Publicado no Jornal GGN em 5-7-2015
Os futuros historiadores têm, no momento atual, um laboratório completo para prospectar como ocorre a desmontagem de governos democraticamente eleitos.
Presidentes são muito mais fortes que a imprensa. Quando caem é por sua incapacidade de se valer das armas políticas e institucionais de que dispõem.
A primeira arma do presidente é o projeto de país que ele pretende.
Dilma Rousseff começou de forma esplêndida seu primeiro governo. Tinha claro que, ao período de forte inclusão, deveria ser seguida uma era de consolidação da competitividade da economia e do aprofundamento das políticas sociais.
Definiu claramente três vetores: foco na economia real, com ênfase em financiamento, concessões e inovação, e aprofundamento das políticas sociais. E lançou um conjunto de programas expressivos nas três áreas entre os quais o regime de partilha do pré-sal, a Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, o Plano Brasil Maior, o Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego), Fies, a Embrapii (Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial).
Na macroeconomia, Dilma deu início a uma desvalorização gradativa do real, redução da taxa Selic e do spread bancário.
Durante um curto espaço de tempo, o país experimentou o sabor inesquecível de uma economia normal, O enorme capital financeiro acumulado em décadas de taxas de juros descomunais começou a se mover em direção à renda variável (http://migre.me/qEaRS).
O grande momento foi em outubro de 2012, quando o Banco Central ganhou a briga de braços com o mercado e baixou a Selic para 7,14%. Antes disso, quando conseguiu mudar as regras da poupança, para jogar o piso dos juros para patamares inferiores.
Durou até abril de 2013.
Antes disso, quando a inflação ameaçou retomar e o crescimento a cair, houve um curto circuito no governo Dilma e afloraram as vulnerabilidades deixadas pelo governo Lula e pelo PT, no período de bonança.
Ausência de estratégia de poder
Em todo país democrático, as bases do poder do presidente repousam em alianças com o Congresso, Judiciário, grupos de mídia.
São os segmentos que pertencem ao establishment, ao mercado de opinião já estabelecido. Nos grandes processos de inclusão, o mercado estabelecido se incomoda. Esse incômodo passa pelo mundo político – a oposição que perdeu o bonde -, e por estamentos públicos.
Especialmente em relação às corporações com poder de Estado – Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal -, seguindo o modelo norte-americano, a Constituição definiu claramente formas de subordinação ao poder popular – expresso no Presidente da República, eleito pelo voto do povo.
Essa subordinação se dá na definição da política de atuação da PF (não confundir com interferência em processos), na nomeação de juízes dos tribunais superiores, do Procurador Geral da República e do delegado geral da PF.
Os legisladores entenderam que o dar autonomia às corporações criaria poderes dentro do Estado, colocando em risco a governabilidade (leia, a propósito, artigo do jurista Luiz Moreira em http://migre.me/qF9aj).
A visão política de Lula era de que as ameaças à governabilidade estavam na mídia e Forças Armadas. Mas a mídia só ganhava força em momentos de instabilidade no mercado financeiro.
Julgava que agindo dentro do mais amplo republicanismo esvaziaria por si a campanha midiática, sobre pretensões bolivarianas, chavistas, castristas. E a governabilidade seria garantida pela popularidade do presidente e pela revolução econômica dos incluídos.
No Judiciário e sistema policial, cometeu uma série infindável de erros:
Erro 1 – as indicações para o STF.
Erro 2 – a falta de interlocução com o Procurador Geral da República.
Erro 3 – a perda de controle sobre a Polícia Federal, especialmente após a descentralização da inteligência
Erro 4 –falta de estratégia na comunicação pública e falta de sensibilidade para entender o fenômeno das redes sociais.
Erro 5 – o Mensalão. A decisão inédita de tornar público o julgamento acabou fornecendo uma munição inédita e fatal.
O resultado final foi a terra arrasada no PT, com a prisão das suas principais lideranças e a marca indelével da corrupção pregada na testa do partido.
Os erros de Dilma
Em algum momento de 2013, Dilma perdeu o eixo. Queda do nível de crescimento, pressão da inflação e, depois de junho, a popularidade despencando. Por cima de tudo, o fenômeno das redes sociais acelerando drasticamente as demandas sociais, inclusive dos recém-incluídos.
Tornou-se um trem desgovernado, agindo de impulso, isolando-se, atropelando regras básicas de política, economia e sociabilidade.
Fechamento – foi gradativamente se afastando dos melhores conselheiros, Lula, Delfim, Belluzzo e dos amigos que ousavam apontar para os erros que estavam sendo cometidos.
Obstrução dos canais de participação – Conselhão, os conselhos empresariais da ABDI (Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial), os conselhos sociais do Gilberto Carvalho, contatos com associações e sindicatos.
Desmonte da política fiscal – as desonerações não levaram à recuperação da economia, mas temia-se que não as renovando aprofundaria a crise.
