Publicado no blog Paulo Moreira Leite em 3-12-2014
Sem votos para impedir uma provável vitória do governo na proposta de eliminar o superávit primário nas contas de 2014, a oposição produziu ontem uma cena preocupante do ponto de vista da democracia.
Mobilizando arruaceiros profissionais e voluntários da baderna, engajados numa dessas ONGs cujo nome parece inspirado em entidades de exilados cubanos da Flórida, parlamentares oposicionistas criaram um ambiente de violência e tumulto nas galerias do Congresso. No final de uma jornada de tensão, conflito e violência, conseguiram impedir que a maioria dos parlamentares presentes cumprissem seu dever constitucional mais elementar: votar, soberanamente, com os votos recebidos do eleitorado, na proposta que julgassem melhor.
Os brasileiros não têm boa memória daqueles momentos em que deputados e senadores foram impedidos cumprir suas obrigações. Na maioria das vezes, foram cenas que antecederam golpes de Estado.
A diferença é que isso costumava ocorrer com a presença intimidadora de soldados pelo Congresso e arredores, numa paisagem ilustrada por tanques e baionetas. Ontem, a coreografia era outra. Lembrava os clássicos assaltos ao poder, de origem fascista, com vocação para atacar instituições democráticas.
O ataque partiu de civis, “presumivelmente assalariados”, nas palavras de Renan Calheiros, presidente do Senado. Conforme Renan, um grupo de 26 pessoas “instrumentalizadas, provocando o Congresso,” impediu os deputados de tomar uma decisão que, conforme cálculo da quase unanimidade dos observadores, seria favorável ao governo.
A baderna foi organizada como um espetáculo de circo amador. Como se o fim do superávit primário fosse um tema tão popular como a taxa de juros e o aumento da gasolina, cidadãos instalados nas galerias montaram um coro de palavrões, vaias e xingamentos destinado a inviabilizar um debate real entre parlamentares.
Quando Renan determinou que as galerias fossem esvaziadas — medida banal em qualquer Congresso do planeta — os cidadãos que logo seriam promovidos a “representantes da sociedade civil” pelos analistas meios de comunicação resolveram ficar onde se encontravam.
No mesmo instante, quinze parlamentares da oposição correram em seu socorro, formando uma espécie de piquete para impedir que fossem removidos pela polícia legislativa. Equipados para poses fotográficas, logo surgiram cidadãos com mordaças vermelhas com a sigla do PT. Tudo ensaiado e dramatizado.
Presente à casa poucos dias depois de ter afirmado que perdeu a eleição para uma “organização criminosa”, Aécio Neves saiu em defesa da baderna. Disse, conforme relato da Folha de S. Paulo: “A população brasileira acordou. As pessoas estão participando do que está acontecendo no Brasil. E algumas querem vir [ao Congresso]. Nós vamos fechar as galerias?”
Com essa postura, o candidato presidencial do PSDB dá um novo passo para se afastar das instituições democráticas. O primeiro foi a tentativa de criminalizar — diretamente — a vitória de Dilma em 26 de outubro. O segundo foi brindar uma iniciativa que em nada contribui para um debate civilizado sobre as necessidades.
“Eu não estou reconhecendo o Aécio,” disse o governador do Ceará, Cid Gomes, em entrevista ao Espaço Público, ontem, na TV Brasil.
Vários personagens e várias cenas se tornaram irreconhecíveis nos últimos dias.
Da mesma forma que o governo tem o direito de tentar suprimir o superávit primário, a oposição tem o direito de tentar o contrário. Faz parte da democracia. Cenas semelhantes ocorrem periodicamente nos Estados Unidos, sempre que a Casa Branca ameaça ultrapassar seu limite de endividamento.
Não faz parte da democracia, porém, tentar impedir o Congresso de funcionar. Quem age dessa forma pratica o mandamento número 1 de toda intervenção antidemocrática, que consiste em respeitar as regras e leis de um país apenas quando lhe convém. Isso só interessa a quem planeja impedir o funcionamento do regime democrático.
Este é o aspecto preocupante da baderna de ontem.
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