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Crack, Haddad e o jornalismo multimídia da Folha de S. Paulo

Publicado no Manchetômetro em 23-5-2015


Infelizmente, a campanha eleitoral para a prefeitura de São Paulo já começou, pelo menos nas páginas da Folha de S. Paulo. O tratamento intensamente desfavorável do Governo, de Dilma Rousseff e do PT, continuam depois da eleição, como revelam as análises do período pós-eleitoral recentemente publicadas pelo MANCHETÔMETRO. Mas o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, provável candidato à reeleição pelo PT, vai se tornando alvo preferencial de práticas jornalísticas para lá de questionáveis por parte da Folha.

“4 em cada 10 desistem de ação anticrack de Haddad”. Esta é a manchete do caderno Cotidiano do jornal paulista de 17/05/2015. Ela foi publicada tanto na versão impressa do jornal quando na virtual, e também contou com divulgação na página oficial da Folha no Facebook. Analisamos aqui de maneira comparativa o conjunto de textos publicados pela Folha nessas três mídias.

Facebook

Comecemos pelas redes sociais. O post que aparece na página do jornal no Facebook é muito econômico: um título, uma foto e uma legenda para a foto. O título é ligeiramente diferente daquele do jornal impresso e traz o nome do prefeito: Em SP, 4 em cada 10 desistem de ação anticrack de Haddad. A imagem escolhida para ilustrar o post é bastante comovente: um close-up do rosto consternado de um homem negro, suposto usuário da droga, de olhar perturbado e marejado. Na legenda lê-se: “’Tem que falar pro prefeito resolver essa ‘fita’ aí, senhor’. Olhos baixos, Paulo (nome fictício), 31, reclama”.

Essa peça econômica de comunicação tenta perpetrar duas ações: mostrar que o programa Braços Abertos da prefeitura de São Paulo é um fracasso e que o prefeito deve ser responsabilizado por esse resultado. Ademais, o discurso direto, a citação, sugere que a frase foi dita pelo homem anônimo da foto.

Versão digital

O post do Facebook contém um link que direciona o usuário para a matéria na versão online do jornal, de autoria de Giba Bergamim Jr. e Emilio Sant’Anna. O título é o mesmo da chamada do Facebook. A notícia começa com a frase citada acima. Logo em seguida, o texto informa que Paulo é um dos usuários que deixou o programa devido a problemas de saúde que o impedem de realizar o trabalho de varredor de ruas, que é a contrapartida pelo auxílio financeiro. A reportagem também informa que Paulo revelou ter diminuído o consumo de crack de dez para duas pedras diariamente. Tendo em vista que o programa Braços Abertos se baseia na redução de danos, em que o dependente diminui o consumo gradativamente, conforme revela a própria matéria, seria possível dizer que houve fracasso nesse caso?

Informa a Folha que, de acordo com a prefeitura, “aqueles que abandonaram a ação migraram para outros tipos de acolhimento ou voltaram para suas famílias. Não se sabe, porém, quantos deles já voltaram às ruas. Especialistas ouvidos pela Folha dizem que o índice de desistência segue o padrão dos demais tratamentos”. Permanece a dúvida, contudo: seria adequado tratar os casos de migração ou de reaproximação familiar como “desistência”? Mas os autores do texto não estão interessados em esclarecer questão tão importante, preferindo retratar todos os casos como abandono.

A reportagem apresenta então o posicionamento do coordenador de treinamento de agentes da prefeitura, o psiquiatra Dartiu Xavier, em defesa do programa Braços Abertos, que cita programas similares de sucesso em outras metrópoles mundiais. Em contraposição, expõe também a fala do psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador do projeto de recuperação oferecido pelo governo estadual, o Recomeço. Tal programa proporciona tratamento antagônico ao programa da prefeitura, priorizando a abstinência e utilizando como um de seus métodos a polêmica internação compulsória, prática condenada pela OMS.

É interessante notar que apesar de possibilitar que o representante do Governo Estadual apresente sua crítica ao Braços Abertos, os repórteres não exibem dados sobre a eficácia do Recomeço, o que possibilitaria uma comparação mais completa por parte do leitor, ou pelo menos um tratamento mais honesto por parte do jornal.

