negativa.
Esse é um importante pilar de sustentação do neoliberalismo, mas que surge já no liberalismo clássico, e que hoje passa de forma pouco questionada, pela naturalização de tais premissas. São raras as mudanças que estabelecem regras mais rígidas ou específicas para o consumo e a produção, como, por exemplo, a recente legislação aprovada pelo parlamento europeu, contra a obsolescência programada, que obriga empresas a garantirem o reparo de eletrodomésticos por dez anos[ii].
De maneira geral, é tido como grande limitação à liberdade, e sinal de autoritarismo, a restrição de processos produtivos e a proibição de produtos danosos, justamente porque os conceitos de liberdade e de felicidade hegemonizados pelo liberalismo estão atrelados ao número de bens disponíveis na economia, e porque a regulação afetaria o sistema de preços, impedindo o alcance de um metafísico equilíbrio ótimo, que é dado pelo mercado. Não importa que tal conceito estreito de liberdade confira restrição à liberdade de, por exemplo, usufruir ar e água limpos, consumir alimentos sem veneno e coexistir de forma harmônica com os ecossistemas. Não importa também que, muito antes de consumidores, sejamos trabalhadores, desprovidos dos meios de produção e, portanto, cerceados na estreita liberdade propagandeada e, por vezes, até mesmo da liberdade de sobreviver.
De fato, a definição do conceito de soberania do consumidor é confusa, mas o é justamente porque na concepção da economia liberal todos somos simultaneamente simples demandantes e ofertantes, que atingimos o melhor dos mundos ao buscarmos nosso interesse particular, sem nenhum tipo de coordenação para isso. Assim, o conceito é apresentado de forma ambígua desde a sua concepção, tanto quanto uma soberania exercida nas próprias escolhas, ou seja, sem que o Estado ou um terceiro decida pelo consumidor, mas também, como a soberania em comandar o processo produtivo, que resulta justamente disso. Ou seja, pelas premissas liberais, a segunda interpretação decorre como uma consequência surpreendentemente perfeita da primeira[iii].
O conceito também é sutilmente distinto, porém central, para as teorias do liberalismo clássico, da escola austríaca e dos neoclássicos, as quais se coadunam e se reforçam na justificação do neoliberalismo, momento histórico em que a soberania do consumidor adquire sua função de legitimação política mais evidente (FELLNER & SPASH, 2014).
Sua origem é atribuída ao economista liberal clássico William Hutt, que era também próximo da escola austríaca, e que a define como a “situação na qual o cidadão não delega às instituições políticas, para usos autoritários, o poder que ele pode exercer socialmente por meio da demanda, ou da abstinência dela”[iv]. Assim, para os clássicos, a suposta soberania deriva de um argumento político. Ela é instrumento de estabilidade social, uma vez que, apartados do poder na produção, as escolhas experienciadas pelo consumo seriam suficientes para suprimir questionamentos acerca das relações sociais e de classe.
Para os neoclássicos, originários da revolução marginalista do fim do século 19, a teoria do valor utilidade substituiu a teoria do valor trabalho, apagando no papel as relações inerentemente conflituosas e políticas da realidade, e tornando o consumo um elemento central da teoria. Por um procedimento ideológico, a economia transforma-se em ilusória ciência exata, onde firmas e indivíduos operam como átomos que se encontram momentaneamente para revelar preferências pré-existentes e estáveis.
Aqui, as preferências são tanto instrumento para o alcance quanto para a valoração de uma etérea eficiência alocativa, que é tautológica, pois resulta das premissas internas da teoria, mas não pode ser verificada na realidade. A única ameaça a essa eficiência seria o poder de monopólio, que deve ser combatido pela intervenção estatal.
Por sua vez, para os austríacos, o conceito é um ideal, uma premissa legitimadora de diversos axiomas e proposições políticas. Sob o funcionamento de uma economia de mercado ‘pura’, o empreendedor sempre irá agir guiado pelo interesse do consumidor. Qualquer coisa que fuja disso é creditada ao fato de que os mecanismos de mercado estão sendo impedidos de agir de forma plena.
