A intervenção política dos Estados Unidos na Ucrânia pode ser um tiro pela culatra, no que tange às pretensões de hegemonia da grande potência mundial.
O grave e perigoso conflito que se seguiu à derrubada do governo pró-Moscou pode ter consequências contrárias às esperadas por Washington. Em vez do enfraquecimento de Putin e da Rússia, o conflito tem potencial para precipitar uma fratura na tradicional aliança entre a Europa e os EUA.
Em recente artigo publicado na prestigiada revista Foreign Affairs, Hans Kundnani, diretor de pesquisa do European Council on Foreign Relations, argumenta que isso já pode estar acontecendo.
Significativamente intitulado Leaving the West Behind (Deixando o Ocidente para Trás), o artigo analisa as tendências recentes da política externa alemã.
Segundo Kundnani, a Alemanha sempre teve uma relação complexa e difícil com o chamado Ocidente, revelada por sua histórica rivalidade com a França e o Reino Unido. Entretanto, com o fim da Segunda Guerra Mundial e o surgimento da Guerra Fria, a política externa alemã caracterizou-se pela Westbindung, a integração ao Ocidente liderado pelos EUA.
Ao longo de praticamente 40 anos, essa integração, surgida da necessidade de se proteger contra a influência da União Soviética, praticamente obscureceu quaisquer outras considerações estratégicas na política externa alemã.
Naquela época, a Alemanha, a Alemanha Ocidental, via-se cercada, ao Leste, por Estados hostis, membros do Pacto de Varsóvia. A sua integração ao Oeste era, desse modo, algo praticamente inevitável e “natural”.
Contudo, com o colapso da União Soviética e a adesão do Leste europeu à União Europeia, o quadro geopolítico da Europa mudou inteiramente. Hoje, a Alemanha já não está mais cercada por Estados potencialmente hostis, mas sim por parceiros econômicos e comerciais que contribuem para a expansão de sua competitividade. E, entre tais parceiros, estão incluídos também, com vigor cada vez maior, a Rússia e a China.
Na realidade, a Alemanha é uma economia que depende cada vez mais das suas exportações. A contribuição das exportações para PIB alemão subiu de 33%, em 2000, para 48%, em 2010. A tendência é que tal contribuição cresça ainda mais, em virtude da crise econômica europeia, que não dá sinais de esmorecer.
Essa dependência cada vez maior das exportações tem claro signo geopolítico. Elas crescem mais para o Leste, especialmente para a Rússia e a China. Em 2013, as exportações alemãs para a China alcançaram US$ 84 bilhões. Em pouco tempo, a China substituirá os EUA como principal parceiro econômico-comercial não europeu da Alemanha.
Com a Rússia, as relações econômicas e comerciais são também muito dinâmicas, com o acréscimo da dependência energética alemã, em relação ao gás e petróleo russos. Apesar dos investimentos alemães em energias alternativas, em 2013 a Rússia supriu 38% do óleo e 36% do gás consumidos na Alemanha.
A bem da verdade, deve-se dizer que a Alemanha vem investindo numa interdependência econômica com a Rússia há algum tempo. Quando Willy Brandt assumiu o comando da Alemanha Ocidental, em 1969, ele procurou balancear a Westbindung como uma Ostpolitik (política para o Leste).
O objetivo último dessa Ostpolitik era o de estreitar as relações com a União Soviética, de forma a conseguir, em última instância, a reunificação da Alemanha. Esse movimento estratégico da Alemanha preocupou muito Kissinger, que anteviu a possibilidade de a Alemanha Ocidental sair da OTAN e caminhar para a neutralidade, fato que não ocorreu, devido aos incontornáveis imperativos da Guerra Fria.
No entanto, com o fim da Guerra Fria e a reunificação da Alemanha, esses laços se expandiram muito mais, dentro de uma nova Ostpolitik, que se caracteriza pela Wandel durch Handel (Mudança pelo Comércio).
A ideia aqui é de fortalecer os laços com a Rússia, contribuindo com sua evolução tecnológica e sua modernização econômica, criando um espaço de paz e cooperação ao Leste. Esse é um interesse próprio e concreto da Alemanha.
Pois bem, ante tais mudanças profundas nos quadros geoeconômicos e geopolíticos na Europa Central e no mundo, Kundnani argumenta, com razão, que a Westbindung deixou de ter a centralidade estratégica que tinha nos tempos da Guerra Fria.
Isso explicaria o crescente afastamento da Alemanha do militarismo unilateralista praticado pelos EUA. Em 2003, quando da invasão do Iraque, o chanceler Schröder falou de uma german way para lidar com essa questão, em contraste com a american way. Desde então, a Alemanha vem se mostrando crescentemente avessa ao uso da força militar preconizado pelo EUA e seus aliados mais fiéis, como o Reno Unido.
A Alemanha parece ter decidido que a grande lição de seu passado nazista não é “nunca mais Auschwitz”, lema invocado para apoiar a intervenção no Kosovo, mas sim “nunca mais guerra”.
No caso da Ucrânia, a Alemanha mostrou muita relutância inicial em apoiar as medidas duras propostas pelos EUA. Houve uma clara pressão da poderosa indústria alemã, que tem muitos interesses na Rússia, para evitar as sanções propostas. O CEO da Siemens chegou a viajar à Rússia, para assegurar a Putin que os interesses da empresa na Rússia não seriam prejudicados por “turbulências de curto prazo”.
A relutância alemã só foi superada após o ainda não esclarecido e nebuloso episódio da derrubada do avião malaio na Ucrânia.
Mas a resistência maior vem da própria população alemã. Numa pesquisa feita em abril de 2013, apenas 45% dos entrevistados disseram que Alemanha devia se engajar nas sanções propostas pelos EUA, enquanto 49% disseram que o país deveria apostar numa negociação entre o Ocidente e a Rússia. O episódio da espionagem dos EUA contra Angela Merkel parece ter tornado a população alemã ainda mais cética, em relação aos reais interesses dos EUA na Europa.
Caso as sanções contra a Rússia comecem a afetar expressivamente a economia alemã, como parece já estar ocorrendo, a Alemanha tenderá cada vez mais para a neutralidade que Kissinger tanto temia. Naquela época, a Alemanha Ocidental era um estado fraco e dependente. Hoje, a Alemanha unificada é uma grande e sólida economia, com interesses próprios e relações crescentemente densas com a China e a Rússia.
Isso pode levar a Alemanha, e boa parte da Europa, a gravitar cada vez mais para o Oeste, criando um cisma no Ocidente hegemonizado pelos EUA.
Nessa eventualidade, as palavras que Michael Schaefer, embaixador da Alemanha na China, disse numa entrevista em 2012 poderão adquirir tons proféticos. Afirmou ele: “não acredito que ainda exista essa coisa chamada Ocidente”.
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