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Covid-19: Salvar vidas e garantir direitos da população negra

São diversos os posicionamentos e manifestos propondo saídas e alternativas para o enfrentamento do grave momento que estamos vivendo no Brasil e no mundo.

Um dos mais importantes é a “Plataforma emergencial para o enfrentamento da pandemia do Coronavírus e da crise brasileira”, construído pelas Frentes Brasil Popular e Povo sem Medo, partidos políticos do campo democrático e popular, centrais sindicais, movimentos populares e estudantis, organizações democráticas da sociedade brasileira, pela sua densidade propositiva, política e construção unitária.

Além de seu caráter emergencial e específico – o combate ao Coronavírus – essa Plataforma amplia o debate sobre a necessidade de um projeto em condições de promover, de fato, reformas estruturais e as transformações necessárias na sociedade e na vida dos brasileiros e brasileiras.

A CONEN – Coordenação Nacional de Entidades Negras, contribuiu com a elaboração e assina essa Plataforma. Entretanto, com esse documento, chama a atenção dos signatários da Plataforma sobre quem são os principais afetados no Brasil pelo Coronavírus e suas consequências econômicas.

Para a CONEN e o movimento negro brasileiro, apesar dos nossos avanços e conquistas recentes, que o Governo Bolsonaro tenta destruir, continuamos vivendo em um país onde as desigualdades raciais, regionais, de classe, de gênero e geracionais, ainda são imensas. O Brasil continua sendo um país muito desigual!

Em todas as áreas da vida social os negros e negras continuam subjugados e tratados como cidadãos e cidadãs de segunda categoria. Existe também uma enormidade de números que comprovam a persistência dessa desigualdade.

Essa situação injusta e cruel é produto da história do capitalismo combinado com a escravidão que durou quase quatro séculos no Brasil, que deixou marcas profundas em nosso convívio social, mas é também resultado da ausência de projetos e políticas públicas voltadas para superá-la.

O reconhecimento de que a pobreza atinge preferencialmente a parcela negra da população, como decorrência da desigualdade de gênero e raça estruturais na sociedade brasileira e da omissão do poder público, aponta a necessidade de que o Estado incorpore nas políticas públicas direcionadas à população de baixa renda a perspectiva de que há diferenças de tratamento de oportunidades entre estes, em prejuízo para homens e mulheres negras.

Embora há décadas o Movimento Negro denuncie o racismo e proponha políticas para sua superação, somente uma política articulada e contínua será capaz de reduzir a imensa dívida histórica e social que a sociedade brasileira tem para com a população negra, submetida à exclusão social e econômica.

Os negros e negras são os mais pobres dentre os pobres, de modo que as políticas de caráter universal que ignoram tais diferenças de base entre os grupos raciais têm servido tão somente para perpetuar e realimentar as atuais desigualdades.

Para tornar eficazes os direitos individuais e coletivos, os direitos políticos e sociais, os direitos culturais e educacionais, entre outros, o Estado tem que redefinir o seu papel no que se refere à prestação de serviços públicos, de forma a ampliar sua intervenção nos domínios das relações intersubjetivas e privadas, buscando traduzir a igualdade formal em igualdade de condições, de oportunidade e tratamento.

Para aprofundarmos esse debate na CONEN, no movimento negro e de mulheres negras, nos partidos do campo democrático e popular, centrais sindicais e nas Frentes Brasil Popular e Povo sem Medo, solicitamos a contribuição da Ana Luiza, uma companheira antirracista que tem contribuído com a formação e formulação política da CONEN no Estado de São Paulo.

Executiva Nacional da CONEN – abril de 2020.

A cor/raça dos trabalhadores mais afetados na coronacrise

Ana Luíza Matos de Oliveira[1]

Nada mais falso que dizer que o Brasil é uma “democracia racial”. No Brasil os negros e as negras tem maior participação entre aqueles mais vulneráveis na sociedade brasileira, tendo maior participação em diversas categorias de trabalhadores vulneráveis que serão nomeadas ao longo do texto. Isso é expressão de nosso passado escravocrata, que continua vivo. Mesmo bem após o fim da escravatura no Brasil, o documentário “Menino 23” mostra como o Brasil foi um campo fértil para a disseminação de ideais eugenistas (nazistas/integralistas) voltadas em especial contra os negros e negras.