A matéria continua a dar detalhes sobre o programa Braços Abertos: segundo a prefeitura, 41 dos dependentes desistentes voltaram para suas famílias e 65 foram afastados em razão de problemas de saúde ou licença maternidade. Ou seja, deixaram o programa mas, a princípio, não se encontram na situação de desamparo em que estavam anteriormente.

Se retirarmos esses usuários da lista de “desistentes”, a taxa de abandono do programa cai para 30%; ou, vista de maneira oposta à da Folha: a taxa de eficácia aumenta para 70%. Há ainda outros dados impressionantes que a matéria cita a partir de documento da Prefeitura de São Paulo: algo entre 70% e 80% dos participantes relataram ter reduzido o consumo da droga e a aglomeração de dependentes na Cracolândia diminuiu 80%.

É interessante notar que na versão digital da reportagem o título ferino acaba se contrastando com o corpo do texto. Enquanto ele repete a dupla acusação de fracasso e culpabilidade de Haddad, o texto em si acaba apontando vários dados da política que podem muito bem ser interpretados de maneira favorável por um leitor de boa vontade. O título declara que o copo está 40% vazio, mas o texto mostra que ele pode estar até 70% cheio, e que o programa está fazendo uma diferença substantiva no tratamento de um problema social de alta complexidade como o consumo de crack.

Jornal Impresso

A cobertura no jornal impresso é mais ampla, ocupa a capa do caderno Cotidiano e mais duas páginas internas, B3 e B4. Na capa do caderno a matéria começa em tom bem mais enviesado contra Haddad. A manchete é idêntica à da notícia do site, que cita o nome do prefeito. Logo abaixo lê-se o subtítulo “Desde janeiro do ano passado, 344 de 798 viciados deixaram o Braços Abertos”. Ao lado da manchete, a mesma foto dramática do usuário usada no site e no Facebook. Mas agora a foto traz uma legenda explicativa identificando a pessoa, informação ausente nas outras mídias: “Eduardo Gonzaga, de 34 anos, que tenta abandonar o vício do crack”.

Mas foquemos ao jogo dos títulos. Se não bastasse a estratégia de apresentação “copo 40% vazio” do título repetido, o subtítulo reprisa a mesma informação, só que com números absolutos “344 de 798”. O autor dessa façanha jornalística, editor ou repórter, deve imaginar que os leitores da Folha não sabem calcular porcentagens. A estratégia de reiteração da retórica “copo 40% vazio”, como que para inculcar pela repetição, é explícita.

Abaixo desse conjunto de títulos ainda há um segundo subtítulo, no topo do corpo do texto: “Projeto da prefeitura prevê renda e moradia a usuários; gestão afirma que há migração para outros programas”. Essas seriam informações mais despidas de viés político, mas ao se combinarem à overture que acabamos de descrever elas assumem outra feição. Ora, os dois títulos redundantes e a fotografia dão a entender claramente que o programa não funciona bem e que a culpa é de Haddad. A informação de que os usuários recebem renda e moradia, nesse contexto, adquire o sentido velado de que se trata de um benefício inútil e injusto para pessoas que não merecem; no mínimo um desperdício de dinheiro público.

O corpo do texto abre com a frase de Paulo, apresentado também como dependente, que vimos no Facebook: “Tem que falar para o prefeito resolver essa fita aí”. Mais uma alusão ao prefeito que acabou de ser citado no título da matéria, o que mostra a insistência no método reiterativo. Há outro detalhe que apreendemos ao comparar as versões da notícia nas diferentes mídias do Grupo Folha, coisa que os leitores raramente fazem. É só na reportagem do jornal que podemos constar que a frase “Tem que falar para o prefeito resolver essa fita aí” não é de autoria do homem da foto, como o post do Facebook faz crer. Apenas aqui fica claro que o homem apresentado na foto não é Paulo, aquele que pede que o prefeito “resolva essa fita”, mas outra pessoa de nome Eduardo Gonzaga, de 34 anos.

