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Chega de lorota na discussão do Bolsa-Família

Publicado no Luis Nassif Online em 17-10-2014

Dois pontos no debate sobre o programa Bolsa-Família podem me tirar do sério.

O primeiro ponto diz respeito à participação do Banco Mundial (BM) na unificação dos programas de transferência de renda. O segundo é a comparação do Bolsa-Família com o Bolsa-Escola. Neste artigo, trato do primeiro ponto.

Participei do processo que deu origem ao programa Bolsa-Família e sempre me surpreende ler e ouvir referência a pessoas e instituições que são apresentadas como protagonistas de um processo do qual não participaram.

Esse é o caso daqueles que aludem à participação decisiva do Banco Mundial na unificação dos programas. Bastaria uma consulta ao Banco.

O Banco não participou do desenho do programa. Aliás, a proposta de unificação dos programas de transferência de renda já estava no plano de governo do então candidato, Lula da Silva, no Relatório do Grupo de Transição e tudo isso em 2002.

O programa Bolsa-Família é resultado de uma construção coletiva. A narrativa que confere ao BM tal protagonismo não é inocente. A produção de memórias é sempre parte de um campo de disputas de interesses.

Em que sentido é uma construção coletiva?

Ele se beneficia de experiências anteriores. Em 1995, em Campinas e Ribeirão Preto, no Estado de São Paulo, e no Distrito Federal, foram implantados programas de renda mínima que logo se espalharam por muitos municípios. Ele se beneficia especialmente da experiência do munícipio de São Paulo que logrou uma modesta integração entre o programa de Renda Mínima da prefeitura paulista, o Bolsa Escola do governo federal e o Renda Cidadã do governo estadual. Ele se beneficia do debate em torno do projeto de 1991 do Eduardo Suplicy.

Ele se beneficia dos variados caminhos para a unificação, em 2003: a Câmara de Política Social; a formação de um GT Interministerial (MS, MEC, MAS, MESA, MME, MPOG e CEF) e subgrupos temáticos sob a coordenação da Casa Civil da Presidência; reuniões com secretários executivos dos Ministérios da Saúde, Minas e Energia, Educação e Assistência e Promoção Social; reuniões com prefeitos e/ou secretários municipais, com governadores e/ou secretários estaduais e a apresentação dos resultados ao presidente e aos ministros; apresentação e debate na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara de Deputados e nos Conselhos Setoriais.

Com propriedade, o presidente Lula aprovou a expressão “Bolsa Família, uma evolução dos programas de complementação de renda com condicionalidades”, em reconhecimento dos antecedentes múltiplos e variados.

Cadê o Banco Mundial? O gato não comeu, mas ele não esteve e não está nos rumos escolhidos para o programa. Nem poderia, pois o contrato com o Banco Mundial foi assinado em 24/05/2005! O Bolsa- Família foi lançado em 20/10/2003 e ao final daquele ano, o programa já atendia 3,6 milhões de famílias. Em dezembro de 2004 já eram 4.9 milhões de famílias. Os recursos do contrato com o Banco correspondiam ao montante de US$ 569 milhões e a maior para o componente desembolso de renda e outra parcela (US$ 2,36 milhões) para bens e serviços, incluindo consultoria, treinamento e seminários.

Reconheço que o programa parece ter feito um bem ao banco. O selo de um governo mais à esquerda caiu-lhe bem. Não sei se o BM está na origem dessa ficção e não irei especular sobre isso. Em minha opinião, o Banco Mundial melhorou muito sua imagem ao liga-lo ao Bolsa Família.

È importante lembrar que a imagem da instituição esteve associada às chamadas reformas estruturais propugnadas pelo Banco: o risco dos países medido por meio do FMI, BID e BIRD pelo alcance das reformas: a tese da focalização e as redes mínimas de proteção social.

Tais reformas promoveram uma devastação na América Latina: segundo a CEPAL, 40,5% das pessoas dos países da região, nos anos 80, eram pobres e 18,6% indigentes. Após 20 anos, em 2000, o percentual de pobres não sofreu redução alguma e ainda cresceu 3,3pontos. A pobreza extrema se manteve indesejavelmente estável.

Para encerrar, reafirmo que a concepção e implementação do Bolsa-família prescindiu do BM. Seus acertos e seus erros fazem parte do exercício da soberania brasileira. O programa é uma referência internacional por seus méritos e é distinto dos programas que o antecederam não somente pela diferença na escala, mas fundamentalmente pela sua concepção, questão que deixo para um texto futuro.

Como sou brasileira, nordestina e cearense, a ficção criada em torno de um protagonismo inexistente faz-me recordar a inesquecível voz nordestina de Luiz Gonzaga: “é lorota, e das boa”.

*ANA FONSECA é pesquisadora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi secretária-executiva do programa Bolsa Família (2003).

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