Como também um país profundamente marcado pelo patriarcado, as inserções de trabalhadores e trabalhadoras negros e negras também são marcadas pelo gênero, sendo, em geral, os índices socioeconômicos das mulheres negras piores que os dos homens negros, o que se expressa em maior taxa de informalidade entre as mulheres negras e menores salários também. Assim, em uma perspectiva da interseccionalidade, as mulheres negras são “duplamente” penalizadas em uma sociedade patriarcal e herdeira da escravidão.

Neste quadro de estrutural desigualdade, a chegada de uma crise econômica como advento de uma crise de saúde pública – que, em seu conjunto, tem sido chamada de “coronacrise”[2] – exacerba as características de exclusão da sociedade brasileira: se em momentos de “bonança” negros e negras se encontram em um patamar mais vulnerável em termos de garantias de emprego, renda e acesso aos direitos sociais, em momentos de crise – sem que medidas eficazes sejam tomadas – negros e negras também se veem mais prejudicados. Para iniciar, gráficos retirados da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE de 2019[3] ilustram a desigualdade no mercado de trabalho quanto à raça. Em primeiro lugar, uma divisão da sociedade brasileira em décimos de renda, como no gráfico 1, mostra que 13,5% da totalidade dos negros e negras brasileiros estão entre os 10% mais pobres, enquanto 5,5% da totalidade dos brancos e brancas estão entre os 10% mais pobres. Já no décimo mais rico, a proporção se inverte: 16,4% dos brancos está neste grupo, enquanto somente 5% dos negros está neste grupo. Ou seja, os negros estão mais representados na fatia mais pobre da sociedade que na fatia mais rica.

Já o gráfico 2 mostra maior presença branca na administração pública e informação/financeiras, dois grupos de atividades conhecidos por melhor remuneração e condições de trabalho. Os negros (pretos e pardos) se fazem muito mais presentes, segundo estes dados de 2018, na agropecuária, na construção, no comércio, no transporte, alojamento/alimentação e nos serviços domésticos. Não resta dúvidas, à primeira vista, de que os setores onde há maioria negra estão entre os que mais serão impactados com a coronacrise – comércio e serviços, entre eles o trabalho doméstico remunerado. E, sem cair na odiosa demonização dos funcionários públicos, é importante pontuar que os da administração pública tem sua renda relativamente mais protegida neste momento de crise e, como mostra o gráfico 2, neste setor a maioria é branca.

O gráfico 3, da mesma publicação, compara os rendimentos médios reais do trabalho principal de trabalhadores brasileiros por sexo e cor/raça. Percebe-se, como comentávamos, a persistência das desigualdades de renda quanto a estes dois quesitos.

O gráfico 4 mostra que a desigualdade racial persiste quando aumentamos a escolaridade. Pior: ela se amplia quanto maior a desigualdade. Em outras palavras, um trabalhador branco sem instrução/com ensino fundamental incompleto tem rendimento-hora maior que o de um trabalhador negro com a mesma escolaridade, porém esse diferencial de raça é ainda maior se comparamos trabalhadores com ensino superior completo. Se no primeiro caso o trabalhador branco tem rendimento 1,29 vezes maior que o de um negro, no último caso o trabalhador branco tem rendimento 1,44 vezes maior que o de um negro. O gráfico não aborda este dado, mas o mesmo ocorre quanto à diferença de gênero[1]: quanto maior a escolaridade de homens e mulheres, maior é a diferença salarial, o que leva as feministas a chamarem este fenômeno de “teto de vidro”, ou seja, chega um certo momento da carreira que as mulheres não conseguem avançar mais, seja por preconceito, seja por obrigações domésticas socialmente impostas. Neste caso, poderíamos falar também em um “teto de vidro” para os negros. E este fenômeno mostra também que, apesar de ser importantíssimo ampliar a escolaridade da população negra, somente ampliar a escolaridade não resolve as desigualdades no mercado de trabalho.

O gráfico 5 desta publicação mostra as diferentes taxas de desocupação para o ano de 2018 de acordo com escolaridade e cor/raça. Percebe-se que negros e negras são a maioria entre os desocupados em todas as faixas de escolaridade; ou que suas taxas de desocupação são maiores que as dos brancos em todos os casos analisados no gráfico. Os desocupados, categoria já em situação de vulnerabilidade, devem ser duramente atingidos pela coronacrise e, entre eles, há maior participação de negros e negras.