Desatenção com os sinais de junho –teriam sido providenciais, se bem compreendidos e gerando mudanças no comportamento da presidente. Mas não captou os sinais.
Paralisação de políticas estruturantes – O Conselho de Gestão foi abandonado assim como os trabalho da EPL (Empresa de Planejamento e Logística), os programas do MCTI (Ministério de Ciências, tecnologia e Inovação). Até alguns bens elaborados programas do MEC, da gestão Haddad perderam-se por falta de cuidados na implementação, como aconteceu com o Fies.
Queda de braço nas concessões – tentou-se reduzir a Taxa Interna de Retorno das concessões, como meio de diminuir o Custo Brasil. Deu errado. Assim como deu errado o modelo de redução da conta de luz, muito devido a problemas climáticos.
Erros de comunicação na Copa – houve um trabalho exemplar de organização, mas que só ficou claro em plena Copa, quando foram tirados os tapumes dos aeroportos e estádios.
Mesmo assim, Dilma logrou vencer as eleições e encaminhar-se para o segundo mandato.
Aí cometeu uma sucessão adicional e inédita de erros.
Demora em começar o governo – Em vez de se repensar o segundo governo, mergulhou em dois meses de retiro onde a única preocupação foi montar uma base política própria para as eleições na Câmara, desdenhando as lições de Lula. E promover uma reforma ortodoxa na economia, sem o cuidado de comunicar aos diletos eleitores.
Erros com a Petrobras – criou o falso escândalo da refinaria de Pasadena, dando vida a uma denúncia morta por uma questão não resolvida com o antigo presidente José Sérgio Gabrielli. Quando estourou a Lava Jato, manteve a diretoria por meses, ao custo da saúde da presidente Graça Foster. A Petrobras ficou sangrando por 8 meses.
Erros com a Lava Jato – deixou a Lava Jato correr solta, julgando que o fato de nada dever significaria que nada deveria temer. Não cuidou de defesas mínimas legais, como o de impedir vazamentos e manipulações de depoimentos, enquadrar os faltosos.
Erros na Câmara – a tentativa de eleger um presidente da Câmara produziu um desastre que entregou o poder de bandeja para Eduardo Cunha.
Quadro atual
A história do Procurador Geral da República Rodrigo Janot e do delegado geral da Polícia Federal de que ambos os poderes vão atrás de fatos, não de pessoas, e que a impessoalidade domina as investigações é boa para o eleitorado, não para quem domina as entranhas do poder.
Ministério Público, Polícia Federal, Judiciário em geral, buscam sempre ampliar seus espaços e subordinam-se a quem detem de fato o poder. Se esse alguém é externo ao Executivo, aderem.
Quando alcançam seus objetivos não é por nenhuma conspiração, mas pela lógica nayural, intrínseca ao exercício do poder por estamentos burocráticos, que dá certo quando os governos falham.
A partir de determinado momento, a inação do governo Dilma e a pro atividade da mídia – e de seu aliado preferencial, o PSDB – deixaram claro onde estava o centro de poder. E decididamente não era no Palácio do Planalto.
É isso o que explica o fato de Rodrigo Janot não ter aceito a denúncia contra Aécio Neves, apesar da profusão de detalhes sobre propinas na delação de Alberto Yousseff. Ou ainda manter na gaveta inquérito que desde 2010 tramita na PGR sobre contas de Aécio em paraísos fiscais. É o que explica também a não tomada de medidas contra vazamentos. Ou o fato do MPF e a PF não terem investigado as relações da Abril com Carlinhos Cachoeira e dificilmente aprofundarão as ligações da Globo com a CBF. Nem sequer prestado esclarecimentos sobre as investigações da cocaína encontrada no helicóptero de um senador mineiro.
Estratégias
A frente que quer derrubar Dilma é bastante heterogênea, de Eduardo Cunha a Aécio Neves, do conservadorismo evangélico ao preconceito mais abjeto, tudo devidamente estimulado pela mídia – muitos dos grupos dependem da entrada de um presidente acessível para sobreviver.
Por outro lado, essa heterogeneidade levará fatalmente a uma disputa intestina.
Enquanto Eduardo Cunha serviu ao propósito de derrubar Dilma, foi poupado. À medida que a queda de Dilma deixa de ser uma possibilidade distante, passa a ser bombardeado pelos jornais.
A Globo tem nos evangélicos a maior ameaça ao seu predomínio. Se Dilma cair, o protagonismo será do PMDB, não do PSDB. Logo, em breve voltarão os ataques a Renan.
Por outro lado, os principais programas implantados no primeiro governo Dilma sobrevivem, esquecidos, andando de lado, mas sobrevivem.
A presidente ainda teria espaço para reagrupar ideias e trabalhar com a única arma que lhe resta: um programa de governo.
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