Essa retórica busca retirar juízo de valor da ação do Estado, que, novamente, estaria autorizado a intervir apenas para possibilitar o funcionamento do livre mercado e da concorrência. Isso resulta no já conhecido argumento falacioso e casuístico de que qualquer resultado indesejado decorre do fato de que os mercados foram impedidos de agir na sua referida plenitude[v].
Verifica-se assim que o conceito de soberania do consumo é central para a sustentação da retórica neoliberal e, igualmente, para propostas de desenvolvimento sustentável, que impedem respostas à altura dos nossos problemas sociais e ambientais, uma vez que visam justamente à manutenção do mesmo sistema que os causa. A aceitação do conceito promove políticas superficiais e paliativas, ou até mesmo danosas, como o aumento de consumo, baseado em produtos verdes, ou a mercantilização e financeirização da natureza, que intensificam a apropriação de territórios e recursos públicos para a compensação ambiental.
Por outro lado, as finanças funcionais e a abordagem da MMT (Teoria Monetária Moderna) abrem possibilidades excepcionais para a influência popular na produção, notadamente, por meio do programa de garantia de empregos. A existência de um estoque regulador de empregos, mantido pelo Estado, é elemento macroeconômico fundamental na teoria, pois subverte a lógica neoliberal e neoclássica de que a inflação deve ser combatida com desemprego e propõe justamente o pleno emprego como forma de estabilizar preços.
O salário mínimo dos empregos estatais agiria como uma âncora nominal, e ao mesmo tempo, os trabalhos públicos poderiam promover aumento de produtos, aliviando a inflação pelo lado da oferta. Além disso, o programa é uma política social, pois eliminaria o desemprego e estabeleceria condições de trabalho e de salário minimamente aceitáveis para a sociedade.
Por fim, outra virtude seria a possibilidade de sair do paradigma da soberania do consumo e focar no processo que realmente importa, e do qual os trabalhadores estão totalmente alijados de poder, o da produção. Por meio da definição comunitária de serviços e produtos desejáveis e da construção de processos produtivos socialmente e ambientalmente justos, as pessoas poderão ter voz, não por meio de consumo e dos preços, mas enquanto cidadãs e trabalhadoras.
Sabemos, no entanto, que essa é apenas a teoria que pode embasar uma mudança profunda, mas que tende a ser politicamente inviabilizada por quem se beneficia de exércitos industriais de reserva. De qualquer modo, retirar as falácias e mistificações do caminho é imprescindível para termos ciência do que nos é negado por opção política.
Crédito da foto da página inicial: Fernando Tatagiba/ICMBio/Agência Brasil
[i] WORLD Environment Day. About World Environment Day. Disponível em: https://www.worldenvironmentday.global/about-world-environment-day.
[ii] INDEPENDENT. New EU ‘right to repair’ laws require technology to last for a decade. 01 de março de 2021. Disponível em: https://www.independent.co.uk/life-style/gadgets-and-tech/eu-right-repair-technology-decade-b1809408.html.
[iii] Em LERNER (1972), pai das finanças funcionais, que curiosamente, defendia, a soberania do consumidor como uma expressão democrática, com base na teoria neoclássica, as duas definições são conectadas ao longo do texto. Já no primeiro parágrafo, ele nos apresenta a primeira delas: “A ideia básica da soberania do consumidor é na realidade muito simples: providencie para que todos tenham o que preferirem, sempre que isso não envolva sacrifício extra a nenhuma outra pessoa” (LERNER, 1972, p. 1, tradução própria).
[iv] (HUTT, 1936, p. 257, apud FELLNER & SPASH, 2014)
[v] Sobre esse tipo de falácia do liberalismo e na definição casuística de conceitos, redigi o artigo “Austeridade, uma concha vazia”, disponível em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/austeridade-uma-concha-vazia/
REFERÊNCIAS
FELLNER, Wolfgang; SPASH, Clive. The Illusion of Consumer Sovereignity in Economic and Neoliberal Thought. SRE Discussion, 2014/02. Institute for the Environment and Regional Development.
MITCHELL, Bill. MMT – lacks a political economy? Bill Mitchell – Modern Monetary Theory (blog), 14 de outubro de 2014. Disponível em: http://bilbo.economicoutlook.net/blog/?p=29232.
LERNER, Abba P. The Economics and Politics of Consumer Sovereignty. The American Economic Review, 01 de março de 1972.
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