Já dados de uma versão anterior[1] do SIS-IBGE mostra que, quanto à informalidade, os negros são também maioria, como mostra o gráfico 6.

Ao falar do sistema previdenciário, em especial do Regime Geral de Previdência Social, é importante destacar que negros são maioria nos postos de trabalho sem contribuição à previdência social, o que se reflete no acesso ao sistema quando da velhice ou no caso de algum problema no meio da vida laboral. Essa é mais uma fragilidade que se expressa no mercado de trabalho e tem impactos nas trajetórias dos negros e negras, deixando-os mais vulneráveis nesse contexto de crise.

Entre os trabalhadores domésticos, percebe-se que, para o ano de 2015, as mulheres negras eram 59,7% do total de trabalhadores domésticos no Brasil, completando o quadro de dupla discriminação como comentávamos anteriormente (Tabela 1). A categoria de trabalhadoras domésticas é uma das mais vulneráveis à coronacrise, seja pelo elitismo dos ricos brasileiros que não conseguem realizar seu trabalho doméstico mesmo infectados com o vírus e as colocam em risco (o que levou a que uma das primeiras mortes por Covid-19 no Brasil fosse de uma trabalhadora doméstica[1]), seja porque, com a quarentena, muitas diaristas ficam sem receber.

Sobre donos de empresas, levantamento do Sebrae (2016)[1] mostra que em 2014 havia mais empresas cujos donos eram negros que brancos (Gráfico 7). Os negros passam na frente dos brancos em 2012 (ver também gráfico 8).

Porém, ao segmentar as empresas entre empregadores e conta-própria (Tabela 2, na mesma publicação) percebe-se que os negros são maioria entre os conta-própria e os brancos maioria entre os empregadores.

Este tema nos leva especificamente à categoria dos Microempreendedores Individuais (MEIs). Nessa categoria, 46% se declarou branca, 42% parda, 9% preta (ou seja, 51% negra), 2% amarela e 1% indígena[1] em 2015. Vale lembrar que essa categoria foi criada para tirar pessoas com rendimentos de até R$81.000 anuais (valores de 2020) da informalidade, através da contribuição subsidiada à previdência e a redução de impostos. Esta categoria em geral concentra pessoas com baixa escolaridade e em 2019 o Brasil rompeu a marca de 8,1 milhões de MEIs. As categorias mais presentes no MEI são cabelereiros/manicures, varejo de vestuário/acessórios e obras de alvenaria[2]. Há indicativo de que muitos MEIs sejam trabalhadores de aplicativos, o que nos leva ao próximo ponto: a ausência de análise nesse texto sobre trabalhadores por aplicativo (como Uber, rappi, ifood entre outros), pois há falta de dados nacionais em especial quanto à raça destes trabalhadores precarizados no Brasil e que se expõem ainda mais nesse período de pandemia.

Quanto aos beneficiários do Programa Bolsa Família (PBF), negros são maioria destes. Bartholo (2016)[3] aponta que dos 12.677.749 beneficiários em maio de 2016, 9.438.131 eram negros. Já um estudo[4] que considera o total de pessoas pertencentes a famílias beneficiadas (“pessoas cadastradas e beneficiadas”) pelo PBF ou inscritas no Cadastro Único mostra que para o ano de 2013 pretos e pardos (negros) são a grande maioria dos contidos nestes grupos (Tabela 3). É preciso pontuar, sobre esse ponto, que o PBF, que beneficia fortemente a população negra, tem sua cobertura em franca queda durante o ano de 2019, com ampliação brutal da fila de entrada ao programa[5]. Os anúncios do governo de expansão do programa, cuja demanda deve se ampliar nesse período com o crescimento da desocupação, sequer dará conta de zerar a atual fila do programa.

Para falar de um setor especificamente que sofre com a crise, a cultura, houve ampliação dos negros no setor nos últimos anos, mas os brancos continuam sendo maioria[1]. Em 2018, os negros representavam 45,7% dos trabalhadores do setor cultural (Gráfico 9).