Depois da frase de Paulo, a notícia segue relatando que ele abandonou o programa devido a duas hérnias que não lhe permitiam fazer o trabalho público que é a contrapartida para a ajuda financeira oferecida pelo programa. Em seguida o leitor é informado novamente da taxa e do número absoluto de desistências, mais uma reiteração do enquadramento “40% do copo vazio”. De passagem o texto declara que a prefeitura não tem controle sobre o número de desistentes que “voltaram às ruas”, mais um ponto negativo para o programa.

A matéria então apresenta o projeto do Governo do Estado, Recomeço, cuja abordagem ao tratamento inclui isolamento em hospitais e comunidades terapêuticas, como antagônico ao Braços Abertos. Para finalizar, à semelhança da matéria do site, o texto da capa do caderno Cotidiano apresenta declarações do coordenador de treinamento de agentes do programa da prefeitura e, logo em seguida, fecha a matéria com as palavras de Ronaldo Laranjeira, coordenador do projeto estadual.

Laranjeira diz que o programa da prefeitura não “entende o que é dependência” e que o usuário que permanece nas ruas continua no vício. Assim, diferentemente do texto da internet, que começa com um viés forte contra o prefeito do PT no título e fotografia mas evolui para uma reportagem mais equilibrada sobre o programa, o texto do jornal é enviesado do começo ao fim, começando com ataques e alusões negativas contra Haddad e o programa e fechando com a palavra de um antagonista, nas palavras do próprio jornal, um agente político do PSDB.

Na página B3 do caderno a notícia toma todo o espaço de texto jornalístico, que ali compete com um enorme anúncio das casas Bahia. A tônica aqui é reportar o que a administração municipal tem a dizer do programa, intenção que se explicita na própria manchete: “Ação na Cracolândia é complexa, diz gestão”. A essa imagem de complexidade, de sabor inegavelmente cético, o subtítulo informa: “Prefeitura afirma que não considera índices de desistência como critério para medir a efetividade do Braços Abertos”. Há aqui o estabelecimento de uma tensão entre as duas páginas, capa e B3. A capa insiste em retratar o índice e o número absoluto de desistências como algo digno de nota, de notícia, para dizer o mínimo, mas este subtítulo informa que a prefeitura pensa diferente.

No topo da página temos infográficos com os números do Braços Abertos e um mapa da Cracolândia, e o resto da notícia tem tom descritivo e dá espaço para os dados do programa fornecidos pela prefeitura e declarações de seus agentes, ressalva feita ao único subtítulo do texto, no topo dos três parágrafos finais contendo declarações de Dartiu Xavier: “Utopia”. Ao lermos as declarações do psiquiatra, contudo, concluímos que tal subtítulo só pode ser produto de uma interpretação incompetente ou de má fé. Ele declara: “É utópico pensar que vai acabar a Cracolândia. O que podemos é ter medidas para dar a essa população algum alívio para não viver uma situação de tanta miséria e exclusão”. Ou seja, seu argumento é rigorosamente anti-utópico, assim como a filosofia do programa. Onde estaria, portanto, a “Utopia”, grafada entre aspas, em suas declarações?

Na página B4 o enfoque é outro. Os três quartos superiores da página são tomados por uma grande reportagem com várias fotos intitulada: Cracolândia, 20. Trata-se de uma história da Cracolândia de São Paulo recheada de narrativas de vida individuais de usuários onde a tônica é a marginalidade e a destituição. São crianças e adultos, mães de doze filhos, presidiários, prostitutas, etc.; todos viciados. E nas fotos ilustrativas, todos negros.

Trabalhos acadêmicos no Brasil e no exterior já mostraram que a associação do crack com a pobreza não é demograficamente verificável, mas alguns desses trabalhos também relevam que o noticiário na grande mídia tende a privilegiar essa associação. Medir o efeito que notícias desse tipo têm sobre o leitorado majoritariamente branco, de classe média e politicamente conservador da Folha de S. Paulo seria tarefa de um estudo muito interessante de recepção. Como não podemos fazer isso agora, só nos resta imaginar. De qualquer maneira, no que toca a questão política o viés dessas notícias, nos três meios estudados, é claramente contrário à prefeitura de Fernando Haddad.

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