Quanto às favelas, estes podem ser locais de rápida disseminação do Covid-19[1], pois as condições de moradia, saneamento e higiene são precárias (faltando água, que dirá água e sabão ou álcool gel, raro produto de luxo), somados ao fato de que muitos dos que ali vivem tem inserções precárias no mercado de trabalho e ficam mais vulneráveis em momentos de crise. Ou seja, a coronacrise exacerba problemas estruturais do Brasil no âmbito da moradia, do saneamento e da desigualdade, tornando a vida mais difícil em especial para os mais pobres. Um olhar quanto à raça dos moradores de favelas – segundo Renato Meirelles e Celso Athayde – mostra que 72% dos moradores se declaram negro[2].

Quanto a quilombolas e ribeirinhos, vale apontar que esta população sofre de extrema vulnerabilidade em critérios socioeconômicos. É importante frisar que, em plena pandemia, o governo Bolsonaro pretende remover quilombolas (aqueles que de forma brutalmente racista comparou a gado) no Maranhão, na região de Alcântara[3]. Não consegui encontrar levantamento sobre a quantidade de ribeirinhos e quilombolas no Brasil hoje/no passado recente, mas os últimos dados sobre quilombos mostram que 3.524 são reconhecidos como tal no Brasil, podendo o número total chegar a 5 mil[4].

Quanto à população de rua, claramente vulnerável por estar exposta, ter fragilidades de saúde e não ter como fazer “quarentena”, há poucos dados em escala nacional. Uma publicação do Ministério da Saúde de 2014[5] aponta que 72,8% das crianças e adolescentes em situação de rua são negros. Já pesquisa de 2008 do finado Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome[6] mostra que 67% das pessoas em situação de rua são negras. Neste documento, alerta-se que apenas 47% da população de rua estava no Cadastro Único de Programas Sociais.

Por fim, no sistema carcerário, que pode ser duramente atingido pelo vírus (o que levou o IDDD a pleitear a redução da população carcerária face à pandemia[7]), a grande maioria é de negros e negras: entre os presos, 61,7% são pretos ou pardos. Os brancos, inversamente, são 37,22% dos presos[8].

As políticas sociais que poderiam dar apoio a esta população estão sofrendo de grave subfinanciamento, em especial a partir da aprovação da Emenda Constitucional 95/2016. Com a vigência desta, o Brasil chega à coronacrise com menos instrumentos para rebater os efeitos da crise, com o SUS subfinanciado (Guidolin, 2019[9]) e com a população mais vulnerável. É importante frisar que as reformas econômicas adotadas desde 2016 a partir do arcabouço da austeridade fizeram o país gastar menos com os mais vulneráveis – e aqui no texto fica claro qual é a cor/raça destes. Mesmo a reforma trabalhista, cujos defensores propagavam que geraria 6 milhões de empregos formais, nada fez para reduzir a informalidade, que só aumentou desde a sua entrada em vigor.

A situação agora, diante da inação do governo federal em relação aos trabalhadores – e à população negra em especial – agrava em muito este quadro.

Nota da Executiva Nacional da CONEN.

É importante destacar a inexistência de informações da imprensa tradicional brasileira, no noticiário internacional, sobre quem são os grupos e a população afetados pela COVID-19 em países como os Estados Unidos, França, Itália, Espanha e Reino Unido, países com maior número de casos da crise sanitária.

Essa imprensa também não noticia a realidade e os dados do COVID-19 nos países do Continente Africano, da América Latina e do Caribe.

Ignora as políticas na área de saúde em países como Cuba e Venezuela que inibem a expansão da pandemia do COVID-19.

Notas

[1] Economista, Doutora em Desenvolvimento Econômico (Unicamp). Professora-visitante da FLACSO Brasil e co-editora do blog brasildebate.com.br

[3] IBGE (2019) Síntese de Indicadores Sociais https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101678.pdf

[4] Teixeira, M. O. (2013) “O mercado de trabalho reitera relações desiguais que se constroem no âmbito das relações econômicas e sociais”. In: Fundação Perseu Abramo, Fundação Friedrich Ebert (orgs.) Classes? Que classes? Ciclo de debates sobre classes sociais. 1a.ed.São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo e Fundação Friedrich Ebert

[8] http://observatorio.sebraego.com.br/midias/downloads/08032017145129.pdf

[23] GUIDOLIN, Ana Paula. Crise, austeridade e o financiamento da saúde no Brasil. Trabalho de Conclusão de Curso. Instituto de Economia, Unicamp. Campinas, SP: 2019.

 

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